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Entenda Melhor | Melinda e Melinda: Lições Tragicômicas de Dramaturgia Com Woody Allen

A natureza humana é trágica ou cômica?

por Leonardo Campos
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O que é uma narrativa dramática? Quais as diferenças entre a tragédia e a comédia? Há possibilidades de uma narrativa mesclar elementos trágicos e cômicos? Como esses conceitos podem ser explicados? Como se dá o processo tragicômico no cinema? Essas respostas podem ser encontradas em excelentes manuais de dramaturgia. Há, no entanto, filmes com propostas metalinguísticas que se propõem a nos explicar tais conceitos de maneira muito didática, mesclando entretenimento e aprendizagem. Melinda e Melinda, escrito e dirigido por Woody Allen, é um desses casos. A trama pode ser caracterizada como uma narrativa envolvente que mescla comédia e drama, explorando a dualidade da existência humana por meio de diferentes perspectivas. Singular, mesmo não sendo um dos pontos mais altos da execução cinematográfica do diretor, o enredo nos apresenta uma estrutura singular, na qual uma mesma história é contada tanto como uma comédia quanto como um drama, realçando assim a subjetividade da experiência humana e a complexidade das relações interpessoais. É um filme inteligente e divertido que reflete a natureza multifacetada da vida, com os habituais dilemas morais enfrentados pelos personagens, com discussões que refletem as influências filosóficas e existenciais dos longos anos de um cineasta que se posiciona como leitor inveterado.

Em seus 96 minutos, a trama gira em torno de Melinda (Radha Mitchell), uma mulher cuja chegada inesperada perturba a vida de um grupo de amigos em Nova York. A partir desse ponto de partida, o filme se divide em duas vertentes: uma comédia, ressaltando os aspectos mais absurdos e engraçados da situação, e um drama, explorando as consequências emocionais e pessoais da presença de Melinda. Por meio dessa perspectiva em dualidade, a narrativa nos permite examinar a ambiguidade da existência e questionar a natureza da felicidade e do sofrimento. Um dos temas centrais, por exemplo, é a complexidade das relações humanas e o impacto que as interações interpessoais têm sobre nossas vidas. Como Sartre deixa claro em de seus conceitos, o “inferno é o outro”, sendo assim, Melinda se torna um espiral de crises na vida de todos daqueles que gravitam em torno de sua existência, tanto nos momentos cômicos quanto na vertente trágica. Por meio da protagonista, Woody Allen aborda questões como solidão, amor, traição e redenção, mostrando como as relações sociais moldam a identidade e os destinos dos indivíduos. Melinda funciona como um catalisador para as reflexões dos outros personagens, confrontando-os com suas próprias inseguranças e desejos não realizados.

Ao chegar, ela causa transtornos, mas faz todos saírem das suas confortáveis (ou desconfortáveis) esferas pessoais e sociais. Todo mundo se transforma, inclusive as protagonistas de ambas as vertentes. De maneira sutil, o texto de Woody Allen delineia a dualidade entre o destino e o livre-arbítrio, sugerindo que as escolhas dos personagens são influenciadas por circunstâncias externas e forças desconhecidas. A presença de Melinda na vida dos amigos desencadeia uma série de eventos imprevisíveis, levantando questões sobre o papel do acaso e da decisão individual na determinação do curso de nossas vidas. Para quem conhece a carreira do realizador, sabe bem que essa reflexão filosófica é uma das marcas registradas em suas narrativas que frequentemente abordam temas existenciais e metafísicos. Ademais, Melinda e Melinda é um filme sagaz ao apresentar uma crítica sutil à superficialidade e artificialidade da sociedade contemporânea, destacando a fragilidade das relações interpessoais em um mundo dominado por convenções e expectativas sociais. O painel de personagens é confrontado por suas próprias limitações e ilusões, o tempo inteiro sendo forçado a lidar com a realidade de suas vidas e a busca por significado para as coisas em meio ao caos e à incerteza.

Através da dualidade entre comédia e tragédia, a trama convida o espectador a refletir sobre a natureza complexa e contraditória da existência humana, questionando os limites entre a alegria e o sofrimento, o riso e as lágrimas. Ciente disso, haja vista o seu passeio múltiplo por estes espaços, Woody Allen trouxe o seguinte enredo para o roteiro do divertido Melinda e Melinda: durante um jantar entre nova-iorquinos, os personagens debatem sobre o fato de a natureza humana ser trágica ou cômica. Na conversa, há dois dramaturgos que debatem sobre os elementos da tragédia e da comédia, utilizando-se de uma narrativa para desenvolver os seus conceitos: enquanto um deslancha uma trama extremamente dramática, o outro utiliza o mesmo mote para contar a sua versão cômica da mesma história. O fio que liga as histórias é a personagem central, Melinda, ora representada tragicamente, ora adornada pelas características da comédia. Assim, acompanhamos as duas possibilidades criativas diante de uma mesma figura ficcional esférica, numa demonstração da multiplicidade de um mesmo assunto, bifurcado diante de caminhos diversificados. Eu sempre reforço, caro leitor, aos meus estudantes de Cinema e Audiovisual, bem como de outros componentes curriculares de minha jornada docente, que escrever assim requer uma cultura de leitura constante. De clássicos, de contemporâneos e do mundo em si. Quanto mais repertório nós temos, melhor dominamos a nossa escrita criativa.

De volta ao filme. Durante o jantar, um casal acompanha a dupla de dramaturgos. No meio da conversa, um deles estabelece uma situação para ambos os escritores. Ao passo que acompanham a história, cada um deles tece os fios ficcionais para o mesmo mote narrativo: a chegada de Melinda. Assim, na primeira história, temos um jantar promovido por Lee (Jonny Lee Miller), um ator em busca de um papel interessante para alavancar a sua carreira. O evento social realizado em seu apartamento tem como convidado central um respeitado diretor de teatro. As coisas perdem o rumo quando Melinda, amiga desde a adolescência da sua esposa Laurel (Chloe Sevigny) chega ofegante, falastrona, com semblante perdido e com aparência exausta. Sem filhos, separada e amarga, a personagem desestrutura a vida de todos ao seu redor. No segundo lance, Melinda, interpretada pela mesma atriz, em dois ótimos desempenhos, surge atrapalhada, mas encantadora. Ela bate à porta de Hobie (Will Ferrell) no momento em que a sua esposa, a cineasta Susan (Amanda Peet) oferece um jantar para um possível investidor de seu futuro filme. Melinda se muda para o andar de baixo, não chega a ser invasiva como em sua versão trágica, mas começa a mudar gradativamente a vida das pessoas ao seu redor.

Em linhas gerais, duas décadas após o seu lançamento, a narrativa ainda é muito atual em todas as suas discussões. Funciona como uma sessão terapêutica, onde observamos a maneira na qual vivenciamos as nossas questões socioemocionais. Já no que tange aos aspectos das ressonâncias filosóficas, oriundas da já mencionada cultura leitora de Woody Allen, Melinda e Melinda reflete a filosofia existencialista, uma vertente que enfatiza a liberdade, a responsabilidade individual e a angústia existencial como elementos constituintes da condição humana. Os personagens vivenciam conflitos morais e éticos, questionam as suas próprias escolhas e buscam explicações das mais diversas em um mundo aparentemente absurdo e sem sentido. Aqui, a dualidade entre comédia e tragédia serve como uma representação simbólica das contradições e ambiguidades da existência. E, assim, convidam os espectadores a refletir sobre a complexidade da vida e a natureza fugaz da felicidade. Desafiador diante das convenções narrativas tradicionais, o diretor nos apresenta uma visão multifacetada da realidade, explorando os dilemas morais e existenciais enfrentados pelos personagens esféricos, distanciados da caricatura, um risco caso o autor não fosse alguém com a experiência de Woody Allen.

Woody Allen e Algumas Notas sobre o Trágico e o Cômico

Para compreender as diferenças entre os textos trágicos e cômicos no cinema, é essencial examinar as características distintas de cada gênero. O texto trágico, inspirado nas tragédias gregas antigas, foca em eventos dramáticos e frequentemente sombrios que culminam em um desfecho catastrófico para os personagens principais. São tramas marcadas pelo conflito intenso, dilemas morais e pela inevitabilidade do destino. Por outro lado, o texto cômico, ao ressoar a tradição da comédia clássica, busca provocar o riso e alegria no espectador. São composições textuais que muitas vezes utiliza situações humorísticas, ironia e exagero para entreter e transmitir mensagens por meio do entretenimento. Os personagens cômicos geralmente enfrentam desafios engraçados ou absurdos, mas a resolução tende a ser positiva e reconfortante. O texto trágico, por sua intensidade emocional e temas sombrios, muitas vezes leva os espectadores a questionar a moralidade, a inevitabilidade do sofrimento e a fragilidade da existência. Ele pode gerar empatia e compaixão pelos personagens, provocando uma contemplação sobre a natureza da tragédia. O texto cômico tem o poder de aliviar o estresse, proporcionar entretenimento leve e estimular o riso e a felicidade. Ao explorar situações absurdas e humorísticas, o texto cômico convida o público a relaxar, a apreciar as nuances da comédia e a encontrar alegria nas imperfeições humanas.

Em linhas gerais, o assunto pode ser transformado em tópicos da seguinte maneira:

O humor pode servir como uma forma de escapismo e uma maneira de celebrar a riqueza da vida. Importante, tanto para quem consome ficção quanto pra quem desejar tecer material do tipo, é o reconhecimento de uma diferença crucial entre o texto trágico e cômico no cinema, isto é, a maneira como o gênero é estruturado e como os personagens são desenvolvidos. No texto trágico, a progressão da história leva a um clímax devastador, frequentemente resultando na morte ou na ruína do protagonista. Os personagens trágicos são frequentemente complexos, torturados por suas próprias falhas e enfrentando dilemas éticos profundos. Já no texto cômico, a narrativa tende a ser mais fluida e otimista, com reviravoltas que culminam em situações humorísticas e soluções inesperadas. Os personagens cômicos são muitas vezes simplificados, caricatos e propensos a cometer erros bobos. No entanto, é a habilidade de superar essas falhas e encontrar alegria nas adversidades que define o desenvolvimento dos personagens cômicos. Ambos os gêneros desempenham papéis importantes na expressão artística e na reflexão sobre a condição humana, cada um oferecendo perspectivas únicas e valiosas sobre a vida e suas complexidades. Enquanto o trágico nos lembra da fragilidade e da inevitabilidade do sofrimento, o cômico nos convida a encontrar alegria e esperança mesmo nas circunstâncias mais difíceis. A interação dinâmica entre o trágico e o cômico no desenvolvimento de Melinda e Melinda enriquece nossa experiência como espectadores e nos permite apreciar a amplitude da expressão artística de Woody Allen em suas contribuições substanciais para o cinema.

Melinda Triste, Melinda Alegre e o Legado e Impacto Cultural de Woody Allen

A metalinguagem é um ótimo caminho de duas vias: aquele que nos oferta entretenimento e a travessia que nos coloca diante da aprendizagem. Ler manuais, livros e artigos acadêmicos que analisam roteiros, dentre outras estratégias, tal como assistir aos bons canais de crítica cinematográfica na internet permitem conhecer mais do mundo do cinema, adentrando em suas peculiaridades. Em meu ponto de vista, um dos melhores caminhos é assistindo aos próprios filmes, tirando das narrativas lições valiosas não apenas sobre arte, mas reflexões para as nossas vidas. No cinema contemporâneo, podemos observar a presença de cineastas talentosos cujas contribuições artísticas transcendem gerações. Woody Allen é um dos destaques desse painel, independentemente das polêmicas em torno de sua vida pessoal, aqui não levadas em consideração. O seu legado e impacto cultural no meio cinematográfico são inegáveis e nos caminhos pavimentados desde os seus primeiros filmes, o cineasta nos deixou uma rica herança.

Woody Allen emergiu como uma figura proeminente do cinema estadunidense na década de 1970, período em que o movimento cinematográfico conhecido como Nova Hollywood estava no auge. Sua abordagem única e inovadora à comédia e ao drama, aliada a uma voz autoral distintamente nova-iorquina o estabeleceu como um dos cineastas mais aclamados da época e com uma base de fãs ainda considerável ainda na atualidade, após praticamente meio século de criações. Com Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan, o cineasta conquistou a crítica e o público, demonstrando sua capacidade quase única de mesclar humor inteligente e reflexões existenciais de forma magistral. De 2004, Melinda e Melinda não é o seu melhor momento de escritor e diretor, mas ainda é uma produção que demonstra o talento do cineasta na arte de criar narrativas envolventes, com críticas ácidas, além de muita filosofia embutida nos diálogos.

Assistir ao que chamo de “cinema de Woody Allen” é ter aulas eficientes de construção de personagens e seus diálogos. Nem sempre a execução do texto é exímia, mas no geral, o desenvolvimento da escrita é espetacular, nos magnetizando sem precisar de efeitos visuais ou situações mirabolantes, como muitas produções ficcionais da contemporaneidade. Com seu legado multifacetado e abrangente, contemplamos sua versatilidade como cineasta e sua influência duradoura numa indústria cinematográfica em constante processo de reciclagem e descarte. Uma das marcas registradas do diretor, presente também em Melinda e Melinda, é a sua capacidade de contar histórias pessoais de maneira universal, tratando de questões como amor, relacionamentos, neuroses e a condição humana de forma autêntica e perspicaz. Ele parece um poeta, retratando em suas narrativas a fugacidade da vida e a inexistência de um poder divino, entregando as suas figuras ficcionais aos acasos do destino.

Seus diálogos afiados e roteiros bem elaborados evidenciam sua habilidade em criar personagens complexos e cativantes, muitas vezes interpretados por ele mesmo ou por atores de renome, como é o caso do elenco da narrativa tragicômica em questão. Ademais, versar sobre o cinema de Woody Allen é destacar a sua estética visual distinta, caracterizada ora por suas elegantes composições em preto e branco e seus icônicos planos de Nova York, numa construção de uma identidade cinematográfica única, juntamente com a elegância do design de produção, da direção de fotografia e da trilha sonora de suas histórias, geralmente atrativos, mesmo quando o filme é mediano. A sua colaboração frequente com talentosos diretores de fotografia e designers de produção, tais como Gordon Willis e Santo Loquasto, respectivamente, resultou em obras visualmente deslumbrantes que transcendem o tempo e o espaço, imortalizando as paisagens urbanas da Big Apple em suas narrativas, ou então, exaltando as belezas do território britânico numa de suas fases cinematográficas europeias.

É importante ressaltar que o impacto cultural de Woody Allen vai além de suas realizações artísticas, afinal, ele influenciou toda uma geração de cineastas e escritores, moldando a maneira como o cinema independente e autoral é produzido e consumido. Sabiamente, ele desafiou convenções narrativas e estilísticas estabelecidas, explorando temas tabus e desconfortáveis com uma sinceridade inabalável. Sua coragem em abordar questões polêmicas, como relacionamentos e dilemas morais, abriu caminho para discussões significativas sobre ética, arte e liberdade de expressão no cinema. Podemos perceber, sem nenhuma dificuldade, que os processos criativos do diretor são oriundos de uma figura leitora. Não apenas dos clássicos filosóficos e literários, citados constantemente nos diálogos de seus filmes, mas também a leitura dos signos do cotidiano. Seu trabalho inovador, com uma voz autoral distinta, bem como a sua abordagem sincera e provocativa ainda são capazes de inspirar gerações de cineastas e espectadores, nos desafiando a refletir sobre a complexidade do ser humano e a natureza da produção artística.

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