Há vários manuais de roteiro disponíveis para interessados em compreender melhor os mecanismos que engendram as estruturas dramáticas das narrativas que contemplam. Syd Field, Robert McKee nos Estados Unidos, Doc Comparato aqui no Brasil, e, atualmente, um grande nome presente em diversas produções seriadas e cinematográficas: Lucas Paraízo. Cada um, a sua maneira, desenvolve estratégias de desenvolvimento da escrita criativa para cinema, permitindo que o seu público leitor utilize alguns conceitos e ferramentas para criar, também, as suas próprias histórias. Além dos atos, dos conflitos, da curva dramática, dentre outros elementos de um roteiro, a concepção dos personagens é uma das etapas mais importantes para quem decide entrar numa jornada desse tipo. E, é com base na importância do personagem que este artigo apresenta alguns caminhos para compreensão aplicada da dinâmica dos personagens em narrativas cinematográficas, afinal, como já dito em reflexões anteriores, podemos fazer cursos, mas é assistindo ao maior número de filmes possíveis que conseguimos compreender as estruturas dramáticas de uma história.
O filme escolhido para esta reflexão foi Tudo Sobre Minha Mãe, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, conhecido por também assinar os seus roteiros. Lançado em 1999, a produção ganhadora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro não é perfeita. Há elipses que atrapalham (ligeiramente) um maior fluxo de alguns momentos intensamente dramáticos, mas seu desenvolvimento leva o espectador e, consequentemente, os roteiristas do futuro, ao processo da catarse, bastante necessário para a criação de empatia do público com as figuras ficcionais apresentadas ao longo das narrativas que produzirão. O filme em questão pode não ser “perfeito”, mas essa não é a ideia no campo da arte. Filmes são feitos por humanos e nós, como bem sabemos, não somos nada perfeitos. Ademais, ao falar em perfeição, esqueça receitas mágicas, engessadas, para a concepção de uma história autoral. Com Tudo Sobre Minha Mãe, você compreenderá, em linhas gerais, a importância da concepção de bons personagens, o que nos leva ao envolvimento com os seus conflitos e, consequentemente, com as suas escolhas diante de ações necessárias para o encaminhamento do enredo.
Preparados para esta jornada de conhecimento? Primeiro, vou versar de maneira panorâmica sobre Tudo Sobre Minha Mãe, para depois, identificar a função e o desenvolvimento dos personagens em sua estrutura dramática. Vamos nessa?
Noções de Roteiro: Uma Análise de Tudo Sobre Minha Mãe
Como uma pessoa que conhece em detalhes as peculiaridades do cinema de Almodóvar, eu destaco Tudo Sobre Minha Mãe como o seu melhor filme, em meu ponto de vista, obviamente, não apenas como crítico de cinema, mas como espectador. Sabemos do potencial de Carne Trêmula, A Pele Que Habito, Fale com Ela, dentre tantas outras histórias peculiares e intensas, mas a jornada de Manuela (Cecilia Roth) é a que mais toca o meu coração. E também, é uma das que mais refinam o desenvolvimento de seus personagens. Na trama, ela é uma enfermeira. E também a mãe de Esteban (Eloy Azorín), um jovem que ama escrever, ler, assistir filmes clássicos e possui uma curiosidade profunda acerca da identidade de seu pai.
Certo dia, eles vão ao teatro, contemplar uma apresentação de Uma Rua Chamada Pecado, de Tennessee Williams, interpretada pelas atrizes Huma Rojo (Marisa Paredes) e Nina (Candela Peña), personagens que dão vida a Blanche Du Bois e Stella, respectivamente. É o filme que insere o teatro, mas também dialoga com o cinema, pois a atriz Huma Rojo é praticamente uma versão de Bette Davis em A Malvada. Ela não concede o autógrafo solicitado por Esteban na saída do teatro e essa ação culmina na busca pelo que o jovem deseja, correndo atrás do táxi, até ser atravessado por outro veículo e morrer num brusco atropelamento. Acaba a vida do rapaz e a saga de Manuela também se estilhaça. Ela, que interpretava no hospital, tendo em vista instrumentalizar os médicos diante do anúncio de mortes dos pacientes, agora precisa receber e lidar com a morte do filho, uma experiência devastadora que a faz mudar de perspectiva.
De volta para Manuela: ao ter que lidar com o luto, ela segue numa viagem para Madrid em busca do pai de Esteban, um homem em sua memória, mas que agora é a travesti Lola, personagem que não deixa uma herança ruim apenas para o filho da freira e assistente social Rosa (Penélope Cruz), mas para todos aqueles que gravitam em torno de sua existência. Agrado (Antonia San Juan), amiga das antigas, é encontrada por Manuela numa zona de prostituição. Com traços pícaros, ela é a responsável pelo alívio cômico em diversas passagens do filme, mesmo que a sua trajetória seja de dores e lutas intensas. Nesta viagem, Manuela, devastada pela morte que tomou a alegria de sua vida, conhece várias pessoas, transforma a vida de todos que atravessam o seu caminho, ensina e aprende, reencontra as atrizes da peça teatral que no passado, foi encenada por um grupo amador no qual ela era integrante. Por meio de uma tessitura de memórias entre o passado e as experiências do presente, Pedro Almodóvar delineia cada um de seus personagens de maneira esférica, aumentando as dimensões dramáticas de sua narrativa.
Além da questão dos personagens, um ponto interessante para reflexão em Tudo Sobre Minha Mãe é a presença de elipses, responsáveis por avançar algumas partes do enredo e evitar redundâncias. Tais escolhas, já presentes no roteiro assinado pelo próprio diretor, são aplicadas no filme por meio da edição de José Salcedo. Esse foi um ponto bastante comentado pela crítica especializada na época de lançamento, uma escolha que não agradou a muitos espectadores, mas que em meu ponto de vista, não atrapalham a carga dramática da narrativa. Apenas faz acelerar algumas coisas, talvez informações que queiramos contemplar de maneira mais esmiuçada. Numa cultura que começa a se envolver mais intensamente com a dinâmica das narrativas seriadas dos serviços de streaming, nalgumas vezes, excessivamente explicativas e extensas, as elipses de Tudo Sobre Minha Mãe podem causar estranhamento, pois fazem o enredo avançar de um jeito que é catarse por cima de catarse, com pouco espaço para respiração do público que, de fato, se encontra envolvido com a história de Manuela, bem como dos personagens que gravitam em torno de sua jornada, isto é, o reiniciar da própria vida.
Interessante como Almodóvar dialoga com a sua cinefilia. Ele insere organicamente referências ao cinema, ao teatro, aos clássicos modernos da literatura, mas também ao ato de representar, tornando a sua história uma brilhante jornada metalinguística. O clássico A Malvada funciona como base para a conexão entre as atrizes que interpretam Uma Rua Chamada Pecado e a chegada de Manuela. Será que a mãe em luto é uma usurpadora ambiciosa, tal como a personagem de Eve Harrington no clássico que é um dos melhores filmes protagonizados por Bette Davis? Essa provavelmente é uma dúvida interna de Nina, companheira de Huma, nos espetáculos teatrais que circulam o território espanhol. Quando escrevemos, sabemos, acionamos todo o nosso acervo cultural. É o que faz Almodóvar ao pensar na presença da morte em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, ressoante por aqui ao delinear a primeira aparição de Lola, interpretada por (Toni Cantó). Há também referências ao ato de representar, de fingir, evocado diretamente de O Desespero de Veronika Ross, de Fassbinder. A cena da morte de Esteban, do pedido de autógrafo, é assumidamente uma homenagem ao filme Noite de Estreia, de Cassavetes, em especial, ao talento da atriz Gena Rowlands, que o cineasta tanto admira.
Ademais, além da boa condução do elenco e da trama, o filme também impregna as suas imagens com a habitual estética já conhecida pelo público em relação ao diretor: na trilha sonora, Alberto Iglesias desenvolve uma textura percussiva intensa, com cordas tocadas sensivelmente, responsáveis por amplificar os momentos mais catárticos. Na direção de fotografia, Alfonso Beato entrega enquadramentos que ousam adentrar nas sensações dos personagens, empregando um ponto de vista formidável na cena do atropelamento e uma travessia sofisticada no coração do personagem receptor do órgão do filho de Manuela. São passagens lindíssimas, tal como a maneira como enquadra cada uma das atrizes da narrativa, matematicamente ajustadas pelas lentes em seus momentos de revelações dolorosas. Os figurinos da dupla formada por José María de Cóssio e Bina Daigeler trajam as figuras ficcionais esféricas da produção conforme as suas dimensões sociais e psicológicas, num exercício cinematográfico coeso, fortalecido pelas cores da direção de arte e da cenografia, setores supervisionados pelo design de produção de Antxón Gómez. Em linhas gerais, o espectador contempla uma trama visualmente deslumbrante.
Ademais, para ampliar a compreensão das escolhas dramáticas realizadas por Pedro Almodóvar ao longo dos 101 minutos de Tudo Sobre Minha Mãe, selecionei algumas passagens de um capítulo do livro Conversas Com Almodóvar, de Frederic Strauss, uma publicação que condensa diversos encontros do crítico de cinema com o diretor espanhol. É uma abordagem sintética, mas bastante elucidativa, explicada por meio de texto e de infográfico em nosso próximo tópico. Unifiquei as perguntas do entrevistador com as respostas do diretor, especificamente, os trechos em que Almodóvar confirmava aquilo que o interlocutor questionava, sem retirar qualquer elemento do discurso ou modificar o sentido de suas respostas. É apenas uma escolha didática de tradução, para fortalecer esta reflexão e permitir que você, caro leitor, compreenda mais sobre os elementos que engendram a estrutura dramática de uma narrativa cinematográfica.
Após os infográficos, vamos agora compreender a dinâmica dos personagens em Tudo Sobre Minha Mãe, em especial, o estabelecimento da protagonista e a presença do pícaro, também conhecido como alívio cômico de narrativas carregadas de tensão dramática.
As Personagens, Suas Tipologias e a Importância do Alívio Cômico
Como destaco em um artigo intitulado Entenda Melhor: O Roteiro Cinematográfico, os personagens são as criações responsáveis pela relação de magnetismo do espectador diante do enredo ofertado. Funciona assim no teatro, nas novelas, nas séries e na literatura. Tal como Manuela, em Tudo Sobre Minha Mãe, os personagens fortes, atraentes e capazes de fazer a plateia expurgar diante da catarse não são novidades. Na Grécia Antiga, obras-primas da dramaturgia, tais como Medeia, Antígona, e Édipo já causavam essa sensação de empatia e catarse nos espectadores. No Renascimento Cultural, o icônico William Shakespeare estabeleceu figuras ficcionais aturdidas pelos cenários projetados diante de seus respectivos cotidianos: Hamlet, Ricardo III, Otelo, Macbeth, dentre outros, causaram comoção e, na modernidade, quando traduzidos para o cinema, deixaram as suas plateias igualmente perplexas.
No cinema, há filmes com vários personagens a dividir o protagonismo. Em Tudo Sobre Minha Mãe, Manuela ocupa esse lugar. Geralmente os coadjuvantes são delineados em seus devidos lugares, a gravitar em torno dos protagonistas ou de apenas um membro a ocupar o espaço principal. Eles podem não ter a mesma dimensão do protagonista, mas catalisam ações, como é o caso de Manuela, ao adentrar na vida de Rosa, Agrado, Huma Rojo, Nina, dentre tantas outras figuras ficcionais esféricas da narrativa. Tendo como base o eixo central da uma história, geralmente os roteiros mais preocupados colocam os personagens em cena, diante de suas dimensões físicas, sociais e psicológicas. Manuela, neste caso, a protagonista, pode ser compreendida da seguinte maneira: fisicamente é uma mulher na casa dos 40 anos, loira e magra, aparentemente saudável. Socialmente, é mãe, enfermeira e, no passado, atuou numa companhia amadora de teatro. Psicologicamente, ela é madura, firme, empática, mas se transforma ao passo que precisa vivenciar as dolorosas etapas do luto, após a morte do filho.
Diante do exposto, após assistir a um filme ou episódio de série, observe: quais são os elementos básicos desta tríade que definem os personagens em cena, em simbiose com os seus conflitos, material que vai gerar a ação e com isso a história que foi assistida? Até nos roteiros mais subjetivos, que não seguem a cartilha hollywoodiana, conhecida por facilitar demais as histórias para consumo rápido e superficial do público sedento por entretenimento, esses elementos se estabelecem. É o caso de Tudo Sobre Minha Mãe. Seria leviano apresentar a Jornada do Herói, de Joseph Campbell, para inserir a saga de Manuela, mas se observarmos, há alguns elementos deste conceito que podem se aplicar a sua transformação enquanto personagem. Manuela é esférica, não previsível, o que a torna um misto de sensações para o espectador. Almodóvar sempre soube que a presença de personagens esféricos em narrativas cinematográficas desempenha um papel crucial na criação de histórias envolventes e significativas.
Tais tipos são aqueles que possuem profundidade, complexidade e evolução ao longo da trama, indo além de estereótipos unidimensionais. Eles apresentam nuances emocionais, enfrentam conflitos internos e externos e, assim, tornam-se mais realistas e identificáveis para o público. Quando um filme apresenta personagens esféricos, como é o caso de Tudo Sobre Minha Mãe, a audiência é convidada a se envolver emocionalmente com suas jornadas. Há empatia diante de suas lutas, dilemas e transformações. Isso cria uma conexão mais forte entre o espectador e a obra, tornando a experiência cinematográfica mais impactante e memorável. Além disso, personagens esféricos enriquecem a narrativa ao trazerem camadas adicionais de significado e simbolismo. Suas motivações, falhas e crescimento ao longo da história criam uma conexão com os receptores, algo que não seria possível em uma trama com figuras ficcionais planas, desprovidas de qualquer complexidade, afinal, nós mesmos somos surpreendidos pelos arroubos da nossa humanidade quando temos que lidar com obstáculos em nossas jornadas cotidianas.
Por aqui, além de versar sobre a importância de protagonistas esféricos ao longo de histórias ficcionais, preciso destacar para os leitores a maneira cuidadosa como o cineasta Pedro Almodóvar delineia Agrado, uma personagem que poderia se tornar banal nas mãos de um roteirista ou diretor sem apuro dramático. Travesti, constantemente no estereótipo da prostituição, ela entra em cena e faz determinadas passagens dolorosas se tornarem mais leves para o espectador, afinal, como dizemos no popular, de vez em quando, rimos da nossa própria condição miserável. Agrado, para alguns manuais de roteiro, ocupa o lugar do personagem pícaro, tipo que é um elemento frequente nas narrativas cinematográficas, desempenhando muitas vezes o papel de alívio cômico. Este tipo de personagem, com suas características de esperteza, malandragem e irreverência, adiciona dinamismo à trama e proporciona momentos de descontração ao espectador.
A A presença do personagem pícaro, como ocorre em Tudo Sobre Minha Mãe, muitas vezes serve para quebrar a tensão emocional e a seriedade da história, oferecendo um alívio momentâneo ao público. Através de seu comportamento irreverente e suas tiradas espirituosas, o personagem pícaro adiciona uma camada de humor à narrativa, permitindo que o público respire entre momentos de intensidade dramática. Além disso, o personagem pícaro muitas vezes atua como uma figura de contraste em relação aos protagonistas ou antagonistas mais sérios e convencionais. Sua natureza brincalhona e desafiadora muitas vezes revela verdades ocultas e faz o espectador dialogar com os elementos dramáticos da narrativa por meio de um jogo de identidades múltiplas em circulação na história, constantemente em transformação. Nas mãos erradas, como mencionado, o pícaro pode se tornar trivial e estragar toda a história montada para ser contada. Mas aqui, ao contrário, esse tipo de personagem enriquece o desenvolvimento de uma narrativa que em si já é grandiosa, espetacular, sem precisar de qualquer efeito visual mirabolante para ser emocionante e conectar a plateia com o que é apresentado.