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Entenda Melhor | Hammer, Frankenstein e O Império do Horror e do Grotesco

Cores vibrantes e sangrentas: o império do grotesco nas traduções da Hammer para o romance de Mary Shelley.

por Leonardo Campos
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Para compreendermos mais detalhadamente o horror e o grotesco, estabeleço por aqui, antes de adentrar no Império Hammer, as considerações de O Grotesco, de Wolfgang Kayser, e do elucidativo A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coração, de Noel Carroll, dois textos basilares para quem deseja entender melhor as concepções estéticas das narrativas analisadas ao longo desses textos sobre o legado e o impacto cultural de Frankenstein, de Mary Shelley. Publicada em 1957, o ensaio de Kayser é uma contribuição significativa ao campo da estética e da literatura, pois nos proporciona uma reflexão profunda sobre o conceito do grotesco e suas implicações na arte, na literatura e na cultura. Kayser explora como o grotesco se manifesta em várias formas e contextos, criando um diálogo contínuo entre o humor, o horror e a transcendência. Basicamente, para o autor, o grotesco pode ser definido como uma forma que oscila entre o real e o fantástico, desafiando as convenções normais da representação, não sendo apenas uma questão de aparência ou estética, mas uma forma de perceber e compreender o mundo que nos cerca. O autor argumenta que o grotesco provoca um sentimento ambivalente, onde o espectador é simultaneamente atraído e repelido. Essa convivência de opostos cria um espaço de experimentação estética que desafia as normas da lógica e da razão.

O grotesco, nesse sentido, pode ser entendido como uma reação à realidade, uma maneira de questionar as verdades estabelecidas. Isso leva Kayser a discutir influências filosóficas, como as ideias de Ernst Bloch sobre a utopia, onde a busca por um ideal humano é interligada ao reconhecimento da falta e da ambivalência. Um dos aspectos mais intrigantes do grotesco, conforme explorado por Kayser, é sua ambivalência. Ele observa que o grotesco pode ser visto tanto como uma forma de crítica social quanto como um meio de entretenimento. Essa dualidade se manifesta na literatura e na arte, onde o grotesco frequentemente aborda temas tabus ou negligenciados, revelando as contradições da experiência humana.  O autor também menciona exemplos literários, como as obras de Franz Kafka e Charles Dickens, onde o grotesco serve como um espelho que reflete as disfunções sociais e políticas. É nesse espaço de tensão entre a crítica e o absurdo que o grotesco se torna uma ferramenta poderosa para explorar as complexidades da existência humana. Em Frankenstein, a escritora britânica Mary Shelley soube fazer isso com maestria. Basta observar o seu legado e impacto cultural.

Além de versar sobre literatura, Kayser também traça a presença do grotesco ao longo da história da arte. Desde as cavernas pré-históricas ao que designamos como arte contemporânea, o grotesco tem sido uma constante, frequentemente associado à representação do corpo e da experiência humana. As características grotescas, como deformações, combinações absurdas e exageros, revelam as ansiedades e os medos da época. Na arte renascentista, por exemplo, encontramos o uso do grotesco nas obras de artistas como Michelangelo, onde figuras distorcidas desafiam a noção de beleza clássica. O grotesco se torna assim um espaço onde as ideias de forma e conteúdo se entrelaçam, questionando a definição do que é belo. Kayser sugere que essa intersecção entre o corpo e a estética grotesca é uma forma de abordar questões existenciais universais. Ademais, outro elemento importante no trabalho de Kayser é a relação entre o grotesco e o humor. Ele argumenta que o grotesco pode liberar tensões sociais por meio do riso. E, ao mesmo tempo, confronta o espectador com a realidade de sua condição. Assim, o humor grotesco, caro leitor, não é apenas para entreter. O riso “nervoso” na verdade é um meio de explorar a vulnerabilidade humana e a fragilidade da vida.

O riso, aqui, se torna um subversor de normas, permitindo ao indivíduo examinar seu lugar no mundo. O grotesco é, portanto, uma forma de resistência e de crítica, onde as incongruências da realidade são reveladas com um toque de humor que desafia a seriedade do sofrimento humano. Ao longo dos documentários retrospectivos sobre Frankenstein e A Noiva de Frankenstein, analisados durante o processo de investigação para esses textos especiais, contemplamos diversos depoimentos de cineastas, produtores, roteiristas, maquiadores, dentre outros envolvidos no processo cinematográfico, a versar sobre como o entretenimento e o tal riso de nervoso do público diante dessas narrativas eram escapes para a condição social em seus respectivos contextos. Na época do ciclo da Universal, tínhamos os desdobramentos políticos e imagéticos da Primeira Guerra Mundial, as inseguranças da Crise de 1929, dentre outros fatores que ressoavam na economia global e deixava o mundo inteiro em vigilância. Essa sensação que dialogava com o horror, de certa maneira, também ganhou suas ressonâncias quando os estúdios Hammer decidiram investir em Frankenstein, agora em cores vibrantes e muito sangue na tela.

Refletir sobre o conceito de horror, então, se torna pertinente diante do que estabeleço por aqui, pois é o elemento principal que engendraram os mecanismos narrativos desses filmes. É quando adentramos nas conceituações filosóficas de Noel Carroll, um estudioso renomado no assunto. Para o autor, entender o conceito requer um exame crítico não apenas das obras de terror, mas também da experiência estética e emocional que essas obras provocam. Para entender a profundidade do conceito de horror em sua análise, é fundamental considerar os principais elementos que Carroll identifica, particularmente no que se refere aos paradoxos do coração. Ao longo do livro A Filosofia do Horror ou Os Paradoxos do Coração, Carroll começa estabelecendo que o horror é uma emoção distinta, que emerge de uma resposta a situações que colocam em risco a integridade do ser humano. Essa resposta pode ser entendida como um mecanismo de defesa que desencadeia tanto um arrebatamento emocional quanto uma reflexão racional. Diferente de outras emoções, como a tristeza ou a alegria, o horror suscita uma resposta dual: é ao mesmo tempo atrativo e repulsivo. O texto ainda enfatiza que essa dualidade é essencial para compreender a experiência do horror, pois ele se alimenta do prazer que sentimos ao assistir ou ler algo que nos causa temor.

Um dos pilares da argumentação de Carroll é o que ele denomina de “paradoxo do coração”. Esse paradoxo aponta para a contradição intrínseca à experiência do horror: somos atraídos por aquilo que nos assusta. A lógica que sustenta esse paradoxo se relaciona diretamente com a busca humana por emoções intensas. Assistir a um filme de terror ou ler uma obra literária de horror proporciona um distanciamento seguro do perigo real, permitindo que o espectador ou leitor vivencie o medo sem as consequências que a realidade impõe. Enquanto um filme de terror pode provocar sensações aterrorizantes, o espectador está ciente de que tudo não passa de um artifício narrativo. Esse distanciamento, segundo Carroll, é crucial para a apreciação do gênero; o horror, então, se transforma em um espaço de exploração de medos e ansiedades. No entanto, isso também gera uma tensão interna, uma vez que, ao nos permitirmos sentir o horror, estamos também enfrentando, ainda que indiretamente, nossas próprias vulnerabilidades. Ademais, outra dimensão importante na análise de Carroll é a função da imaginação. O horror não se limita a representar situações de medo; ele também incita a reflexão sobre o que essas situações significam para nós. A capacidade de imaginar cenários terríveis pode nos forçar a confrontar nossas próprias incertezas e a questionar o que nos faz humanos. O ato de imaginar pode ser, portanto, uma ferramenta de autoconhecimento e, paradoxalmente, de libertação.

Por meio da imaginação, o horror se torna um campo fértil para o exame de temas existenciais, como a morte, a perda e a alienação. A presença de criaturas sobrenaturais, por exemplo, frequentemente simboliza medos mais profundos que permeiam a condição humana. Ao enfrentar essas figuras grotescas, estamos, na verdade, lidando com aspectos da nossa própria psique. Em sua análise, há uma crítica que Carroll faz ao gênero do horror no que diz respeito ao moralismo que, muitas vezes, permeia suas narrativas. Tais histórias frequentemente seguem um padrão em que o mal é punido e o bem é recompensado, o que pode oferecer uma sensação de segurança aos espectadores. Contudo, essa fórmula simplista pode subestimar a complexidade do horror, fazendo com que ele se torne uma plataforma para a moralidade em vez de um espaço para a exploração do desconhecido e do irracional. O filósofo propõe que o “verdadeiro” horror deve desafiar as extensões morais convencionais, colocando os espectadores em situações ambíguas que refletem as complexidades da moralidade na vida real. O horror deve perturbar a ordem estabelecida, levando os leitores e espectadores a questionar suas próprias suposições sobre o que é aceitável e o que é abominável. Em linhas gerais, é um texto que oferece uma visão abrangente e crítica desse gênero literário e cinematográfico. Através do paradoxo do coração, ele revela a complexidade da experiência do terror, que é tanto atraente quanto repelente. A natureza dual do horror, aliada à função da imaginação e aos dilemas morais às vezes presentes nas narrativas, fazem com que o gênero não apenas provoque emoções intensas, mas também sirva como um campo de reflexão profunda sobre a condição humana.

E assim, leitor, desaguamos naquilo que chamo de Império Hammer, uma saga de filmes de terror com vampiros, lobisomens, múmias e, como não poderia deixar de ser, por questões de retorno financeiro e apego das plateias, as traduções do romance de Mary Shelley, inspiradas também no filme de 1931 da Universal, tendo como diferencial as cores vibrantes e as novas celeumas contextuais do público que buscava, nessas produções, a terapêutica catarse para lidar com as adversidades da realidade, também crua, violenta, dolorosa e subjetiva. O estúdio Hammer Film Productions foi fundado em 1934 e, na época, emergiu como um dos mais icônicos estúdios de cinema de terror do século XX. Sua trajetória, marcada por inovação e impacto cultural, ajudou a moldar a forma como o gênero de terror é percebido e produzido até os dias atuais. Tudo bem, convenhamos: boa parte dos seus filmes são dramaticamente frágeis e esteticamente questionáveis, mas em linhas gerais, deixou um gigantesco legado e teve um considerável impacto cultural. A ascensão da Hammer ocorreu principalmente nos anos 1950, um período em que o estúdio decidiu revitalizar clássicos do terror, oferecendo uma abordagem contemporânea para o que a Universal fez nas décadas anteriores. O lançamento de A Maldição de Frankenstein, em 1957, não apenas reintroduziu o monstro de Mary Shelley para novas plateias, mas também estabeleceu o estilo visual e narrativo que se tornaria sinônimo da Hammer. O filme foi um sucesso de público, conquistou parte da crítica, sendo um dos primeiros a incorporar elementos de horror gótico com uma narrativa mais sombria.

Um dos principais fatores que contribuíram para o sucesso da Hammer foi sua ousadia em explorar temas considerados tabus. Os filmes eram conhecidos por seus elementos de violência gráfica e sexualidade, algo que desafiava as normas da época e atraía um público ansioso por experiências cinematográficas mais intensas. Drácula, protagonizado pelo icônico Christopher Lee, estabeleceu um novo padrão para adaptações do clássico de Bram Stoker, formatando a imagem do vampiro moderno como carismático e sedutor. Cabe ressaltar que o estúdio não apenas reinventou os clássicos do horror, mas também lançou novos talentos em suas produções. A parceria entre o diretor Terence Fisher e o ator Christopher Lee resultou em uma série de sucessos, que influenciaram toda uma geração de cineastas. A estética característica dos filmes da Hammer, com cenários góticos, iluminação dramática e trilhas sonoras evocativas, deixou uma marca indelével na tradição do terror cinematográfico. Embora a popularidade do estúdio tenha diminuído na década de 1970, o seu legado é inegável. Mesmo que muitos filmes sejam, como já mencionei, dramaticamente questionáveis. Quentin Tarantino e Tim Burton, por exemplo, grandes nomes do cinema contemporâneo, frequentemente citam o estilo e a audácia dos filmes da Hammer como referências para muitos dos seus principais filmes.

Para o universo criado por Mary Shelley em 1818, recriado pela Universal na década de 1930, os realizadores da Hammer elaboraram uma longa série de filmes. São sete produções que compõem a linha de narrativas envolvendo o monstro do romance Frankenstein. Para esse artigo, delineio algumas peculiaridades do ponto de partida: A Maldição de Frankenstein, de 1957, dirigido por Terence Fisher, o filme estabeleceu a Hammer como uma das pioneiras no cinema de horror, ao lado de estúdios como a Universal Pictures. Com uma abordagem ousada e inovadora, o enredo de 83 minutos apresenta uma reinterpretação da clássica história de Frankenstein, baseando-se vagamente no romance da escritora britânica. A produção segue a trajetória do Dr. Henry Frankenstein, interpretado por Peter Cushing, um cientista obsessivo que busca desvendar os segredos da vida e da morte. Sua ambição o leva a reanimar um corpo composto por partes de diferentes cadáveres, resultando na criação de uma criatura grotesca, interpretada por Christopher Lee, ator considerado como um dos “medalhões do gênero”. A narrativa aborda a luta entre o criador e a criatura, pois também reflete questões como a ética da pesquisa científica, a ambição desmedida e as consequências do abandono. Ao contemplar hoje, é interessante a abordagem sobre o processo de desumanização do ser. A criatura, que na concepção de Frankenstein deveria ser um ser superior, acaba se tornando um monstro, não apenas pela sua aparência, mas pela forma como é tratado por seu criador e pela sociedade.

Isso gera uma discussão profunda sobre preconceito e aceitação, refletindo medos universais sobre o desconhecido e os limites da ciência. Em A Maldição de Frankenstein, a estética gótica emprega cenários sombrios e iluminação dramática para a criação de uma eficiente atmosfera de tensão e inquietação. A paleta de cores saturadas, particularmente no uso do vermelho, acentua a brutalidade das cenas e reforça o sentimento de medo. A direção de fotografia de Jack Asher e o design de produção de Bernard Robinson são os setores responsáveis por estabelecer esse clima de horror constante. O design da criatura e a maquiagem utilizada (não exatamente revolucionárias para a época), mas interessantes por manter um determinado distanciamento da icônica imagem de Boris Karloff como o monstro, foram elementos que contribuíram para a formação de uma linguagem visual que se tornaria um marco estético nos filmes de horror britânicos. A apresentação da criatura como um ser trágico e mal compreendido, em contraste com a frieza de Frankenstein, desafia o entendimento do público sobre quem realmente é o monstro na história, tal como contemplamos no romance, nas peças e nos filmes anteriores.

Ainda sobre elementos estéticos, a música de James Bernard, com sua textura percussiva sombria, contribui para aumentar a tensão e complementa as visões perturbadoras apresentadas na tela. A utilização de trilhas sonoras emotivas permite que o público experimente não apenas o horror, mas também a compaixão pela criatura, um fator que se tornaria uma assinatura dos filmes da Hammer. O filme não apenas inspirou uma série de sequências e spin-offs dentro da própria produtora, mas também influenciou numerosos cineastas e outras narrativas do gênero horror ao longo das décadas subsequentes. Importante ressaltar, antes do nosso desfecho, que são filmes para contemplação diacrônica, ou seja, análise diante do contexto de produção, das limitações técnicas da época, um período em que o cinema ainda era uma arte em evolução e tinha poucas décadas de idade. Ademais, ainda sobre isso, contemplar A Maldição de Frankenstein hoje, em pleno século XXI, depois de tantas exposições gráficas em filmes como Sexta-Feira 13, O Massacre da Serra Elétrica, O Albergue, Jogos Mortais, dentre outros, é sentir que estamos diante do preâmbulo daquilo que se tornaria ainda mais sanguinolento e subversivo para nós, no contemporâneo, mas que para os espectadores da época em questão, isto é, 1957, era algo profano, ousado, excessivo e absurdo. Ver com distanciamento, como já dito em outros textos por aqui, se torna uma missão essencial, combinado?

Diante do exposto, basta agora conferir as análises específicas de cada um dos filmes da Hammer voltados ao universo de Frankenstein. Já dei aqui o ponto de partida.

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