Segundo Caetano Veloso, na letra da canção Cinema Novo, “a voz do morro rasgou a tela do cinema”. De fato, foi o que aconteceu naquele período geralmente ovacionado nos livros sobre o cinema brasileiro como o momento áureo de produção de filmes e do boom de uma crítica de cinema desejável. As películas produzidas em estúdios, as comédias da Atlântida e da Vera Cruz foram trocadas por reflexões ditas mais profundas e ligadas aos problemas sociais e políticos do Brasil dos anos 1960, entre eles, a Ditadura Militar, regime político que perdurou até os anos 1980 e deixou profundas marcas na nação brasileira.
Foi uma época bem frutífera: Glauber Rocha com Deus e o Diabo na terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967); Nelson Pereira dos Santos e a adaptação de Vidas Secas (1963) para o cinema, além dos conceituados filmes Rio, 40 Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957). O cinema ganhou caráter utópico e buscou refletir sobre os problemas que acometiam o Brasil, marcado por desigualdades sociais. A temática da seca foi reapresentada para a sociedade, dessa vez, sem a estrutura normalmente vista como caricatural dos romances da década de 1930, rotulados por alguns críticos como produção literária regionalista. A urbanização do Brasil, o fluxo migratório e a fome ganharam não só as telas do cinema, mas os manifestos, como Estética da fome (1965), um dos mais cultuados textos do período, assinado por Glauber Rocha.
Compreender a crítica nesse período efervescente é estar no ponto de encontro entre a crítica de cinema do passado, que engatinhava, formava-se, aprendia com os filmes estrangeiros, e a crítica de cinema desejável para o futuro, diante do embate entre cinema brasileiro e estrangeiro, dos problemas sociais e dos debates gestados em um mundo em transformação (maio de 1964, a “contracultura” nos Estados Unidos, dentre outros movimentos sociais). Sendo assim, quando Caetano Veloso diz que a voz do morro rasgou a tela do cinema, há discernimento na afirmação: majoritariamente, o cinema dessa época buscou enquadrar e movimentar, sem apelos melodramáticos, as desigualdades sociais. Ao enfrentar o poder público e os horrores da ditadura, os cineastas tornaram esse período um dos mais celebrados e corajosos da nossa história cultural.
Nesse contexto, os rizomas que se espalharam pelo Brasil não formavam pontas soltas. Houve uma espécie de união entre os diversos pontos de produção de cinema e de crítica, todos, em prol do avanço do Brasil frente às imposições do governo militar. Na Bahia, Glauber Rocha atuou firmemente, tendo Walter da Silveira como um dos nomes da crítica e da criação e consolidação dos cineclubes. Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, através da literatura (Macunaíma e Vidas Secas, respectivamente), utilizavam os enredos para reinterpretar o Brasil contemporâneo e propor avanços. Dentre os estudos que contemplam esse período, gostaria de destacar a tese de doutorado Glauber em crítica e autocrítica, de Ana Lígia Leite Aguiar. A pesquisadora afirma que, a partir dos anos 1960, um novo estilo de crítica cinematográfica surgiria.
Antes predominantemente formalista, a crítica passa, então, a abordar aspectos sociológicos dos filmes analisados, postura que ganhou destaque nas reflexões de Glauber Rocha. Mesmo influenciado pelo modelo semiótico de crítica, esse cineasta baiano produziu textos que seguiam o direcionamento analítico de críticos como Alex Viany, Paulo Emílio Salles Gomes e Walter da Silveira. Conforme aponta a autora, a tensão entre o modelo estruturalista e uma abordagem de caráter sociológico rege a produção crítica do cineasta Glauber Rocha, reflexões essas que encontrarão, ao longo dos anos, um rumo próprio. Em seu texto fluído, Ana Lígia expõe que a obra de Glauber trabalha em um incessante projeto de crítica e autocrítica, sendo as produções iniciais mais inclinadas para a análise semiótica, e, com o passar do tempo, a reflexão crítica do cineasta ganhou um direcionamento mais sociológico/ideológico.
Não satisfeito apenas com as críticas sociais presentes em seus filmes, Glauber Rocha também analisou o campo da crítica cinematográfica do período. Em Revisão do Cinema Brasileiro, o cineasta-crítico introduziu algumas questões sobre a tarefa do crítico de cinema no Brasil, apontando que a sua relação autodidata em relação aos estudos cinematográficos está atrelada à precariedade das possibilidades de formação especializada no Brasil. Glauber talvez contasse com o desejo utópico de um campo crítico funcionando em plenitude, constituindo um espaço onde o crítico fosse devidamente reconhecido, principalmente no que tange aos aspectos financeiros.
Sendo assim, o Cinema Novo foi um período efervescente para o campo da produção cinematográfica socialmente engajada. O público, por sua vez, manteve- se um tanto distante, ora pelas dificuldades de projeção diante do olhar astuto do militarismo, ora pelas mensagens mais codificadas e complexas, por vezes ásperas, como o som, os movimentos de câmera e o desenvolvimento de filmes como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol, por exemplo, produções que denunciavam as mazelas do Brasil, mas não continham o “lirismo” que o público geralmente encontrava nos musicais e comédias estrangeiros e nacionais. Glauber não fora o único crítico e cineasta do período, mas, sem dúvidas, foi o responsável por estremecer as estruturas dos debates políticos e sociais da sua época. Com ele, a crítica não só ganhou novos contornos, como começou a pulular em outros locais do país.
Além da Bahia, outros pontos da região nordeste ganharam destaque. Em Recife, naquele período, os estímulos do neorrealismo italiano e das experiências industriais do estúdio Vera Cruz aqueceram o campo da crítica cinematográfica. A produção do cultuado O Canto do Mar, de Alberto Cavalcanti, é um dos acontecimentos que promovem essa efervescência. A crítica, então, colocava o cinema como pauta do dia, pois, ao extrapolar os limites das colunas especializadas, ganhava colaboradores de áreas distintas. E assim, o gênero discursivo crítica de cinema, em desenvolvimento na época, investigada por aqui, nos permite compreender o que Glauber Rocha e outros intelectuais do período fizeram no século passado, antecipações para o que viria adiante, com Paulo Emilio Salles Gomes, Moniz Vianna, dentre outros críticos renomados, responsáveis por pavimentar o campo da crítica, um documento importante para transformação do cinema em uma estrutura cultural forte.
Nos encontramos em nosso próximo texto, combinado?