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Entenda Melhor | E Com Vocês, a Final Girl!

por Leonardo Campos
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O “termo” final girl, discutido nos meandros do filme slasher, foi cunhado pela escritora feminista Carol Clover no livro Homens, Mulheres e Motosserras: A Questão de Gênero nos Filmes de Terror Modernos). Basicamente, designa as protagonistas dos filmes de terror ao estilo Halloween – A Noite do Terror, O Massacre da Serra Elétrica, Sexta-Feira 13, A Hora do Pesadelo, Pânico, Eu Sei O Que Vocês Fizeram no Verão Passado, dentre outros, as rentáveis e famosas narrativas sobre maníacos mascarados que retornam do passado para colocar em prática algum diabólico plano de vingança.  Ela é uma personagem escolhida para enfrentar o “monstro” e dar fim aos momentos de horror que se estabelecem momentaneamente em sua vida, muitas vezes, numa data comemorativa, outra marca comum ao filme slasher: 31 de outubro, Natal, Reveillon, 04 de Julho, Dia dos Namorados, dentre outros momentos especiais de nosso calendário anual. Ao partir para a luta e garantir sobrevida para ao menos o próximo filme, as final girls empunha as suas armas fálicas, isto é, facas, machados e outros itens, e desferem em direção aos seus algozes, promovendo cortes psicanaliticamente pensados como referências ao feminino que tenta se desviar de todas as maneiras possíveis do voyeurismo sádico machista do subgênero.

Após analisar o subgênero em questão, a pesquisadora percebeu que nestas tramas há uma espécie de atmosfera que nos remete ao ódio patriarcal, pois as personagens são adaptadas pelos roteiros para enfrentar o opressor masculino próximo ao final da narrativa. No geral, estes desfechos apoteóticos são interpretados em diversas camadas, dentre elas, a capacidade da mulher em enfrentar tais celeumas e ser capaz de sobreviver, sem necessariamente ter a ajuda de um herói salvador. Noutros casos, elas dependem da ajuda de um homem, mesmo que durante todo o fio da narrativa, apareçam como personagem de maior destaque. Ao longo dos anos 1970 e 1980, a final girl representou o que atualmente os pensamentos conservadores buscam reforçar constantemente: o lugar da mulher como “bela, recatada e do lar”, mesmo que seja tudo um jogo de aparências. É o exemplo que a sociedade achava que deveria ser seguido. As representantes deste arquétipo são jovens, cuidadosas, responsáveis, virgens ou indisponíveis sexualmente, além de carregar consigo uma aura de ingenuidade. Não há espaço para rebeldia, tampouco qualquer comportamento que venha a ser encarado como transgressor.

Isso durante as décadas mencionadas, pois em 1996, o roteiro de Kevin Williamson, dirigido por Wes Craven em ótima forma, reverteu esses padrões e trouxe novas modalidades para o comportamento dramática da personagem a ocupar o posto de final girl. É questão que nos leva aos debates, também atuais, sobre a cultura do estupro e a necessidade de dizimação dos exemplos que não estão de acordo com os padrões tradicionais da sociedade. A explicação é simples: quase sempre que uma personagem seminua aparece em cena ou tem qualquer comportamento que acentue a sua sexualidade, o destino é certeiro, isto é, ela será alvo de uma morte bastante sanguinolenta. Campo fértil para diversas reflexões, o arquétipo da final girl reforça que tais personagens precisam se preparar para o perigo que “pode estar à espreita na esquina”, afinal, nunca se sabe quando terão que enfrentar figuras macabras como Leatherface, Michael Myers, Jason Vorhees, Freddy Krueger, Ghostface, dentre outros antagonistas mascarados.

Conforme discorre Carol Clover em sua pesquisa basilar para a compreensão do termo utilizado largamente depois dos anos 1980, “há nestes filmes a ideia de que a final girl é uma figura frágil e em perigo”, numa espécie de “apropriação dos signos de nossa sociedade”, espaço de interação que coloca as mulheres em posições subservientes, mesmo para aqueles que se dizem desbloqueados e militantes em causas machistas. É a tal questão do discurso. Posta-se muito hoje, fala-se demais, mas na seara da atitude, muitos posicionamentos ainda continuam misóginos como o destino preparado para uma heroína slasher. Arquétipo bastante discutido em diversos setores da sociedade, o termo na atualidade nos leva para a seara da problematização: se é pura e virginal, então pode ficar viva, mas se for “vadia” ou fora dos padrões, precisa morrer? Parece absurda, mas é a realidade. Os primeiros exemplares do arquétipo da final girl tinham que transmitir castidade, bom comportamento, equilíbrio e sobriedade. Algumas são ambíguas, não exatamente fixadas dentro dos padrões mencionados, mas nas primeiras décadas do slasher, era preciso não se manter muito longe destas denominações comportamentais.

Responsável por impulsionar a trama para o seu epílogo, a final girl possui natureza investigativa, sempre na busca de se abster do sexo e das drogas. Os modelos dos anos 1990, como mencionado, seguem uma linha diferenciada, mas ainda assim, mantém uma aura intocável em suas protagonistas. Há filmes que buscam parodiar a questão ou até mesmo reverter a fórmula. Em Pânico, Sidney Prescott não carrega o talismã da virgindade e ao longo dos quatro filmes, evolui de adolescente com pouca capacidade de se defender para uma heroína ao estilo Sigourney Weaver (Alien – O Oitavo Passageiro) e Linda Hamilton (O Exterminador do Futuro 2), personagens dos anos 1970 e 1980 que são conhecidas por empunhar armas e autodefender-se sem necessariamente depender de homens para salvá-las de qualquer situação extrema. É uma defesa, no entanto, para se relativizar, pois ao manter-se como donas de suas situações, elas precisam se portar de maneira masculinizada, seja nos trajes ou na linguagem corporal em seus desempenhos durante os embates com os seus antagonistas. Cabe ressaltar que a ideia aqui exposta sobre “maneira masculinizada” vem de uma preocupação que delineia a necessidade de salvaguardarmos as devidas proporções, pois é muito complexo definir comportamentos e dizer o que é um comportamento feminino ou masculino ideal, tendo em consideração os avanços sobre estudos de identidade e gênero.

Importante salientar que a final girl estudada por Carol Clover foi alvo de reconsiderações por parte de outros estudos que buscaram ampliar o feixe de reflexões da autora e problematizar algumas afirmações de seu livro, observações que também pude contemplar ao rever um punhado destes filmes para e elaboração do texto. Se pararmos para observar bem, no desenvolvimento do primeiro filme da franquia Sexta-Feira 13, temos em Alice (Adrienne King) uma final girl pela metade.  Ela sobrevive, aniquila a macabra mãe de Jason, mas aparece no segundo capítulo apenas para morrer na abertura. Ela cumpriu a sua missão, reestabeleceu a ordem, no entanto, não sobreviveu. O mesmo ocorre em Sexta-Feira 13 Parte 3, na figura de Christian (Danna Kimmel), protagonista que interrompe momentaneamente a chacina do mascarado, mas no final não aparece empoderada, mas catatônica, aparentemente enlouquecida com a bizarra noite de mortes que marcou a sua ida para o acampamento. Sexta-Feira 13 Parte 4 – O Capítulo Final divide o protagonismo entre Trish (Kimberly Beck) e Tommy (Corey Feldman), sem prejudicar muito o arquétipo slasher. Na sexta parte também há um ensaio para o protagonismo feminino,  mas o filme é mesmo de Tommy, agora adulto, interpretado por Tom Matthews.

Laurie Strode, por sinal, manteve-se firme e forte nos ótimos Halloween H20 – Vinte Anos Depois e Halloween (2018), mas no clássico de John Carpenter de 1978, ela lutou e teve relevância dramática em cena, mas precisou da ajuda de Dr. Loomis (Donald Pleasence) para salvar-se da sanha assassina de Michael Myers.  Da mesma década, O Massacre da Serra Elétrica pode dizer que possui uma final girl mais firme que o personagem de Jamie Lee Curtis. Sally (Marilyn Burns) é uma das representações máximas do corpo feminino em face da misoginia que berra em cena. Ela é humilhada, torturada e sofre os diabos antes de conseguir escapar do clã de Leatherface. Nancy (Heather Langenkamp), de A Hora do Pesadelo, é outro exemplo de final girl mais dona de sua situação, jovem que ciente dos perigos enfrentados na narrativa, torna-se munida de coragem para encarar o seu monstro ainda pior, situado no onírico, na zona dos pesadelos. Sobre essas novas reações aos estudos de Clover, podemos refletir que são apenas alguns pontos de reconsiderações, mas o texto base desenvolvido pela pesquisadora ainda é muito importante para compreensão do arquétipo em questão.

Ainda sobre os padrões ressignificados de final girl, em Eu Sei O Que Vocês Fizeram no Verão Passado, Jennifer Love Hewitt comete os seus erros, mas se arrepende. Relaciona-se sexualmente com seu namorado, mas é uma “boa menina”, tal como Sidney Prescott, da franquia de Ghostface. Elas são responsáveis, dedicadas, gentis e esperançosas. Na série Slasher, produzida pelo canal Chiller, a protagonista Sarah Bennett (Katie McGrath) é apresentada em tórridas cenas de sexo com o seu companheiro, sem o perigo de morrer ao final, tampouco ser gravemente ferida, haja vista a reconfiguração dos novos tempos e a necessidade de evolução do slasher enquanto subgênero do cinema. A manutenção dos antigos padrões para a garota final dilui-se com o tempo e na atual onda de debates nas redes sociais e demais esferas públicas da nossa sociedade impedem que haja filmes focados em se manter preso dentro de arquétipos ultrapassados, vistos diacronicamente como representações já superadas para o feminino na indústria cultural.  Importante ressaltar, por sua vez, que isso não impede algumas o lançamento de algumas histórias infames, intoxicadas pelo conservadorismo.

Na esteira da final girl há outro termo, de cunho mais pop e sem problematização alguma, no entanto, marca registrada destes arquétipos, principalmente nos filmes citados logo na abertura desta breve reflexão. As scream queens, em tradução literal, são as rainhas do grito. Elas precisam enfrentar os monstros de suas narrativas, mas nada as impede de gritar muito enquanto empunham machados, facões e até engenhocas para driblar seus respectivos antagonistas macabros.  É uma estratégia narrativa para aumentar o pathos que nos é ofertado em cena. O termo até ganhou uma série paródica que durou duas temporadas e teve Jamie Lee Curtis, Emma Roberts, Ariana Grande, Abigail Breslin no elenco, com direito à muitas piadas metalinguísticas e referências visuais aos grandes clássicos do slasher. Breslin, por sinal, protagonizou na mesma época, o suspense equivocado Final Girl, narrativa sobre uma caçadora de assassinos em série que reverte os elementos do arquétipo e parodia traços de vários subgêneros do terror. Terror nos Bastidores, também relativamente próximo, ironizou o slasher da década de 1980 e debateu de maneira irônica a temática da final girl, reflexão estabelecida com ainda mais rigor anteriormente, no enigmático O Segredo da Cabana, produção metalinguística que problematiza vários segmentos do terror.  Uma das mais atuais abordagens é a nona temporada de American Horror Story, intitulada 1984. O último episódio, intitulado Final Girl, reflete o arquétipo ao estilo caótico de Ryan Murphy, tendo todos os seus problemas de sempre no desenvolvimento de histórias, mas suficientemente crítico na atualização deste padrão de personagem.

Voltemos para as scream queens.  Historicamente, o termo designa donzelas em perigo, terminologia que para os adeptos ao feminismo de qualquer vertente, é uma abordagem dramática ultrapassada. Fay Wray foi uma das primeiras: em King Kong, de 1933, a atriz precisou caprichar nos gritos ao ter que lidar com a desconhecida e monstruosa criatura que é retirada de seu espaço natural por ambiciosos homens de negócios. No intenso Psicose, de Alfred Hitchcock, Janet Leigh protagoniza a eletrizante cena do chuveiro, num desempenho dramático que depende bastante dos seus gritos para impactar. Tais exemplos são as bases. O conceito de scream queen, no entanto, é mais amplo, pois designa também a aparência frequente de uma atriz em filmes de terror, geralmente como protagonista. Dentro deste parâmetro Jamie Lee Curtis, nos anos 1970 e 1980, ocupou o primeiro lugar deste segmento. Esteve em Halloween, Halloween 2, Trem do Terror, Baile de Formatura, etc. Entre as décadas de 1990 e 2000, tivemos Neve Campbell (quatro vezes) e Jennifer Love Hewitt (duas vezes) como as representantes mais notáveis no posto de final girl. As heroínas de Halloween e Pânico, por sinal, retornam em 2012 e 2022 para as novas incursões das franquias. Jamie Lee Curtis, em 2018, retornou como Laurie Strode, força incontrolável da natureza diante do monstro que a aterrorizou há quatro décadas, desde o Dia das Bruxas de 1978.

Em sua longa tradição, a garota final do slasher também tem como característica, alguns nomes que podem ser considerados unissex. Sidney, Christian, Avery, dentre outros. Representantes, como já mencionado, de uma quebra da ordem vigente, elas são mulheres capacitadas e respiram independência, mas nestas tramas, precisam ser contidas pela alegórica presença do inimigo mascarado que representa destruição e repreensão. Em constante transformação desde as suas primeiras aparições, a final girl é um arquétipo conectado com as necessidades políticas e sociológicas de seus respectivos tempos históricos. Por ser um subgênero reformulado e sempre de volta aos esquemas de produção da nossa agitada indústria cultural, é provável que essas personagens ganhem mais configurações em suas próximas batalhas, tanto com antagonistas novos quanto na luta pela sobrevivência com os seus e nossos velhos antagonistas do passado, vide a probabilidade de retorno para Jason, Freddy, Pinhead, Candyman, dentre outros. Para encerramento, deixo um questionamento para vocês leitores. Não deixe de comentar: qual a sua final girl favorita?

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