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Entenda Melhor | Doctor Who: Os Doutores de Russell T. Davies

Analisando as jornadas de Christopher Eccleston e David Tennant.

por Rafael Lima
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Na Era Davies, dois atores estiveram no comando da TARDIS: Christopher Eccleston como o 9º Doutor e David Tennant como o 10º Doutor, ambos já tendo trabalhado antes com o produtor. Eccleston trabalhou anteriormente com Davies na minissérie The Second Coming, sobre a “segunda vinda” [de Cristo], enquanto Tennant fez a sua primeira parceria com o produtor na Minissérie Casanova, que dramatizava a vida da figura histórica do título. Ambos os projetos tocariam em temas que seriam trabalhados de uma forma ou de outra no Doctor Who de Davies.

O grande diferencial que o Showrunner traria para os seus Doutores, em relação às encarnações da Série Clássica, é que o trauma é um fator extremamente importante em suas jornadas dramáticas. O 9º Doutor de Christopher Eccleston é apresentado como um veterano de guerra sofrendo de culpa de sobrevivente e parecendo se habituar a ser o Doutor novamente após encarar os horrores de uma guerra. Além disso, essa foi uma encarnação do Time Lord que está reaprendendo a lidar com a humanidade, e por isso nem sempre é muito paciente conosco. O 9º Doutor visivelmente se destaca de qualquer outra encarnação pela sobriedade de seu figurino, o que se comunica com a natureza mais retraída dessa versão de personagem.

 Eccleston permaneceu por apenas uma temporada como o 9º Doutor, partindo da série após desentendimentos com a BBC e com o próprio Showrunner da série. O ator foi então substituído por David Tennant, que permaneceu como o 10º Doutor por três temporadas e um ano de especiais, até deixar o programa, ao lado de Davies. O Doutor de Tennant foi uma versão do protagonista que, em primeira instância, se comunica mais diretamente com os Doutores da Série Clássica, começando por seus trajes. O 10º Doutor seria um Time Lord mais alegre, orgulhoso, e abertamente excêntrico. Embora tenha superado a sua culpa de sobrevivente, ainda lida com outros aspectos dos traumas de guerra.

O 9º Doutor (Christopher Eccleston) e o 10º Doutor (David Tennant). 

O produtor usa a Time War para estabelecer o Doutor como o “Último dos Time Lords, um homem atormentado pelos horrores de uma guerra que foge à nossa compreensão. Ele também está lidando com a culpa do genocídio que cometeu. Nesse ponto, é interessante como os traumas do protagonista costuram as Eras do 9º e do 10º em uma narrativa coesa. Diferente de outros Showrunners que ficaram por longos períodos na série, passando por mais de um protagonista — como Jonathan Nathan Turner na Série Clássica, e Steven Moffat na Série Moderna –, Davies não mudou o tom ou a estrutura da série quando houve uma substituição de Doutores. A jornada do 10º Doutor é simplesmente uma extensão da jornada de seu antecessor, apesar das diferenças de personalidade e propostas entre as duas encarnações. Se o 9º Doutor sofre de forma mais clara com o remorso de guerra, o 10º traria um ar mais confiante que só esconde os traumas que lá estão. Dessa forma, em um exercício de imaginação, não é tão difícil imaginar uma realidade em que Eccleston permaneceu na série até o fim se desenrolar semelhantemente ao que aconteceu de fato. Uma afirmação que eu não faria em relação aos Doutores da era Turner ou da era Moffat, por exemplo.

Paradoxalmente, o showrunner tornou o Doutor mais alienígena e ao mesmo tempo mais humano. O Doutor de Davies é mais que um andarilho espacial, pois há algo mítico nele. A Série Clássica já tinha adotado esse movimento em seus anos finais com o 7º Doutor (Silvester McCoy) sendo conhecido por entidades divinas tão velhas quanto o tempo, e alegando ser muito mais que um outro Time Lord, mas a Nova Série eleva essa abordagem. O Doutor é agora o Último dos Time Lords, e se os Time Lords eram vistos como um povo poderoso, é natural que, ao se tornar o único sobrevivente da espécie, a existência do Doutor seja vista como incrível, como dito por um personagem em um dos primeiros episódios do revival. Mas não é só esse status que dá essa aura ao protagonista. Em Rose, o primeiro contato que Rose Tyler (Billie Piper) tem com a história do Doutor é através de uma lenda urbana sobre a influência dele na história humana; da mesma forma os vilões de The Family Of Blood conhecem o Gallifreyano por lendas de um homem que luta contra deuses e demônios. Na Era Davies, o Doutor é uma figura quase mitológica, e não apenas “mais um alienígena“.

Entretanto, o 9º e o 10º Doutor são muto mais humanizados do que seus antecessores, já que Davies permite vermos o personagem lidando com dramas mais pessoais. Não que os Doutores da Série Clássica não tivessem os seus próprios crescimentos e arcos dramáticos, mas eles eram tratados de forma mais distante, o que não é o caso com os Doutores da Era Davies. O ódio que o 9º Doutor nutre pelos Daleks quase o faz executar uma criatura a sangue frio em Dalek; da mesma forma que as criaturas ativam um evenidente estresse pós-traumático. O 10º Doutor se apaixona por sua Companion Rose, e a sua Era se encerra com uma série de histórias que giram em torno do medo que ele tem da morte (ou regeneração). A exemplo dos deuses gregos, as falhas e virtudes dos Doutores de Davies partem de lugares bem humanos, apesar da mítica que os cerca.

Christopher Ecceston entregou com o seu 9º Doutor um Time Lord emocionalmente vulnerável, e justamente por isso, capaz de ser implacável como poucos Doutores, mas também de valorizar a vida de tal forma que uma vitória sem mortes era capaz de lhe arrancar lágrimas. David Tennant, por sua vez, trouxe um 10º Doutor mais jovial e seguro de si, mas que se tornava falho quando se entregava a impulsos narcísicos, e justamente por ser um herói falho, tornava-se ainda mais heroico ao superar os seus demônios internos. Dois Doutores muito diferentes, mas ligados por traumas e jornadas complementares.

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