Um dos grandes clássicos do cinema, não apenas no reduto das tramas aterrorizantes, mas da chamada sétima arte de maneira geral, O Exorcista é indiscutivelmente um filme gigante. Podem até haver discordâncias aqui e ali sobre esse panorama de adjetivos que o colocam numa condição de “perfeição”, mas convenhamos, é impossível assistir aos seus 123 minutos sem se comover com a maneira na qual os personagens precisam lidar com os seus dilemas. É um texto dramático muito cuidadoso ao permitir que haja empatia por parte de nós, espectadores. Na direção, William Friedkin transformou uma história que podia ser banalizada por um profissional com menor talento e experiência numa obra-prima do horror. Com uma equipe escolhida cuidadosamente para fazer dessa narrativa uma viagem de catarse intensa, o realizador contou com a presença de Owen Roizman na direção de fotografia, Gene Rudolf e Bill Malley no design de produção, Marcel Vercoutere na gerência dos efeitos especiais, Mike Oldfield na trilha sonora, dentre outros profissionais que assumiram os efeitos sonoros, visuais, a maquiagem, os figurinos, a edição, equipe que ajudou o cineasta a construir a sua ousada visão sobre a narrativa que mudou a maneira de pensar o sobrenatural no cinema numa época ainda dominada pelos lobisomens, vampiros e demais monstros da Hammer e suas narrativas escalafobéticas.
Como apresentado de maneira objetiva por Mark Kermode em O Exorcista: Segredos & Devoção, publicado numa edição suntuosa da Darkside Books aqui no Brasil, em sua época de lançamento, muitas tensões dominavam o tecido social do filme. Embates raciais, sociais e geracionais eram questões constantes. Charles Manson transformou a maneira como a sociedade, já antipatizada, via os hippies e os desdobramentos de Woodstock. As pessoas se questionavam onde tinha ido parar os ideais de paz e amor desses que pretendiam mudar o mundo. Os mutilados do Vietnã perambulavam por todo canto, numa guerra que só trouxe dor e prejuízo ao país. A presidência de Richard Nixon, caótica, culminaria numa posterior renúncia, a primeira de um presidente da nação imperialista. Em 15 de novembro de 1972, o Papa Paulo VI demonstrava a sua preocupação sobre a manifestação do maligno no mundo, em um pronunciamento que coadunou com o lançamento posterior do clássico em questão, uma história sobre uma menina branca possuída, dominada por um mal obsceno, que destratava sua mãe e desrespeitava o divino. Escrito por um católico, dirigido por um cineasta judeu e financiado por um estúdio que representava o ápice do poder capitalista, O Exorcista se tornou um fenômeno de crítica e bilheteria. Criticado pela direita conservadora e por religiosos, a narrativa na realidade era otimista, pois no final, o mal é vencido e o “estranho” e “abominável” passam pela eliminação necessária para o reestabelecimento da ordem. Foi um filme que não só arranhou, mas destroçou o falido “Sonho Americano”, tão caro aos estadunidenses. Por isso causou tanta controvérsia.
O filme tem como ponto de partida, o romance homônimo de William Peter Blatty, escritor que também assumiu o roteiro da tradução cinematográfica. Desenvolvido com ritmo e riqueza de detalhes, o livro é um clássico da literatura de terror que provocou controvérsias e fascinação desde seu lançamento em 1971, ainda motivo de debates e retomadas na contemporaneidade, haja vista a insistente produção de histórias tendo o exorcismo como temática. Em suas 320 páginas, o texto gravita em torno da possessão demoníaca de uma jovem garota, Regan MacNeil, e dos esforços desesperados de um jovem padre, Damien Karras, para salvar sua alma, um homem que atravessa crises de instabilidade em sua fé. Dentre os debates mais proeminentes, O Exorcista traz reflexões contundentes sobre o bem e o mal, a fé e a ciência, e a natureza da humanidade. De maneira sábia, Blatty habilmente retrata essas dicotomias por meio as figuras ficcionais do Padre Karras, um psiquiatra jesuíta cético, e do Padre Merrin, um experiente exorcista que acredita firmemente no poder do mal. No enredo, logo se estabelece uma dualidade entre o mundo natural e o sobrenatural, onde a ciência e a religião colidem vertiginosamente.
Em seu desenvolvimento, o romance nos apresenta o Padre Karras, em sua luta pessoal contra suas próprias dúvidas e fraquezas, personagem que até certo ponto simboliza a racionalidade e o questionamento científico. Em sua abordagem pragmática para os fenômenos inexplicáveis que testemunha inicialmente, ele rejeita qualquer explicação sobrenatural, no entanto, precisa mudar de posicionamento à medida que a história avança e o mal se intensifica, destroçando a vida da jovem Regan, possuída pelo demônio Pazuzu. Karras é forçado a confrontar suas próprias limitações e a considerar a realidade do mal absoluto, mesmo diante dos questionamentos em torno da sua fé. Por outro lado, Padre Merrin, mais experiente, representa a fé inabalável e a convicção na existência do mal supremo. Ele é o personagem que crê absolutamente na existência de entidades demoníacas. A sua sabedoria se opõem à abordagem cética de Karras, destacando a importância da espiritualidade e da crença para combater forças além das trevas que devastam a existência das vítimas desse romance psicologicamente desconcertante.
Pela união desses dois personagens contrastantes, a narrativa reflete a luta universal entre a luz e a escuridão, o céu e o inferno, que permeia a alma de Regan durante sua possessão e tem tudo para um desfecho trágico para todos os envolvidos. Um dos pontos mais interessantes do ponto de partida literário, responsável por tornar o roteiro uma grande história não apenas de horror, mas dramaticamente bem estruturada, é a interpretação dos significados em torno da fé e do sacrifício. O sacrifício do Padre Karras, tanto físico quanto espiritual, em sua tentativa de salvar a alma de Regan, levanta a questão fundamental sobre até onde estamos dispostos a caminhar em prol do outro. Além disso, a representação da possessão demoníaca de Regan também serve como uma metáfora poderosa para os tumultos internos e a luta contra o mal que reside dentro de cada um de nós, bem como as questões contextuais que dominavam o tecido social, político e, por sua vez, cultural, da época em que a história foi publicada. A brutalidade dos eventos sobrenaturais contrasta fortemente com a inocência e vulnerabilidade da jovem possuída, bem como dos demais, testemunhas de momentos de horror absoluto, em páginas que destacam a fragilidade da condição humana diante de forças que estão além da nossa compreensão.
A inspiração por trás de O Exorcista é bastante curiosa e remonta a um exorcismo documentado que ocorreu em 1949, nos Estados Unidos. Amplamente divulgado na mídia sensacionalista da época, o “caso real” envolveu um garoto de 14 anos de Maryland, conhecido pelos pseudônimos “Robbie” ou “Roland Doe” em relatos subsequentes para proteger sua identidade. Inicialmente atribuído a problemas psicológicos, distúrbios emocionais ou desordens mentais, os sintomas manifestados pelo garoto, que iam desde aos movimentos incontrolados, vozes guturais aos objetos se movendo sem explicação aparente e aversão a ícones religiosos, logo foram interpretados como possessão demoníaca, veredicto que levou a família a buscar a ajuda de representantes católicos para colaboração diante da situação inusitada. Foi com essa trama escabrosa que Blatty se inspirou para criar o enredo do romance e, consequentemente, do filme. O autor, que antes de se dedicar à literatura era roteirista e redator, utilizou sua habilidade para construir uma trama envolvente, que nos repele pelo seu assombro, mas ao mesmo tempo, nos deixa presos numa teia de medo, paranoia e horror diante do mistério em torno dos acontecimentos. Sagaz, ele explora não apenas o horror físico da possessão demoníaca, mas também a luta interna dos personagens contra seus próprios medos, culpas e dilemas morais.
A personagem central, a jovem Regan MacNeil (Linda Blair), se torna o catalisador de uma batalha épica entre o bem e o mal, confrontando veementemente os limites da razão e da fé. A presença do padre Damien Karras, um homem atormentado por sua própria crise de fé e seus demônios interiores, adiciona camadas de complexidade psicológica à narrativa, reforçando a dualidade entre o divino e o profano. Ademais, a ambientação da história em um contexto católico e as referências teológicas presentes no enredo, juntamente com a icônica cena do exorcismo final, onde o padre Merrin e o padre Karras enfrentam a entidade demoníaca que possui Regan, contemplamos uma passagem literária carregada de intensidade, representação devidamente delineada não apenas da luta entre a espiritualidade e a materialidade, mas também a redenção e o sacrifício necessários na luta de todos os envolvidos para combater as forças do mal. Enquanto escrevo, caro leitor, potencializo as memórias com a trilha sonora marcante do filme a me acompanhar na escrita, num misto de emoção, arrepio e certeza de estar diante de uma análise sobre uma narrativa eficaz, digna de ser parte dessa série de textos sobre lições de dramaturgia no cinema.
É inegável que O Exorcista é uma trama tecida com cautela para estabelecer aos leitores e, aos espectadores de sua tradução cinematográfica, um painel de imagens perturbadoras e diálogos impactantes, sequência de acontecimentos ficcionais que nos colocam diante de reflexões sobre os terrores ocultos que residem no âmago da condição humana. É uma história sobre o horror da incerteza, a falta de habilidade para lidar com eventos desconhecidos, bem como uma combinação de elementos do sobrenatural com a introspecção psicológica, O Exorcista é uma narrativa sobre a fragilidade da mente e a força da fé diante do desconhecido vão de encontro aos tabus e crenças. Onde há dúvida, por sua vez, as certezas demoram, mas se revelam. Um terrível mal toma o corpo, a mente e transforma em vítimas todas as pessoas que se envolvem com a situação, numa aterrorizante jornada entre onde o desconhecido traça as suas artimanhas para fazer da vida alheia um inferno absoluto. A entidade, citada ao longo da narrativa, é o demônio Pazuzu. Conforme os manuais de demonologia,
Mesmo tendo produzido outras coisas, O Exorcista é um marco definitivo do legado de William Peter Blatty. Nascido em 1928 em Nova Iorque, o escritor cresceu em um ambiente marcado pela fé católica. A sua educação rígida e os ensinamentos religiosos moldaram sua visão de mundo e influenciaram profundamente sua escrita, como podemos contemplar tanto no romance quanto no roteiro entregue para William Friedkin filmar. Blatty frequentou a Universidade de Georgetown, onde estudou inglês e filosofia, e posteriormente serviu no exército dos Estados Unidos. Sua experiência militar e acadêmica contribuíram para enriquecer sua perspectiva e aprofundar sua compreensão da natureza humana, elementos que se refletiriam em suas futuras composições. A narrativa em questão aqui provocou tanta polêmica e fascinação que logo se tornou um ponto de partida para outros escritores, num processo que estabeleceu padrões para a elaboração e consumo do horror de ordem sobrenatural. Um marco, sem sombra de dúvidas.
Mais tarde, o autor concebeu o interessante Legião, publicado em 1983, base para O Exorcista 3, pequena pérola do horror, eclipsada pelo desastroso e desnecessário O Exorcista 2: O Herege. Como já mencionado, além de sua carreira na literatura, Blatty também deixou uma marca significativa como roteirista, premiado com a cobiçada estatueta do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado pelo filme, uma raridade no âmbito do horror, gênero não respeitado pelos membros que fazem parte da cerimônia mais famosa do cinema nos Estados Unidos, com fortes ramificações para o mundo todo, afinal, estamos falando também do imperialismo cultural estadunidense. Junto ao processo de composição de personagens esféricos, linhas de diálogos firmes, curva dramática poderosa e estrutura dramática geral inquietante, por isso, habilidosa para o estabelecimento da catarse em nós, espectadores, o dramaturgo possuía a habilidade de traduzir sua visão narrativa para a tela, numa eficiente combinação de drama e horror, com destaque também para a competente atenção aos detalhes ao tecer atmosferas assustadoras, fez dele um mestre do suspense e do terror visual. Muito além da base para realizadores e suas composições estéticas em traduções cinematográficas, ele conseguiu traçar em seus enredos sombrios, questões filosóficas e teológicas profundas, permitindo debates em diversas frentes.
Em 1974, o filme foi agraciado com o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Para compreender os motivos que levaram o roteiro adaptado de O Exorcista a ser reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, é essencial analisar a qualidade da tradução do romance para as telas do cinema. William Peter Blatty conseguiu transpor com maestria o impacto emocional da história para o formato cinematográfico, em seu roteiro que passou por um processo de reescrita, como versarei mais adiante. A profundidade psicológica dos personagens, a atmosfera de tensão e horror, e as questões filosóficas e teológicas abordadas no livro foram habilmente traduzidas para a linguagem visual, mantendo a base estrutural intensa do material que serviu como ponto de partida. Além disso, o roteiro se destaca pela sua estrutura narrativa sólida e pela construção cuidadosa dos personagens. Há uma adequada progressão da trama, com tensão crescente e um dos recursos mais importantes para um texto dramático: a complexidade psicológica dos personagens. Ademais, a riqueza de detalhes na descrição das cenas de exorcismo e a profundidade das reflexões sobre o mal e a fé acrescentam camadas de significado à narrativa, juntamente com rubricas que permitiram William Friedkin ser inovador com a sua equipe de recursos visuais e sonoros.
Há um livro bastante interessante, não apenas para fãs, mas também para os estudiosos interessados em compreender mais profundamente as lições de dramaturgia nessa narrativa assertiva. Publicado na época de discussões sobre o filme O Exorcista: Do Romance ao Filme, de William Peter Blatty, foi lançado aqui no Brasil pela editora Nova Fronteira. Em sua estrutura, temos um elucidativo texto de abertura, com apresentação da pesquisa para a elaboração do romance, logo depois, a primeira versão do roteiro, um texto dramático que resultaria numa trama de quase quatro horas de duração, seguido das explicações sobre as modificações realizadas e uma versão definitiva do roteiro que deu se transformou no filme que conhecemos. Além de ser uma aula de cinema para curiosos, é também um relato de crítica genética para acadêmicos, curiosos e outros interessados em conhecimentos gerais. O quadro a seguir traz alguns trechos do capítulo Porque Se Modificou o Roteiro. São apenas alguns trechos, combinado? Para que possamos compreender as escolhas de Blatty, em muitos casos, pressionado pelos produtores, ao longo do processo criativo que lhe rendeu o Oscar e outras honrarias na cobiçada categoria de Melhor Roteiro Adaptado. Observe.
E, antes de finalizarmos, proponho algumas reflexões sobre tradução intersemiótica, um termo pouco utilizado por críticos de cinema quando lidam com filmes que são estruturados com base em narrativas literárias. A teoria da tradução intersemiótica é uma abordagem fascinante que transcende os limites tradicionais da tradução textual e desafia nossa compreensão convencional da comunicação entre diferentes formas de linguagem. A tradução intersemiótica, também conhecida como tradução transmidiática, refere-se à transferência de uma mensagem de um sistema semiótico para outro, mantendo sua estrutura e ideia geral. Ela envolve a recriação da mensagem em um novo código semiótico, como transformar um poema em uma pintura, um filme em uma peça teatral ou uma obra musical em um filme de dança. O termo foi cunhado por Jurij Lotman, um renomado teórico da semiótica, para descrever esse processo de transposição entre diferentes meios de expressão. Esse conceito tem as suas raízes na noção de que a comunicação humana não se limita à linguagem verbal, mas abrange uma variedade de formas de expressão visual, auditiva e sinestésica. Esta abordagem emergiu no contexto da semiótica e da teoria da literatura do século XX, sendo amplamente influenciada pelos trabalhos de pensadores como Roman Jakobson, Mikhail Bakhtin e Roland Barthes.
A busca por uma compreensão mais abrangente da interação entre diferentes linguagens artísticas e midiáticas levou ao desenvolvimento e refinamento da teoria da tradução intersemiótica ao longo do tempo. É uma teoria complexa, mas importante para compreendermos um debate constante quando lidamos com filmes inspirados em livros. Sabe aquele uso do termo fidelidade? Então, isso já é difícil nos relacionamentos humanos, ainda mais no processo de tradução de um livro para qualquer outro suporte narrativo. É um termo, por sinal, “proibido” academicamente. O motivo? Simples: a impossibilidade de um conto, crônica ou romance ser transformado numa trama audiovisual “fiel”. Hoje nem se utiliza mais com tanta frequência o termo adaptação, sendo o mais adequado “tradução”, o que de fato acontece quando um roteirista leva uma história nos formatos mencionados para outras estruturas. Pense em você, eu, e os demais leitores desse texto: cada um vai traduzir o conteúdo conforme o seu contexto político, social, cultural, em suma, com base em sua visão sobre o mundo. Sendo assim, se prender ao ideal de “fidelidade e originalidade” é um esquema de aprisionamento narrativo, capaz de minar a criatividade. Quando assistimos uma tradução, contemplamos uma interpretação, que pode ser correlata com a nossa ou um contraponto, algo que faz da arte um campo de expressão humana a ser considerado um território tecido por diversidades. Essa teoria, também conhecida por transmutação de códigos, é um campo teórico que envolve a conversão de signos de um sistema semiótico para outro, mantendo ou transformando o significado de seu ponto de partida. Mas observe: ponto de partida, num processo de tradução que se estende além das palavras escritas, alcançando imagens, sons, gestos e demais manifestações simbólicas.
Essa é somente a superfície da reflexão, caro leitor, pois continuaremos com mais detalhes ao longo das considerações de Escrita Subjetiva: Lições de Dramaturgia em De Olhos bem Fechados, uma análise do derradeiro filme de Stanley Kubrick.