As produções cinematográficas e televisivas não dependem apenas da câmera para a realização de imagens e do som para dar maior amplitude de significados ao que é narrado. O campo da trilha, do som e da direção de fotografia são elementos fundamentais numa realização audiovisual, tal como design de produção, setor conhecido como direção de arte no Brasil, etapa que também possui relevância semelhante. Nos primórdios do cinema enquanto indústria, o profissional deste setor sequer era mencionado nos créditos de produção, mas com o avanço das técnicas de realização e a compreensão da necessidade de organização do campo no bojo dos bastidores de um filme, o design de produção[1] ganhou maior delineamento e estudos para torná-lo um campo cada vez mais eficaz.
Há cineastas que realizam a construção da concepção do design de produção antes de iniciar os planejamentos na direção de fotografia, tendo em vista se organizar melhor na dinâmica de produção. Quentin Tarantino, ao dirigir Kill Bill Vol. 1 e Vol. 2, trabalhou desta maneira, pois acreditava que enriqueceria os demais setores de produção ao passo que os filmes ganhassem forma. O profissional que atua neste segmento ganhou espaço com os filmes épicos do cinema clássico hollywoodiano, apesar de sabermos que a construção cenográfica de George Mélies nas produções do cinema não sonoro já eram protótipos do que viria a ser feito mais adiante, tendo recursos como efeitos especiais e outras técnicas próprias da indústria audiovisual.
Para compreendermos o campo é preciso pensar na concepção visual de alguns filmes. 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, por exemplo, é uma revolução na maneira como a indústria do cinema pensou o “espaço”. Antes do cineasta as produções deste estilo eram geralmente filmes B, repletos de imprecisões e cenários teatrais. Juntamente com o trio formado por Ernest Archer, Harry Lange e Anthony Masters (os profissionais que assinaram o design de produção do filme), Kubrick formulou um esquema visual que concebeu um modelo para outros filmes bem sucedidos, tais como Alien – O Oitavo Passageiro, de Ridley Scott e até mesmo o recente Gravidade, de Alfonso Cuarón.
Em As Horas, de Stephen Daldry, a personagem interpretada por Nicole Kidman encontra-se numa zona psicológica abissal e perturbadora. Acometida pela esquizofrenia, Virginia Wolf é enquadrada numa sala toda composta por tons opacos, mas há um jarro de flores num tom próximo ao roxo. Como nada dentro de uma produção cinematográfica é posto aleatoriamente, percebemos que as cores utilizadas indicam o estado depressivo do personagem. A mesma atriz, em outro cenário, mas desta vez, no polifônico e metalinguístico mundo do musical Moulin Rouge – Amor em Vermelho, de Baz Lurhmann, contracena com o seu futuro par romântico, Christian (Ewan McGregor), num quarto do famoso cabaret, adornado por elementos góticos, barrocos, românticos e pós-modernos, numa mescla de estilos que pretende destacar a proposta do filme: uma história de amor que atravessa vanguardas e tendências do final do século XIX ao início do século XXI.
Tais elementos presentes em ambas as produções, à guisa de preâmbulo, nos reforça a importância do design de produção no esquema de uma realização cinematográfica (e também audiovisual, o que engloba, de certa forma, videoclipe, televisão, peças publicitárias, etc.). Responsável por “gerenciar” os elementos visuais de um filme, o design de produção dialoga com outros setores que estão dentro do seu espaço: a maquiagem, o figurino e a cenografia. A função do designer é colaborar, através da cor, da textura e de outros elementos da imagem, a atmosfera desejada pelo cineasta e por seu diretor de fotografia. Juntos, esses profissionais estabelecem um estilo que tem por objetivo situar as imagens dentro da proposta do filme/série/videoclipe[2].
1 – Design de produção: como é e como se faz
Em sua dissertação de mestrado, a pesquisadora Claudia Stancioli Costa Couto afirma que o cinema é uma modalidade artística que um filme é uma história contada visualmente e que o design de produção define, executa e controla a visualidade de uma produção, numa parceria constante com os responsáveis pela fotografia, efeitos visuais e gráficos, figurinistas e maquiadores. Ao longo de seu estudo, Couto (2014, p.31) reforça que antes do conceito de design, “a indústria falava apenas de cenário”. Como exposto na seção anterior, com a evolução do som, o surgimento do cinema em cores e a prática do technicolor, o conceito se expandiu e ganhou reajustes.
Escadaria da matriarca interpretada por Sally Field em Brothers and Sisters: os quadros são a representação de uma família apegada aos laços da memória. Já na imagem posterior, a memorabília reforça o poder aquisitivo de uma família que viaja bastante e sempre traz objetos para decoração dos lugares que visita. Na terceira imagem a equipe de cenógrafos ajusta a impressão das imagens que representam o mármore referente ao período romano antigo na série Os Bórgias.
É preciso estar atento, no entanto, para a amplitude do termo, tendo em vista não criar confusão, pois o conceito de design atravessa diversas áreas que tangenciam a visualidade audiovisual. Assim, compreender o trabalho de um designer de produção para cinema e televisão é estar atento ao que diz Lobrutto (2002, p.1) em suas considerações no que diz respeito ao exercício desta etapa: “designer de produção é a arte visual da narrativa cinematográfica”. Simples e objetiva, a “definição” coaduna com o que Hamburger (2014, p.09) diz sobre ser o objetivo do designer de produção, isto é, o profissional que tem como tarefa “a construção de uma imagem que faça o espectador acreditar naquilo que vê e aceitar o universo ficcional apresentado”. Responsável por determinar alguns caminhos que serão trilhados pelo diretor de fotografia, o designer de produção está, como apontado anteriormente, em várias etapas de uma produção, sendo muitas vezes o ponto de partida para as filmagens. Ao criar um conjunto visual coeso, ele apoia a história que será contada aos espectadores, tendo em vista comunicar através da composição imagética as camadas de significação de uma história. Em suma: precisa dar conta de tudo que está dentro do enquadramento.
Uma das suas principais funções deve ser subsidiar a equipe de produção com dados para o avanço da pré-produção, dentre eles, o preparo do estúdio, as locações internas e externas e a montagem de todos os ambientes que serão contemplados na narrativa. Historicamente, o termo remonta aos trabalhos de Cedric Gibbons nos filmes de Douglas Fairbanks, mas foi com os trabalhos de William Cameron Menzies para Victor Fleming no épico …E o Vento Levou que a função ganhou relevância industrial e tornou-se uma espécie de obrigação para as produções que viriam posteriormente[3].
Conforme aponta Burch (1992, p.25), “existem dois espaços no cinema, isto é, o que existe no quadro (tudo o que o olho percebe dentro da tela) e o que existe fora do quadro (projeções imaginárias e espaço físico atrás da câmera e do cenário)”. Tais afirmações coadunam como que Couto (ibidem, p. 40) traz sobre o design de produção representar “um papel importante em qualquer produção”, pois a sua função “é fornecer à audiência os indícios visuais que estabelecem e realçam o conteúdo de um filme”. O processo se inicia com uma reunião entre o diretor, o produtor e o designer[4].
Com os conceitos definidos, o designer sai em busca das atividades que farão parte do seu processo participativo na realização do produto, tendo em vista organizar a sua equipe que contará com construtores de cenários, pintores, artesãos, escultores, coordenadores de efeitos, além de outras funções necessárias para o devido trabalho deste setor no bojo de uma produção. Para Couto (ibidem, p. 66), “a equipe do design de um filme deve assegurar que o cenário e os suportes estejam dentro do orçamento da produção”, tendo em vista evitar problemas de ordem administrativa com o produtor, uma função bastante determinante nos bastidores de um filme ou série. A sua responsabilidade, então, é “conceber e transmitir ideias criativas e informações técnicas precisas para uma grande variedade de pessoas, pois elas precisam providenciar os itens para a produção com estimativas detalhadas de custo para dar conta do orçamento e do cronograma[1]”.
No artigo “O design de produção em Jack Brown, de Quentin Tarantino”, o especialista Mauro Baptista perpassa os elementos visuais de um dos filmes mais interessantes do cineasta nos anos 1990, tendo ainda o direcionamento didático de esboçar uma lista com doze coisas que uma pessoa interessada em design deve conhecer para realizar um bom trabalho: movimento e metodologia da Arte, estilos arquitetônicos, design de interiores e decoração, estilo de móveis, dramatização e performance, processos de produção, processos de iluminação, ângulos de câmera, técnicas de modelo e desenho em escala, técnicas de pós-produção, processos e estrutura de produção, habilidade para composição e criação em computadores.
Diante do exposto, o leitor já possui os caminhos para trilhar a análise pormenorizada dos três filmes que são foco deste artigo. Após a análise que busca traçar uma análise geral do design de produção destas obras que possuem em comum, uma casa como espaço cênico, o texto pretende observar como os cineastas que assumiram tais produções investiram neste setor e entregaram ao público os elementos visuais necessários para impactá-los, haja vista o teor soturno, sombrio e violento das três produções.
As flores de Virginia Wolf em As Horas representam a sua depressão, num contraste do roxo com os móveis tabaco. Nicole Kidman, mais uma vez, agora no quarto com elementos barrocos, neoclássicos, românticos e inspirações na cultura grega, representação do que nos estudos de linguagem chamamos de pastiche.
Desenvolvido pelo respeitado Robert Clatworthy, desenhista de storyboards na época, Psicose contou bastante com os seus cenários para a composição dos temas abordados pelo roteiro inspirado no romance homônimo de Robert Bloch. Cenas no chuveiro e música tema famosa são aliados do Bates Motel, estabelecimento que fica ao lado da casa cenográfica da família Bates, construção que teve como base o quadro Casa do Lado da Ferrovia, de Edward Hopper, obra de 1925. Estudioso da Teoria e História da Arte, o profissional se aliou a Joseph Hurley, outro grande nome da época, para compor a fachada da casa com linhas delgadas horizontais e traços que Hitchcock chamou de “gótico da Califórnia”. Janelas em óculo, telhado com detalhes específicos somam bastante ao seu interior, repleto de elementos que denotam abandono.
Ao longo do sexto ano da série House, o sarcástico protagonista é encaminhado para um hospital psiquiátrico, tendo em vista se recuperar de uma crise. Numa busca por elementos específicos da costa oeste estadunidense, Jeremy Cassells, designer de produção da temporada, buscou inicialmente um prédio que não tivesse uma estrutura assustadora, sombria, tal como o estado psicológico do personagem, mas que também não fosse iluminado demais, talvez relativamente soturno. Foi com esta ideia que ele conseguiu construir um lugar com aparência vazia, sem cair em estereótipos que remetessem ao gótico para assustar. Com maquetes construídas para pensar os ângulos e enquadramentos cuidadosamente, o designer criou o cenário antes mesmo da escalação do elenco que iria atuar no espaço em questão, bem como do elemento mais importante: o roteiro. Um dos destaques dos bastidores está na produção de gigantescos painéis fotográficos como pano de fundo da cenografia, material que teve como inspiração alguns prédios de New Jersey, aliado forte para a adequada profundidade de campo do diretor de fotografia.
No segundo ano da série criada por Ryan Murphy, os cenários, tal como a casa da primeira temporada, tornam-se personagens da história. O maior destaque deste segmento é o Briarcliff Manar, o manicômio onde os conflitos e necessidades dramáticas dos personagens gravitam para nos contar as terríveis histórias que mesclam lendas, métodos científicos bizarros, vinganças e maldições. Geralmente há bastante azul, branco e verde, em tonalidades claras, nos ambientes de filmes e séries que abordam espaços médicos. Para a composição desta segunda temporada, a cerâmica das paredes nos remete à pele de repteis, reforçada pela tintura ao estilo “vidro”, brilhante e responsável por realçar o tom da aplicação. Com ajuda de Ellen Brill, cenógrafa da temporada, Worthing compõe os espaços com peças antigas e estilo underground. Com uso constante de azul, bege e cinza, o principal local de interação dos pacientes nos remete a uma estação de trem. Os espaços contam ainda com arcos e tijolos no estilo românico e vitoriano, trechos dilapidados, referências aos anos 1920 e 1930, tudo em “harmonia” para dar aos episódios o tom de atmosfera cavernosa.
Visualmente impecável, Os Bórgias, produção televisiva de época, teve François Séguin como profissional responsável pelo design de produção. Em meio aos diversos desenhos, plantas baixas e storyboards, os envolvidos na concepção visual precisaram edificar a esplendorosa Roma numa época que circulavam 50 mil habitantes, com os papas revitalizando constantemente os espaços por meio da influência da Igreja. Com mescla entre os estilos medievais e ecos do renascimento romano, muitos cenários foram construídos com amostras de mármores impressos, orientados por desenhos técnicos e maquetes em 3D. Com cenários divididos entre um estúdio e Detroit, o filme O Homem nas Trevas nos apresenta a história de três assaltantes presos na casa de um veterano de guerra cego é claustrofóbica e muito tensa. Os corredores e os espaços, desconhecidos pelos invasores, dificultam a trajetória dos “errantes” na casa alheia. O tal homem cego, agora algoz, vai iniciar uma caçada e perseguir os três personagens, num suspense que depende bastante do design de produção. Com apoio de Pedro Luque, diretor de arte, parte da equipe, os realizadores contam com o diretor de fotografia na composição dos espaços praticamente sem luz, repleto de saídas bloqueadas e objetos de cena obscuros.
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Algumas ilustrações interessantes
O design de Dante Ferreti em Cassino. Martin Scorsese é um cineasta talentoso e privilegiado, pois sempre conta com a equipe de produção que o acompanha há bastante tempo. Seus filmes são referências para a história do cinema, principalmente pelos aspectos visuais. Com abertura que nos remete ao estilo Saul Bass, o filme realizado durante 100 dias, em locações distintas, teve Dante Ferreti como designer de produção, profissional que revelou ter assistido ao clássico Onze Homens e Um Segredo e depois ter partido para uma biblioteca e pesquisado por bastante tempo.
Sem abrir mão da tecnologia, haja vista o turbante iluminado digitalmente, os cenários de Cassino tiveram investimento pesado em mescla de estilo, tendo destaque para alguns ambientes “zebrados”, numa referência ao jeito excessivo de se viver no ambiente que de acordo com os realizadores, “a luz do dia não entrava por lugar nenhum”.
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O design de Rick Carter em Forrest Gump – O Contador de Histórias: Uma grande referência para o cinema hollywoodiano dos anos 1990, Forrest Gump – O Contador de Histórias é um filme que extrai elementos incomuns de pessoas e situações ditas normais. Rick Carter, responsável pelo design de produção do filme, afirmou na época que “o que não é o personagem e a história é trabalho do designer de produção”. Dentre tantas estratégias do filme que circula por épocas distintas, uma delas foi buscar vegetação que dialogasse com o sul do país, em determinado momento da ambientação. O interesse era atingir o espírito da época, pois segundo os realizadores, “estão sempre buscando criar o mundo perfeito”. Há uma cena com o protagonista que ele precisa ver sob o ponto de vista de alguém que presenciou um arrombamento em um quarto de hotel, na época do escândalo Watergate. Para isso, os realizadores foram até o hotel verdadeiro, estudaram o quarto, para mais adiante, estudar qual outro quarto do hotel permitiria ter acesso ao acontecimento por meio de uma perspectiva que permitisse boa visualização da situação.
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O design de Jonathan McKinstry em Penny Dreadful: A soturna ambientação de Penny Dreadful foi concebida pela equipe de produção do designer Jonathan McKinstry, responsável por trazer os espectadores para Londres, em pleno século XIX, uma era muito detalhista. Pintura e desenhos digitais fizeram uma parte da produção, realizados por um time de profissionais que tal como alegou o designer, precisa ser multidisciplinar. Com cenários que dizem muito de seus personagens, como por exemplo, o estilo minimalista de Dorian Gray, um homem que vive fora do seu “tempo” ou o ambiente de contrastes de Dr. Frankenstein. Em entrevistas, o designer afirmou que “interpretar visualmente o roteiro” é a função do profissional da área. Definição mais sucinta que essa impossível.
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O design de Dan Bishop em Mad Men: Cheia de estilos em contraste, Mad Men foi uma série que respeitosamente trabalhou os elementos da sua concepção visual. Dan Bishop, responsável pelo design de produção, trafegou entre as cores opacas dos anos 1950 e o vibrante contraste entre o azul, o vermelho e o branco, algo nas cenas dos anos 1960. Com elementos que dialogam cuidadosamente com os seus personagens, o apartamento de Don Draper possui mobília em sua maioria, formada por objetos retangulares, o escritório onde a maior parte da ação se desenvolve implanta uma escada em certo momento, tendo em vista expor algo análogo à expansão vertical no mundo dos negócios, além dos figurinos, maquiagem e objetos de cena que nos fazem mergulhar no mundo dos publicitários da época.
[1] Couto (ibidem, p. 75).
[1] Para Jeremy Cassells, designer da sexta temporada da série House, o trabalho exercido pelo profissional desta área não pode interferir no diálogo e nas falas. É preciso ser um pano de fundo “discreto e silencioso”.
[2] Na dinâmica global de produção, alguns filmes são acompanhados de vários produtos, juntamente com a campanha de divulgação (bonecos, copos, canecas, camisetas, cartazes, Making of, videoclipes, etc.), elementos que devem ter o mesmo conceito unitário do design de produção.
[3] Na primeira cerimônia do Oscar, em 1927, já havia a categoria “Decoração de Interiores”, modificada em 1947 para Direção de Arte e atualmente intitulada Design de Produção.
[4] Em ordem, o gerenciador artístico do projeto, o financiador/administrador e o criador do conceito visual da produção.