O cineasta David Cronenberg possui uma carreira sólida por ter mesclado, ao longo de sua trajetória, debates importantes sobre o corpo, a identidade, a tecnologia, dentre tantos outros temas que ocupam lugar considerável no cotidiano de seus espectadores, figuras que no processo de entrega ao entretenimento, também adentram por labirínticas zonas reflexivas que nunca os deixam indiferentes, mesmo que a experiência estética não tenha sido agradável ou atendido aos seus anseios. Sempre polêmico, engajado politicamente e embasado por sua profunda cultura literária, David Cronenberg assinou a maioria dos roteiros que dirigiu, alguns inspirados em livros tão peculiares quanto os seus filmes. Leitor voraz de romances, contos e biografias sobre os temas que trabalha em seus filmes, o cineasta também experimentou o lugar de escritor em Consumidos, lançado por aqui pela Companhia das Letras, em 2014.
David Cronenberg, um respeitável escritor!
O romance é comprovação da sua habilidade em chocar e colocar em reflexão, não apenas os leitores de imagens, mas os amantes da narratividade em texto verbal, tornando-se um eficiente “Homem das Letras” que já possui prestígio em sua jornada de cineasta, roteirista, produtor, etc. Na obra que levou sete anos para ficar pronta, o cineasta canadense traz discussões sobre personagens obcecados por tecnologia, mergulhados numa disputa perigosa que envolve tensões sociais e sexuais, trabalhadas com a intensidade que o realizador impõe em seus filmes. A atmosfera de desconfiança paira ao longo das 304 páginas da edição brasileira, traduzida com eficiência por Carlos de Arantes Leite, responsável pela minuciosa tarefa de exposição em língua portuguesa, das ideias peculiares de Cronenberg em seu romance descritivo, tomado por algum marasmo em determinadas passagens, mas sem deixar de ser crítico e reflexivo em nenhum instante, envolto numa trama emaranhada em softwares, notebooks, smartphones, etc.
Sem seguir as padronizações exclusivamente comerciais para facilitar a fluência do consumo do material literário que lhe oferta um posto inaugural nas Letras, Consumidos retrata a trajetória de Nathan e Naomi, casal de jornalistas que buscam viver na mesma intensidade que as matérias sensacionalistas cobertas em seus respectivos cotidianos. Enquanto ele investiga um curioso método de tratamento contra o câncer, registrado em imagens fotográficas que pretendem expor algo que o próprio personagem sequer imagina do que de fato se trata, ela embarca na mórbida análise do caso da filósofa Celestine Arosteguy, francesa assassinada brutalmente, com sinais de canibalismo que não apenas a consumiu, mas começa a transformar a existência dos personagens numa travessia pantanosa cheia de incertezas e bizarrices. Com alguns trechos travados pela minuciosa postura de Cronenberg na descrição dos detalhes, ainda assim, a narrativa impacta. Tanto por sua corajosa abordagem quanto pela atualidade dos temas.
Sabemos que David Cronenberg é um cineasta voltado ao estudo do comportamento humano face ao advento das novas formas de tecnologia como elementos dominante em nossa vida cotidiana, também responsáveis por estabelecer situações de dependência, alienação e promoção da destruição física e psicológica dos corpos e algumas vezes, das identidades que estes carregam. O seu cinema entretém, mas não significa que devamos ficar apenas nas camadas dramáticas mais superficiais, do destino dos personagens e das emoções que pululam a cada ato. Sua literatura é a mesma coisa. Não é uma experiência de começo, meio e fim padronizados, mas também não é um conjunto de reflexões filosóficas herméticas, fechadas apenas para os seus pares ou leitores ousados que desejam adentrar neste universo com os devidos códigos, isto é, as leituras prévias dos conceitos dissipados ao longo das situações que se desdobram em torno da dupla principal, deslocada pelo mundo em suas missões.
Ler Consumidos requer aceitar e compreender o estilo do cineasta, para que haja a mínima fluência diante dos acontecimentos que exploram situações incomuns na vida de personagens mergulhados numa trama que oferta uma DST erradicada, mas que retorna com força total, uma jovem que possui o hábito assustador de comer a própria pele, bem como um homem fugitivo que além de ser suspeito de ter matado a esposa, pode ter sido o responsável por se alimentar de algumas partes do corpo da misteriosa filósofa. Tal como os personagens em Crash – Estranhos Prazeres, os jornalistas se entregam aos mais variados tipos de experiências extremas, tendo o sexo como um elemento de junção e catarse. Iniciado numa conversa pelo laptop e finalizada com um papo pelo Skype, a narrativa contada em terceira pessoa traça uma crítica irônica sobre manipulação midiática, responsável por unificar as mentes humanas numa espécie de consciência popular unificada por um projeto de “degradação maior”.
David Cronenberg, um respeitável leitor!
A leitura de The Fly, conto de George Langelaan, publicado em 1957 numa edição da revista Playboy é uma de suas aventuras literárias mais ovacionadas. O conto, também levado ao cinema em 1958, no clássico A Mosca da Cabeça Branca, serviu-lhe de inspiração e pesquisa, mas é com a escrita de Langelaan o diálogo basilar para a execução do filme de 1986, um clássico moderno que marcou para sempre a sua carreira como o cineasta do body horror, intelectual que através das imagens repulsivas e do comportamento arbitrário de seus anti-heróis, debateu sobre a tecnologia como transformadora radical das relações humanas nas sociedades pós-modernas. Em A Mosca, temos um jogo intertextual ainda muito atual sobre o desejo da humanidade em dominar os aparatos tecnológicos que vão além de suas possibilidades mais palpáveis. O tema ainda pulsa. Em 2008, Howard Shore assinou uma ópera com o mesmo título.
No conto adaptado por Charles Edward Pogue, tendo David Cronenberg como coautor, o escritor franco-britânico George Langelaan tece a história de François Delambre, homem que numa certa madrugada, recebe a ligação de Helene, sua cunhada, mulher que revela ter matado o seu irmão. Sem ação, ela pede que ele ligue para a polícia e a ajude. Serena, ela acata algumas observações, menos contar o que de fato aconteceu. O que vamos sabendo aos poucos é que ele foi prensado numa engrenagem hidráulica, mas os motivos para a tragédia são revelados depois. Com o sobrinho para tomar conta, haja vista o estado psicológico de Helene, François faz algumas visitas, interessado em compreender as conexões entre a fala da criança sobre uma mosca e o mistério por detrás da morte de seu irmão. Ao jogar a palavra-chave numa das idas à interna, François começa a descobrir aos poucos os rumos mirabolantes de uma saga que envolve a extrapolação de limites diante de experimentos científicos.
Ao longo do conto, os zumbidos da mosca soam como a trajetória involuntária dos pensamentos que fluem em nossa dinâmica mental, além de representar o caos na vida de pessoas que seguiam as suas existências tranquilas, mas tiveram que se deparar com a manipulação de um cientista interessado em “brincar” de Deus e desafiar determinados limites da física. Ao pesquisar a transferência de matéria entre duas máquinas, uma transmissora e outra receptora, o irmão de François já havia testado um gato, mas sequer imaginou que uma mosca iria adentrar o recinto quando ele resolveu ser parte do teste e na transferência, teve o seu DNA mesclado com o inseto doméstico. O resultado é a sua transformação num monstro, devidamente levado para os anos 1980 por um cineasta leitor ciente da importância de contextualizar a trama para as dinâmicas sociais de uma era que interpretou o filme como uma possível e pertinente alegoria para a AIDS, celeuma impactante que desafiava a relação entre seres humanos e seus corpos na época.
Para a execução do brilhante jogo psicológico de Gêmeos – Mórbida Semelhança, Cronenberg leu a enigmática história de Stewart e Cyril Marcus, já transformada no romance Twins, de Bari Wood e Jack Geasland. O material, lançado em 1977 e reimpresso em 1988 com o título Dead Ringers conta de maneira nada tradicional, a trajetória de autodestruição e simbiose entre os irmãos que em diversos momentos, não apenas possuíam desejos considerados mórbidos, mas também uma conexão com toques psicanalíticos de homossexualidade. Há um jogo que envolve sexo, troca de olhares, movimentos praticamente incestuosos e outras peculiaridades de uma relação que o cineasta pegou os principais pontos para a construção de uma narrativa própria, tendo o livro como ponto de partida. A história verídica ocorreu em Manhattan e a dupla foi encontrada morta, com sinais de uso de drogas, haja vista o vício em barbitúricos, em 1975.
Mais adiante, o cineasta mergulhou no inconstante universo da linguagem fragmentada de William Burroughs, o mais excêntrico dos representantes da Geração Beat, “grupo” de intelectuais formado por volta de 1943, na Universidade de Columbia, tendo Jack Kerouac e Allan Ginsberg como “membros associados”, unificados na missão de desnudar a “América” hipócrita e tensa, envolta em valores arcaicos e nas falsas aparências. Para a realização de Mistérios e Paixões, de 1991, ele leu O Almoço Nu, um romance extremamente complexo para atravessar um processo de tradução intersemiótica. Cronenberg mergulhou no que a crítica literária chama de antilinguagem do escritor William Burroughs, figura que de maneira provocativa, abandona todas as convenções possíveis sobre narrativa e coloca o leitor numa labiríntica jornada sem padronização, repleta de complexidades e diversas possibilidades interpretativas.
Se a tradução do texto verbal é complexa, imagina a transformação em filme? O romance segue as experiências incomuns de William Lee, espécie de alter-ego do autor. Além das experiências metafísicas, ele atravessa largas dimensões geográficas, dos Estados Unidos ao México, numa travessia repleta de críticas sociais, políticas e reflexões sobre a vida. Isso, no entanto, de maneira fragmentária, caótica, sem a linearidade ou o desmonte de um jogo de palavras para o leitor montar as suas estratégias de leitura. Em O Almoço Nu, as coisas são expostas sem pretensão alguma de deixar uma mensagem explícita sobre determinado tema, num texto que parece uma profusão de sensações e memórias de alguém fora de si, mergulhado na alucinógena viagem promovida pelas drogas, prática presente na vida de William Burroughs, um homem que durante a sua existência, experimentou tudo que lhe foi possível neste sentido.
Lançado em 1959, o romance traz para os seus leitores, as chamadas “rotinas”, nomenclatura para o que na teoria literária conhecemos tradicionalmente por “capítulos”. Ao transcender e colocar os seus personagens em situações surrealistas, William Burroughs delineia o moralismo dos estadunidenses ao expor, através de um proposital embaralhamento textual e uma fuga alucinada das preocupações formais, o sexo e o uso de drogas num inquietante reduto de relações homossexuais. A experiência de leitura pode não ser agradável para todos os tipos de leitores, mas é impossível passar pelas rotinas de O Almoço Nu e ficar indiferente. Eu, particularmente, não me desdobro de interesse pelo estilo, mas admiro a coragem do autor em sua época, ao ousar tanto. E é ainda mais admirável que nos anos 1990, Cronenberg tenha se permitido ser desafiado em traduzir do texto verbal para a imagem.
É um material considerado por muitos como algo impossível de se “adaptar”. O público se dividiu com o resultado, mas o filme ganhou sua aura cult e ainda é uma referência pontual na carreira do cineasta que em sua experiência seguinte, adentrou noutro universo literário cheio de peculiaridades: o romance Crash, de J. G. Ballard, laçado em 1973. O escritor inglês, radicado no Canadá, era um autor que sabia da complexidade de seu material literário, por isso nunca quis categoriza-lo. A sua preocupação maior era com a intensidade da história sobre simforofilia, desejo sexual oriundo das pessoas que sentem atração por desastres que podem ser da natureza ou de situações do cotidiano. Aqui, o desejo é por acidentes automobilísticos. O romance que também inspirou o curta Nightmare Angel, de 1986, transformou-se em filme de Cronenberg em 1996. O realizador emulou a estrutura basilar do livro e trouxe para a tela o que era possível de ser traduzido em imagens, um campo com maior riqueza descritiva.
Na história, exposta pelo narrador James Ballard, temos como foco, a travessia “errante” do Dr. Robert Vaughan, um ex-cientista que ele conhece depois de ter sofrido um grave acidente de carro. Aparentemente alienados, eles vivem numa redoma cheia de sensações incomuns para os padrões sociais. Excitam-se com a reconstituição de famosos acidentes que ceifaram as vidas de celebridades, reencenações realizadas por eles mesmos, num insano jogo perigoso sobre a relação do ser humano com a sexualidade, no bojo de uma sociedade dominada pelo que um dos personagens chama de “tecnologia perversa”. Ao longo de sua carreira, David Cronenberg ainda flertou com outros textos literários para a construção de suas narrativas cinematográficas singulares. Sem interesse em exaurir a temática, encerro a reflexão com uma panorâmica abordagem da leitura do cineasta para A Most Dangerous Method, de John Kerr e Cosmopolis, de Don DeLillo, contempladas nos filmes Um Método Perigoso e Cosmópolis, respectivamente.
Em Um Método Perigoso, temos a direção do roteiro de Christopher Hampton, dramaturgo que também assinou a peça The Talking Cure, texto dramático inspirado, por sua vez, no livro de John Kerr mencionado anteriormente, uma volumosa obra sobre os conflitos entre Sigmund Freud e Carl Jung, algo que atravessou o limiar da psicoterapia e se tornou uma acirrada disputa entre mentor e aprendiz, dois dos grandes nomes na história da psicanálise. O projeto lido por Cronenberg e transformado em um de seus filmes mais densos começou quando Hampton ainda era assistente de Paul Schrader, o famoso roteirista de Taxi Driver, dirigido por Martin Scorsese nos anos 1970. Era algo do interesse do dramaturgo, mas com o abandono da proposta em 1981, John Kerr deu continuidade ao trabalho, primeiro como tema de sua dissertação e logo depois, na peça teatral que ganhou uma impactante versão cinematográfica em 2011.
Logo após trabalhar a interlocução, as celeumas do “holocausto nazista” e a complexidade do inconsciente coletivo, Cronenberg trouxe outro livro para as telas do cinema: Cosmópolis, de Don DeLillo, publicado em 2003, narrativa que tem como cenário, a intensa zona urbana de Nova York, demonstrada com atmosfera futurista nesta trama sobre as relações humanas no bojo do capitalismo perverso, representado na figura de seu protagonista, um homem que decide atravessar a cidade num longo dia do mês de abril. Dentro de sua limusine, ele entrecorta as ruas de uma das maiores metrópoles do mundo, território tomado por diversos desafios geográficos e psicológicos envolvendo alegorias com ratos, exames de toque, dualidades entre riqueza e simplicidade, bem como a tecnologia como delineadora do comportamento humano, um dos temas mais presentes na cinematografia de David Cronenberg.
O escritor estadunidense Don DeLillo, conhecido por trabalhar com temas sobre o cotidiano e suas agruras, juntamente com tramas que envolvem matemática, terrorismo global, desdobramentos da era digital, dentre outros temas polêmicos, fornece um material nada fácil para o cineasta adaptar junto ao seu costumeiro time de profissionais: Howard Shore e suas texturas percussivas, responsáveis por trazer o ritmo ideal e aprofundar os personagens dentro da atmosfera pretendida pelas adaptações que dependem bastante do design de produção de Carol Spier, parceira constante de Cronenberg até Senhores do Crime, setor importante na criação das texturas e demais aspectos da visualidade fílmica, trabalho em paralelo ao também apurado jogo de iluminação, enquadramento e movimentação da câmera de Peter Suschitzky, outro parceiro de longa data do cineasta canadense, tal como Denise Cronenberg, nos figurinos.
Bônus!
O roteiro de Marcas da Violência não é seu, mas é baseado num texto prévio, a HQ homônima da DC Comics. É a comprovação cabal do interesse deste cineasta vanguardista pela literatura e demais artes que deixaram a sua cinematografia ser pomposa esteticamente e reflexiva no que tange aos temas sempre polêmicos, contemporâneos e conectados com o “imaginário cultural” do mundo que o circunda. Na contramão do que geralmente conhecemos, o diretor também teve um de seus filmes transformados em livro, Filhos do Medo, de Richard Starks, prática que não é novidade e já aconteceu com uma série de produções, tais como A Profecia e Halloween. Dizem que o seu livro, Consumidos, será adaptado para série de TV. Esperamos que o cineasta possa conduzir o projeto, nem que seja na cadeira dos executivos. Terá sido Mapas Para as Estrelas sua excursão derradeira na direção?