O mundo real expressado em preto e branco. O colorido, por sua vez, retrata os meandros do onírico. Lembra-se do clássico O Mágico de Oz? Pois então, é assim que as cores funcionam no processo de construção da narrativa cinematográfica. Alfred Hitchcock, um dos estetas mais importantes da história do cinema, aplicou o vermelho de maneira bastante significativa em Marnie, Confissões de Uma Ladra, suspense dramático que trouxe o uso da cor conforme as possibilidades técnicas do cinema de sua época, compreendido na atualidade quando temos espectadores que sabem fazer muito bem o exercício diacrônico de contemplação de obras de arte clássicas.
O Mágico de Oz: preâmbulo do uso expressivo das cores no cinema
No filme, a personagem entra em desespero toda vez que se encontra diante do vermelho, cor que lhe remete aos traumas do passado, revelados no desfecho da narrativa. Cor vibrante, o vermelho representa a sensação de alerta em 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, contraponto do branco que transmite a sensação de tranquilidade anterior ao avanço dos conflitos dramáticos da narrativa que marcou para sempre a história do gênero ficção científica. Criadora de significados, a cor vai além do embelezamento de um filme ou busca por revelar, através das imagens, uma cópia fiel do “mundo real”.
Alfred Hitchcock e o vermelho em Marnie, Confissões de Uma Ladra
Ao expressar “comentários” não declarados ou explicitados por diálogos ao longo de uma produção, as cores colaboram com a composição sintática do processo de criação no cinema, formado pela comunhão dos elementos sonoros e visuais, e na maioria dos casos, verbais. A cor e seu emprego no cinema compreendem um amplo espaço de reflexões teóricas, tratadas por especialistas de áreas como a Comunicação, Psicologia, Artes, etc. A cor no cinema foi um processo desenvolvido ao longo de muitos anos, sendo experimentado inicialmente nos filmes musicais. Era a época do surgimento do star system e a cor chegava para enaltecer a beleza e a aparência das estrelas de cinema.
As Cores de Stanley Kubrick em 2001 – Uma Odisseia no Espaço
No livro Cores e Filmes: Um Estudo da Cor no Cinema, a pesquisadora Maria Helena Braga Costa aponta que era a busca da indústria do cinema por uma proximidade maior do “real”, assim como as obras renascentistas e seus planos, profundidade e cores, aspectos que as aproximavam da realidade. Em sua análise, oriunda de um projeto desenvolvido no ambiente universitário, a autora afirma que o uso das cores nos filmes envolve três modos: o físico, o estético e o psicológico. No físico, a cor afeta o espectador, dando-lhe a sensação de prazer. No que se refere ao modo estético, as cores podem ser selecionadas conforme o efeito que são capazes de produzir, isto é, o cinza em O Anticristo, de Lars Von Trier, ou o sépia na refilmagem de O Massacre da Serra Elétrica, comandada por Marcus Nispel. No que tange ao modo psicológico, a cor estimula respostas psicológicas no espectador, em relações mais subjetivas entre filmes e cores, figurando como o modo que estará, ao lado da opção estética, dialogando com a estrutura da produção.
Sépia nas extremidades em O Massacre da Serra Elétrica e o cinza centralizado em O AntiCristo, de Lars Von Trier
Essa afirmação nos leva aos estudos semióticos, importantes para compreensão dos três modos expostos pela autora. Ao criar significados, sensações ou estados emocionais, as cores pedem aos espectadores que decifrem os seus códigos. Por isso, observar o uso das cores nos filmes requer um rápido panorama do elucidativo campo da Semiótica, a “ciência geral dos signos”. De acordo com as reflexões de Lúcia Santaella, uma das maiores especialistas da área no Brasil, esta ciência tem por objetivo a investigação de todas as linguagens e os modos de constituição de qualquer fenômeno e produção de significação e sentido. Os estudos semióticos possuem uma vertente europeia e foram estudados por teóricos como Roland Barthes e Umberto Eco, pensadores posteriores que revisaram os estudos deixados por Charles Peirce. A vertente peirciana considera o signo em três dimensões, sendo este, “triádico”.
O que é isso? Basicamente, o que Charles Peirce quis dizer em sua teoria é que o homem significa tudo o que o cerca através de uma concepção “triádica” (primeiridade, secundidade e terceiridade), afirmação que o fez estabelecer os pilares de sua teoria. Na primeiridade, temos a compreensão superficial de um texto, dizendo respeito a todas as qualidades puras que, naturalmente, não estabelecem entre si qualquer tipo de relação. Estas qualidades puras traduzem-se por um conjunto de possibilidades de vir a acontecer. A secundidade se apresenta quando o sujeito lê com compreensão e profundidade. É elucidativo então expor que onde quer que haja um fenômeno, há uma qualidade, isto é, a sua primeiridade, sendo esta apenas uma parte do fenômeno, haja vista que, para existir, a qualidade tem que estar presente numa matéria. A terceiridade relaciona-se com a camada de “inteligibilidade”, ou pensamento em signos, modelo ao qual representamos e interpretamos o mundo. Observe a imagem abaixo. É uma aplicação do conceito para o feixe de ideias proposto por aqui.
O verde “puro” (primeiridade), o verde aplicado na blusa (secundidade) e o verde e seus significados no figurino de Gwyneth Paltrow em Grandes Esperanças (terceiridade): isso é Semiótica!
Quando depreendemos tais considerações, conseguimos fazer ilações que não ficam apenas na seara do senso comum, o que permite uma análise mais firme e coesa. Diante do exposto, torna-se possível perceber porque é necessário atravessar brevemente o campo teórico das cores, arena reflexiva que aponta ser a sua percepção uma construção física que não é regida por uma ordem física, mas cerebral, pois a decodificação se dá por meio de uma complexa estrutura neurológica do sistema nervoso central (encéfalo e medula espinhal) e do sistema periférico (atuante em todo o corpo), responsável por levar as informações sensoriais para a medula espinhal: as fibras aferentes (canais de entrada) e as informações de ordem motora do sistema nervoso, central para as regiões periféricas, através das fibras eferentes (canais de resposta).
Desde Aristóteles, as cores tornaram-se uma preocupação filosófica. Entender os usos e significados já era algo integrante no pacote de reflexões Antiguidade Clássica. Para o pensador, as cores eram propriedades dos objetos, algo que ganhou a oposição renascentista de Leonardo Da Vinci em suas considerações sobre as cores e suas relações com a luz. Hooke, no campo dos cientistas, e Goethe, no campo da literatura, foram outros teóricos que estabeleceram as bases da teoria das cores, algo que avançou com os desdobramentos das técnicas de pintura oriundas dos diversos movimentos artísticos na história das artes visuais.
A expressividade das cores no cinema de Wes Anderson
A evolução da fotografia, o surgimento das primeiras artes da era da reprodutibilidade técnica, em especial, o cinema, seguido da televisão, do videoclipe, da publicidade e, atualmente, das composições da era da cibercultura: todos, movimentos culturais que deram novos significados ao movimento da teoria das cores e suas representações simbólicas. Utilizada em áreas como educação, prevenção de acidentes, design, medicina e hospitais, moda, educação para o trânsito, dentre outros, no audiovisual as cores possuem função semiótica que dá conta de atender aos anseios da direção de fotografia e do design de produção (direção de arte, cenografia, figurino e maquiagem).
Em Psicodinâmica das Cores em Comunicação, Modesto Farina afirma que ao receber os elementos da comunicação visual, as cores exercem a tríplice função de “impressionar, expressar e construir”, isto é, “impressiona a retina, é sentida, provoca uma emoção, constrói significados”, tendo valor cultural simbólico e possibilidade de comunicar ideias. De maneira alegórica, Farina pontua que “a cor é o toque, o martelo que faz vibrar a alma, o instrumento de mil cordas”. Expressivas, as cores se impõem não apenas como elementos decorativos e estéticos, mas também conectados às expressões dos indivíduos e coisas em situações diversas.
Antes de adentrar nas questões exatamente cinematográficas, torna-se importante ressaltar a importância da Gestalt, isto é, a teoria da forma, para compreensão das cores em filmes. Segundo este campo teórico, a percepção dos seres humanos é coordenada por um conjunto de impressões, não por um grupo de sensações isoladas. O que isso quer dizer? Basicamente, que a visão não é um registro mecânico de elementos, mas a sua captação dentro de estruturas significativas. É na compreensão da totalidade que chegamos no significado de suas partes. A percepção das cores, então, dá lugar a uma gama extensa de sensações, do frio ao calor, do gosto ao odor, etc. Assim, depois deste breve, mas elucidativo preâmbulo, vamos conhecer mais sobre a presença das cores na construção de significados no campo audiovisual?
Cromatismo e Filmes: A Expressividade Multicolorida nas Artes
Tratar das cores no cinema é uma missão ambiciosa e que pode levar o propositor ao delírio, tamanha a quantidade de narrativas e significâncias. Ao longo deste tópico, faremos uma excursão panorâmica na relação entre cores e filmes, reflexão de caráter introdutório que pede ao leitor que busque mais informações complementares e passe a ver, os filmes conferidos em seu cotidiano, com olhar mais crítico. Há uma extensa lista de cores e tons dentro das possibilidades cromáticas de um filme e, por isso, abordaremos aqui alguns casos bem pontuais. Começaremos pelo uso da cor rosa e roxa, simbólicas no estabelecimento do clima “vintage” de O Grande Hotel Budapeste, dirigido por Wes Anderson, cineasta que constantemente faz referências ao estilo visual de outro grande esteta da história do cinema, Stanley Kubrick, responsável por imprimir uma paleta de cores incríveis ao aterrorizante O Iluminado.
Presença amarela nos frames de vingança e calor de Kill Bill, na loucura dos personagens de Birdman e O Iluminado. No centro, Joaquin Phoenix e sua insegurança no drama Ela…
No caso de Anderson, a cor rosa expressa a tranquilidade e a fantasia de sua narrativa, acompanhada pelos tons roxos do figurino do protagonista, representante da sofisticação e da pureza do personagem. O amarelo, cor do otimismo e do ciúme, do entendimento e da traição, representativa da alegria e da ação, além de representar poder, dinamismo, espontaneidade, impulsividade, aproxima-se da ideia de calor e luz, sendo uma cor alerta e estimulante. Quente, remete os espectadores de um filme ao sentimento de intensidade da luz solar, paixão, violência, loucura, etc. Wes Anderson é um dos cineastas que utilizam o amarelo de maneira bastante conceitual, sendo O Grande Hotel Budapeste um caso emblemático das cores quentes para representação do presente e as paletas frias na concepção do passado e Moonrise Kigdom ilustrativo no que tange ao uso do amarelo como a cor do humor e do entusiasmo dos personagens.
No primeiro volume de Kill Bill, Quentin Tarantino emprega tons amarelos como força motriz das temáticas abordadas, cineasta que utiliza a cor tão bem quanto Spike Jonze em Ela, drama que configura a crise dos relacionamentos na era da cibercultura e utiliza a cor como expressão da insegurança do personagem. Em Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância), Alejandro González Iñárritu orquestra uma narrativa que deflagra a loucura por meio do amarelo. Cor significativa e próxima do tom quente amarelo é o laranja, responsável por exprimir exotismo e sensação aromática, utilizada em Mad Max – Estrada da Fúria deliberadamente, tendo em vista expressar visualmente o calor do deserto.
Num ponto específico da produção, na tempestade de areia, o laranja ganha tonalidade quase próxima ao vermelho. É também a cor contraponto do azul, pois traz a ideia de calor humano diante do clima de solidão e frieza dos perfis psicológicos dos personagens principais, exibidos em tons azuis. O tom laranja traz ao observador sensações de alegria, confiança, força e euforia. Aproxima-se do vermelho, cor vibrante que nos remete ao amor, calor, perigo, tratada artisticamente como a cor para expressão de posturas provocativas e busca por situações emocionais e ativas.
As cores do cinema autoral de Almodóvar: Dor e Glória, Tudo Sobre Minha Mãe, Volver, Julieta e Mulheres á Beira de Um Ataque de Nervos e Abraços Partidos.
Felicidade, consumismo, paixão e ódio também estão entre os seus feixes de significância das paletas vermelhas. A Fraternidade é Vermelha, terceira parte da Trilogia das Cores, dirigida pelo polonês Krzysztof Kieslowski, é um dos filmes que utilizam tons vermelhos para tratar de questões dramáticas próprias de suas estruturas. O cineasta Pedro Almodóvar, em basicamente todos os seus filmes, flertou com o vermelho como parte integrante obrigatória para condução narrativa de Carne Trêmula, Dor e Glória, Tudo Sobre Minha Mãe, dentre outros. O primeiro filme colorido de Michelangelo Antonioni utilizou o vermelho de maneira elegante e bastante significativa: as cenas de orgia são contempladas pela abundância da cor, contrastada com o verde em momentos em que, digamos, haja mais tranquilidade. O cineasta que também delineou o cinza como estratégia de significação para o desenvolvimento de seus personagens.
Assim, não produziu apenas um filme em “cores pela primeira vez”: fez questão de reforçar a expressividades e sua artificialidade proposital, tendo em vista permitir que os espectadores alcançassem as suas camadas de interpretação ao acompanharem o banquete de imagens ofertadas pelo italiano experiente. O verde, por sua vez, nos remete ao equilíbrio, saúde, paz, bem-estar, fertilidade e o clichê da esperança. Junção do amarelo e do azul, a cor é tensionada por sua dualidade, considerada relaxante e impulsiva, utilizada como sedativo que dilata os vasos capilares e diminui a pressão sanguínea.
Grandes Esperanças, de Alfonso Cuaróne sua paleta de tons esverdeados…
Calmante para as dores nevrálgicas e insônia, não é por qualquer motivo que o verde domina o design de produção das séries médicas. No cinema, ganhou paleta de cores bastante expressiva em Grandes Esperanças, tradução intersemiótica do romance de Charles Dickens, dirigida por Alfonso Cuarón, em 1998. Conectada com a natureza, a cor também sugere amizade, calma, frescor, umidade e elementos ecológicos. Em Malévola, indica a juventude da personagem. Já no desfecho de Gravidade, representa as boas novas para o fim da agonizante saga de “Sandra Bullock”. Matrix é outro bom exemplo do uso da cor verde, representativa no que diz respeito ao equilíbrio, postura corajosa dos personagens, serenidade e virtuosismo.
Da frieza e tranquilidade de alguns trechos em Beleza Americana, o azul transmite solidão e tristeza, como podemos observar nas jornadas de três filmes com Ryan Gosling: Só Deus Perdoa, Drive e Namorados Para Sempre. Krzysztof Kieslowski faz uso da cor para expressar o caminho catártico da personagem de Juliette Binoche em A Liberdade é Azul. Uma das cores favoritas das sociedades no século XX e XXI, o azul designa simpatia, harmonia, fidelidade, distanciamento, além de ser a cor das virtudes intelectuais. A cor do céu ser azul, por esse motivo, é tratada como tonalidade do divino e da eternidade. Ao representar o onírico, permitiu que a equipe de Stanley Kubrick trabalhasse o seu tom com bastante profundidade, através da luz que adentra pelas janelas do denso De Olhos Bem Fechados, em especial, nos momentos reveladores da conversa íntima entre o casal interpretado por Nicole Kidman e Tom Cruise.
A expressão do azul e suas simbologias nos filmes De Olhos Bem Fechados, Namorados para Sempre e A Liberdade é Azul
Em Faça a Coisa Certa, Spike Lee aplica o uso da iluminação azulada apenas nos poucos momentos de tranquilidade, pois no geral, a sua há a predominância do amarelo e do laranja, indicadores das tensões sociais e da onda de calor que deixa os ânimos aflorados ao longo da produção. Interessante neste filme é o uso intermediário entre o branco e o preto nos irmãos Sal e Pino, ambos discrepantes nas relações com os clientes afroamericanos e latinos que frequentam a pizzaria de seu pai. O contraste, talvez a principal técnica aplicada ao âmbito das imagens no que concerne à reflexão empreendida neste texto, ocupa um lugar importante na concepção dos filmes e na abordagem de suas cores, pois é o recurso que permite que a narrativa trabalhe a sua paleta de cores por meio de justaposições simbólicas.
Alain Resnais, em O Ano Passado em Marienbad, utilizou o branco e o preto como passado e presente, respectivamente, algo que permitiu ao seu drama a carga simbólica visual necessária para compreendermos os personagens e seus devidos espaços de circulação narrativa. O cinema, devemos sempre ressaltar, é a uma prática social. Por isso, o seu processo histórico é a junção de questões econômicas, tecnológicas e ideológicas. Com a necessidade de mais realismo nas produções cinematográficas, os musicais hollywoodianos careciam da apresentação de novidades para o seu público. Inicialmente tratada com preconceito, as cores permitiram a ampliação do olhar e se tornou um elemento intrínseco para os realizadores imbuídos pelo olhar industrial da arte.
No processo de aplicação em um filme, as cores conseguem a proeza de minimizar aspectos, noutros fornecer o destaque idealizado pelos realizadores. Direção de fotografia, design de produção e demais setores organizadores de uma produção buscam, então, compreender o significante, isto é, a imagem, e o significado, em suma, a sua representação e os conceitos que as cores podem transmitir a partir do momento que são transformadas em símbolos e interpretadas por alguém, decodificador que utilizará o seu arcabouço cultural para dar-lhe os “significados”, afinal, o azul numa cultura, não funciona da mesma maneira noutra, tal como o preto, o branco, o lilás, o amarelo, etc.
Cor também é um grande elemento de interpretação cultural, mas isso é assunto para outra reflexão, tudo bem, caro leitor?
Saiba mais:
Cores e Filmes: um estudo da cor no cinema, de Maria Helena Braga e Vaz da Costa. Editora CRV | Curitiba, 2011.
Psicodinâmica das Cores em Comunicação, de Modesto Farina. Editora Blucher | São Paulo, 2013.
Sintaxe da Linguagem Visual, de Donis Dondis. Editora Martins Fontes | São Paulo, 1997.