Intertextualidade é algo constante, muitas vezes presente de maneira sutil nos filmes e séries que assistimos. Antes de assistir ao recente A Baleia, dirigido por Darren Aronofsky, já conhecia detalhes da produção por meio de notícias, reportagens e polêmicas envolvendo a narrativa, dentre elas, a estrutura narrativa ambiciosa e focada na estatueta do Oscar, além das discussões sobre preconceito contra pessoas obesas, proposital ou não, impregnado nas escolhas narrativas dos realizadores e no próprio texto dramático, versão cinematográfica da peça teatral homônima de Samuel D. Hunter, escrita e encenada em 2012. Ademais, ao conversar com amigos e colegas de trabalho, descobri por meio de comentários superficiais, oriundos de pessoas preocupadas em não entregar muita informação, que A Baleia citava Moby Dick, de Herman Melville. Indaguei-me, então, sobre este processo. Será apenas uma mera passagem da câmera por uma estante de livros onde uma edição do romance se encontra ou há algo mais?
O artigo que você vai ler, caro leitor, é resultado desta investigação. Breve, mas elucidativa.
Vamos nessa?
Sobre Moby Dick, Herman Melville e os Valores de Um Clássico da Literatura!
Quase dois anos escrevendo um livro. Foi assim que o autor de Moby Dick ficou antes da publicação de sua obra-prima, lançada sem um público receptivo, encarado com desgosto e só descoberto como grande romance da história literária estadunidense no século seguinte. “Call Me Ishmael”, uma das frases mais famosas do campo em questão, abre o romance volumoso, basicamente, uma saga de obsessão e vingança envolvendo o Capitão Ahab, um homem que perdeu a sua perna no embate com a baleia cachalote que nomeia o livro, misto de fascinação e repulsa que engrena as molas da narração de Ishmael, o jovem que adentra na expedição em busca de óleo para manutenção da economia baleeira de Nantucket, figura ficcional que embarca numa jornada de autoconhecimento e embate entre o humano e as forças da natureza, algo que continuamos a contemplar na atualidade, de Tubarão ao interessante Águas Rasas, filmes que vão muito além daquele esquema de “animal assassino”, mortes e sangue em profusão, mas contém diversas reflexões sobre a impossibilidade do humano diante da imprevisibilidade das forças da natureza, daquilo que o divino estabelece e que o homem não pode mudar.
Há uma lista de elementos presentes no romance que posso utilizar aqui para explicar o quão importante é ao menos conhecer este clássico da literatura publicado em 1851 e só devidamente reconhecido no século XX. Simbologias religiosas, em especial, nos nomes adotados para os personagens, alegorias diversas sobre as fraquezas humanas e a imprevisibilidade da natureza, estrutura que nos remete aos elementos da epopeia, inserção de peculiaridades dos estudos sobre mitologia, material que permite associação do romance com as concepções do mito e da jornada do herói, em possíveis leituras tangenciais com Joseph Campbell, Carl Jung e Mircea Eliade, dentre outros. A coexistência de grupos sociais cosmopolitas com “estagiários” dos códigos de civilização, bem como o entendimento dos mecanismos que engendravam as relações econômicas, políticas e sociais dos estadunidenses da época, situação que também respingava em outros lugares do planeta. A lista, caro leitor, é imensa. Estes são apenas alguns pontos.
Moby Dick, então, é um romance de extrema riqueza. Não vou passar pano e dizer que é uma obra-prima de desenvolvimento tranquilo para o leitor. Encarar a jornada requer muita paciência, em especial, quando estamos diante do ritmo quebrado com descrições sobre a vida econômica dos baleeiros da época, além da maneira como o autor delineia cada elemento da natureza, explicando em pormenores, assim, brecando a fluência da narração de Ishmael. No entanto, ler, interpretar e conhecer o romance é um acontecimento na vida de qualquer pessoa que, assim como quem vos escreve, é especializado em determinada área de atuação, mas anseia por conhecimentos gerais, associando-os com as interdisciplinaridades do próprio cotidiano. Assistir A Baleia é uma missão de entretenimento que funciona tranquilamente sem qualquer conhecimento prévio sobre o livro de Herman Melville. Mas, assistir tendo o romance nas bases de sua lista de leituras transforma as interpretações em algo ainda mais amplo, permitindo que outras camadas da narrativa sejam aproveitadas, potencializando reflexões.
Conexões: Moby Dick, A Baleia e Laços Intertextuais!
Numa rápida conversa com a assessora pedagógica e atriz Dionne Barreto, algumas semanas antes da cerimônia do Oscar 2023, dialogávamos sobre filmes e disponibilidade para acompanhar a quantidade de produções lançadas nos cinemas e no streaming e, no meio do papo, surgiram as suas impressões sobre A Baleia, drama dirigido por Darren Aronofsky, uma história que a impactou, não tanto a mim, espectador da produção apenas alguns dias após a conversa. Dentre os detalhes, a interlocutora comentou as referências do filme com Moby Dick, o clássico de Herman Melville que tem sido meu acompanhamento intelectual nos primeiros meses do ano em questão, publicação investigada face ao seu legado e impacto cultural. Felipe Oliveira, crítico de cinema do Plano Crítico, responsável por assinar o texto quando a análise foi publicada por aqui, comentou numa ligação que o filme fazia conexões, mas nada tão específico.
Para conferir a tessitura intertextual, então, dediquei-me ao drama que atravessava uma série de críticas mistas, algumas a condenar a sua proposta ambiciosa e focada no arremate do Oscar, ao menos de Melhor Ator para Brendan Fraser, outras a destacar vestígios consideráveis de preconceito contra pessoas obesas no estabelecimento da trama. Após conferir, confesso que concordo parcialmente com as duas maiores polêmicas sobre a produção, no entanto, o filme vai além disso. E, em linhas gerais, ficar apenas nesta zona de observação é esquecer as demais peculiaridades que a história oferta aos mais atentos, em especial, as conexões entre o romance de Herman Melville e a saga de Charlie, interpretado com muita dedicação por Fraser, desempenho que lhe permitiu ganhar o tão sonhado Oscar na categoria de Melhor Ator.
É um filme, de fato, angustiante. Pense em cenas rodadas em 1:33:1, com fotografia granulada, escolha que reflete os interesses dos realizadores pelo estabelecimento de uma atmosfera claustrofóbica. O protagonista, comendo pizzas, baldes de frango frito, sanduíches gigantescos e carregados de molhos de todo tipo, sequer se preocupa com a sua saúde e o encaminhamento para a morte. Barras de chocolate adoçam o seu cotidiano, mas é o amargor de suas dores que prevalece não apenas quando adormece e se desconecta brevemente do “mundo consciente”, mas em todos os milésimos de segundo que engendram as angustiantes 24 horas de seu dia. Grunhidos, suspiros ofegantes e detalhes da maquiagem e da atuação que nos reforçam o seu desleixo, ao aparecer com gordura nas bochechas, queixo e até mesmo nas roupas: é assim o visual do protagonista de A Baleia, um homem desiludido, sem fé em mais nada.
O design de produção de Mark Frieberg, a direção de fotografia de Matthew Libatique, os figurinos de Danny Glicker e a trilha sonora de Rob Simonsen completam o cenário de dor, desleixo e angústia: um apartamento que abriga um homem solitário, que sofre de pressão alta, além de ser acometido por doenças cardíacas. Após a morte de seu companheiro, algo de um passado relativamente recente, Charlie se recusa até mesmo a ir ao hospital, pois alega não ter seguro médico. Quem o ajuda nesta jornada é a enfermeira Liz (Hong Chau), uma amiga que me fez lembrar rapidamente a personagem de Meryl Streep em As Horas, isto é, alguém que se dedica cotidianamente, e em vão, aos cuidados de uma pessoa que se entregou aos problemas de saúde que gravitam em torno de sua existência. Em suas aulas on-line, ele nunca abre a câmera para se apresentar aos estudantes. Teme a sua própria imagem.
Charlie é um enclausurado em si mesmo, também acometido pelos problemas no relacionamento com a filha, Ellie (Sadie Sink), jovem abandonada pelo pai há dez anos. Após o término do casamento com a sua esposa e a entrega ao amor de seu companheiro, Charlie deixou de lado os cuidados que se esperava de alguém que assumiu a paternidade. Assim, em A Baleia, uma trama cheia de polêmicas e ambiguidade, nós temos os conflitos entre pai e filha, tensão nada sutil, algo que permeia o desenvolvimento da trama em seus 117 minutos. Ellie acredita que a vida vai melhorar se conseguir aniquilar (ferir) a baleia, que neste caso, é o seu pai. Aqui, então, a personagem ocupa o lugar alegórico do Capitão Ahab, conhecido por sua obsessão por vingança. Contemplar a ruína do alvo de sua dor é uma meta, por isso, não podemos pensar a presença de Moby Dick apenas como um livro qualquer mencionado ao longo da narrativa.
Ao causar sofrimento para a sua filha, o protagonista emula elementos do romance de Melville, citado constantemente em momentos de quase morte, conexão que vai, como já mencionado, além do mero adereço de uma cuidadosa direção de arte. Ademais, além das ilações com a aventura de Ahab diante da onipotência do furioso animal que extraiu a sua paz, A Baleia também é uma sessão que estabelece, panoramicamente, temas como homofobia, suicídio, religiosidade por um viés fanático, compulsão alimentar, os danos do alcoolismo, crise no sistema de saúde estadunidense e a autodestruição que leva o personagem para a sua ruína, apresentada por meio da aparência. Ao retratar a história de um homem que perdeu o interesse em continuar a sua vida, em constante rota de colisão, a narrativa também traça paralelos com as escolhas do Capitão Ahab, figura ficcional que nas profundezas de seus anseios, sabia que o reencontro com a simbólica e enigmática baleia cachalote seria possivelmente a sua derrocada.