O cinema é a arte da multiplicidade de funções. Depois que o roteiro é concebido e os produtores fazem a leitura para seguir o fluxo de realização e escalar diretor e sua equipe técnica, o material dramático escrito passa por um processo de transformação. Temos um ou mais cineastas no comando geral da futura narrativa que será ofertada ao público, produto construído com base no trabalho de setores distintos. Geralmente após a direção geral ter alguém na direção de fotografia e no design de produção, o filme ganha mais corpo. São discutidos os aspectos visuais na captação de imagens, iluminação e movimentação de câmera, tarefas da fotografia, responsável por conceber as cenas pelos espaços erguidos pelo designer da produção, gerenciador de outros subsetores importantes no estabelecimento da identidade visual da história a ser contada. Cenografia, direção de arte, figurinos, maquiagem e efeitos visuais são alguns dos setores que atuam em paralelo constante com o design de um filme. O texto em questão vai flertar com os cenógrafos e diretores de arte, em especial, de filmes natalinos, subgênero do cinema com organicidade interna bastante peculiar. Vamos nessa?
A arte em cena
Como mencionado anteriormente, o cinema é uma arte multifuncional, com diversos setores unificados em prol da construção da imagem. A cenografia se ocupa da concepção arquitetônica dos espaços, enquanto a direção de arte, geralmente dividida em duas etapas, a primeira, na elaboração da temática, e a segunda, a construção física da proposta visual, ocupa-se por organizar as paisagens cenográficas, naturais ou em estúdio. Além da leitura do roteiro, os diretores de arte fazem pesquisas, analisam dados, testam cores, volumes, dimensões espaciais e trabalham com uma equipe extensa que pode incluir aderecistas, jardineiros, arquitetos, design de interiores, carpinteiros, figurinistas, etc. No sistema de realização cinematográfica brasileira, ainda não temos incorporada a denominação “design de produção”, por isso, aqui ainda tratamos a seara em questão de direção de arte. Tendo como função acompanhar as diretrizes plásticas do projeto que assina, o profissional desta área preenche os espaços erguidos pelo cenógrafo. Nos primórdios do cinema, era uma preocupação maior nos ajustes da pós-produção, mas cineastas como Federico Fellini e Stanley Kubrick mudaram os rumos da direção de arte.
O Natal e Os Seus Símbolos: Sobre a Visualidade nos Filmes Natalinos
Importante observar que os enfeites natalinos que tornam o período visualmente mágico são todos carregados de muita simbologia. Não são apenas decorações aleatórias, mas fazem parte de uma longa tradição que precede até mesmo os significados religiosos. Para quem olha pelo viés religioso, os enfeites anunciam, cada um a sua forma, a recordação necessária e a evangelização cristã nos lares ocidentais. O uso do verde, por exemplo, remete ao sentido da vida, a presença de vitalidade nas coisas, numa referência também a esperança e cura. O branco, concepção questionável se olharmos por vieses mais sociológicos, significa a pureza da vida longe dos pecados mundanos. Ao lembrar o céu e sua infinitude, o azul é a cor do firmamento. O vermelho, por sua vez, traz em sua intensidade o amor. É a cor do coração e para alguns religiosos, significa o sangue de Jesus Cristo na cruz. Os tons prateados e dourados estabelecem a honra e a glória, metais preciosos de extrema grandeza, bastante simbólicos para o período. Trazido para a direção de arte nos filmes natalinos, essa paleta de cores e tonalidades específicas permitem que os espectadores mergulhem mais profundamente nos interesses dramáticos do filme, além do flerte dos realizadores com uma estética atraente.
A ceia de natal, segundo o livro Símbolos Natalinos, material de concepção religiosa, revelava no Antigo Testamento, um encontro solene para comemoração da passagem de Deus pelo Egito, a libertar o povo da escravidão. Já nos ditames do Novo Testamento, mais próximo dos costumes ainda gerenciados entre as famílias na contemporaneidade, a ceia significa a celebração da passagem de Cristo entre nós, tendo na vela acesa do banquete um item obrigatório para a atmosfera de vida pretendida pelo evento. Os presentes de natal, algo que o capitalismo pegou durante a travessia dos últimos séculos como foco no empreendedorismo e fortalecimento das práticas de consumo, religiosamente, significa a retribuição das pessoas para o período em que Deus teria nos dados o nosso maior presente, o seu filho crucificado. Importante que mesmo aqueles que não aderem aos significados do natal, mas utilizam esses símbolos como itens decorativos desprovidos de carga simbólica, estes enfeites se estabeleceram na cultura com base nestas tradições, por isso, podem tranquilamente ganhar ressignificações, mas não podemos deixar de compreender as origens de tudo, espécie de agrupamento de vários costumes que inclusive precedem o advento das práticas sociais em 24 e 24 de dezembro na cultura cristã.
Os arranjos secos, itens que compõem muitas mesas e guirlandas, é o símbolo de tudo aquilo que já está morto e se foi. O ramo seco e a casca da árvore, ao lado da vela acesa, representam aquilo que as chamas pretender preencher de vitalidade, isto é, permitir o renascimento. A estrela de natal, adorada por muitos simpáticos ao movimento visual natalino, traz um amplo feixe de significações. Ela é a guia dos Reis Magos rumo ao território de Belém para agraciar o nascimento de Cristo. Quando o “filho de Deus” veio ao mundo, uma estrela especial surgiu no céu. Os Santos Reis haviam lido que durante o nascimento, essa estrela apontaria como uma espécie de aviso. Com seus quatro pontos e sua cauda de luz, os tais pontos nos remetem aos quatro cantos do mundo e a ação dinâmica da cauda significa movimentação, isto é, o mundo precisa caminhar tal como os Reis Magos. As velas e as luzes natalinas, o que também inclui o pisca-pisca, recordam que a luz divina está em nossas vidas para nos tirar dos percalços mundanos. Ademais, as bolas coloridas, representam os frutos da vida e os seus constantes desejos. Lembram também perdão, alegria e esperança. Esses frutos também alegorizam o que nós colheremos de tudo que fizemos ao longo da jornada rumo ao dia da renovação, o natal.
O presépio é considerado o símbolo universal do período, uma representação concreta da presença divina em nosso cotidiano. Os laços vermelhos, comuns em muitas árvores natalinas, significam o amor de Deus, a guirlanda, usada nas quatro semanas que antecedem o natal, expõe a necessidade do tempo de preparo para a chegada simbólica de Cristo ao mundo. Os sinos, também muito comuns no período, simbolizam o toque festivo e alegre diante dos eventos mencionados acerca das guirlandas e laços vermelhos. A árvore, um dos símbolos mais importantes e comumente adotados nesta fase, precisa ser verde, para transmitir a ideia de vitalidade. Em todo a sua estrutura, temos a inserção de alguns destes símbolos pendurados. Depende muito da circunstância e do potencial do pinheiro selecionado para decoração. A união entre os céus e a mãe terra já designavam a relação de povos anteriores ao advento de Cristo, pois a verticalidade das árvores já emitia a sua significação sagrada muito antes. No solstício de inverno, povos pagãos dos países bálticos cortavam pinheiros, levavam para as suas casas e decoravam. O costume foi transferido para os germânicos, povo que colocava presentes embaixo deste símbolo, algo muito parecido com o que fazemos na atualidade, num dos ícones natalinos que mais atravessou ressignificações ao longo de sua história.
Narrativas em Perspectiva
Os filmes natalinos geralmente trabalham com temáticas ligadas ao importante convívio saudável entre familiares, bem como relacionamentos amorosos e amizades que precisam atravessar as vias do perdão durante ou depois de períodos conturbados. É uma época de muita cobrança e opressão também. As pessoas passam todo o ano em trabalhos e projetos pessoais que tomam a maior parte do tempo e os festejos de final de ciclo acabam promovendo reencontros entre indivíduos afastados pelas circunstâncias da vida. É neste embalo que vontades e identidades se encontram e nem sempre o contato é amistoso. Velhas questões do passado são retomadas, mágoas demonstram que ainda não foram diluídas, traumas podem voltar com intensidade e para aqueles que vivem na solidão ou enlutados por alguma perda, a noite de natal pode ser uma longa jornada por dores e lamentações reforçadas neste período de suposta felicidade apenas para aqueles que vivem o ideal da perfeição.
Outros temas tangenciais cortam estes filmes, como podemos ver nas críticas de Anjo de Vidro, Um Natal Muito, Muito Louco, Tudo em Família, O Amor Não Tira Férias, Sobrevivendo ao Natal, Juntos a Magia Acontece, Tudo bem No Natal Que Vem, dentre outros. Nestas produções, a equipe técnica trabalha nos pormenores para estabelecer em cena, o clima natalino proporcionado pela música, pelos diálogos e situações, além do trabalho da direção de arte e da cenografia, importantes para o desenvolvimento da história a ser contada ao público. Recortei alguns filmes da temática para nos servir de exposição por aqui. São análises já contempladas nas críticas publicadas sobre o assunto. Comecemos por Anjo de Vidro, drama com direção de arte de André Chamberland. Construído com pitadas de humor e sarcasmo, o roteiro reúne algumas histórias lacrimejantes, apresentadas separadamente, para logo mais, entrelaçarem-se. Um dos núcleos de maior destaque é o do policial Mike (Paul Walker) e sua esposa, Nina (Penelope Cruz). Ciumento, ele vai confundir um amigo da companheira e destruir a árvore de natal que ela erguia em casa, antes do ataque tóxico do personagem. Além das guirlandas, velas e de uma cena icônica de abandono da ceia natalina, a produção oferta ao espectador um cuidadoso e mágico trabalho de direção de arte.
Outro filme interessante neste aspecto é a comédia dramática Tudo em Família, com direção de arte de T. K Kirkpatrick. A produção nos apresenta a chegada de Meredith (Sarah Jessica Parker), executiva que está noiva de Everett Stone (Dermot Mulroney), filho da ácida Sybil (Diane Keaton), sogra que não fará questão alguma de ser agradável para a nora recém-chegada. No desenvolvimento visual da trama, a neve cumpre um papel interessante no estabelecimento de contraste entre todos os tons tipicamente natalinos e a brancura de sua textura pelos espaços externos da casa da família Stone. Aqui, as bolas natalinas e a árvore de natal são os destaques da direção de arte, inspirada ao passo que o filme pula um período de tempo e a sua exposição na sala, juntamente com os demais itens decorativos e seus significados fazem os indivíduos criarem cada um a sua retrospectiva dos acontecimentos, para assim, compreender os frutos que estão colhendo naquela ocasião, futura e transformadora. Diane Keaton encabeça o elenco de outra trama do estilo, O Natal dos Coopers, produção dirigida artisticamente por Gregory A. W. Na comédia dramática, ela é Charlotte, esposa de Sam (John Goodman). Eles são os pais de uma família que se dispersou e abandou algumas tradições. O reencontro, cheio de enfeites natalinos que vão além da função aderecista e expressas múltiplos significados tomam conta do espaço e tornam os dilemas dramáticos visualmente expostos pela história.
Entre 2019 e 2020, a produção brasileira decidiu investir em filmes do segmento natalino. Ambos são bem-sucedidos no quesito visualidade. Em Tudo Bem No Natal Que Vem, a direção de arte ficou por conta de Rafael Targat, responsável por derrubar padrões estéticos estadunidenses e europeus e criar uma dinâmica essencialmente brasileira. Do desenvolvimento da história aos aspectos visuais espalhados pelos cenários, a comédia dramática com Leandro Hassum capricha em sua árvore de natal, entrega uma mesa de ceia farta e de acordo com os significados deste momento que versa sobre fartura e vivacidade no encontro familiar. Traumática, a data é algo desnorteador para o personagem principal, num ciclo constante após um acidente que o faz acordar apenas na noite de natal, anualmente, sem relembrar de nada que aconteceu ao longo de todo o ano. Mais densa, Juntos A Magia Acontece, com direção de arte de George Moura, é o especial de natal da Globo, telefilme sobre uma família enlutada após a morte de sua matriarca. Preocupado com a condição financeira da filha, uma professora com marido desempregado há meses, Orlando, interpretado por Milton Gonçalves, decide iniciar a sua cruzada cheia de momentos de tensão racial: ele quer ser o Papai Noel negro e assim, ajudar nas dívidas de casa. Emocionante, a produção também capricha nos pormenores de sua direção de arte preocupada em estabelecer a todo instante, um clima visual essencialmente brasileiro.
As narrativas de animação também trabalham dentro de um esquema artístico similar aos estudos desenvolvimento nas produções live-action, mas claro, dentro de proporções diferenciadas. Esse é um tema, no entanto, para outra reflexão. Combinado?