Home Colunas Entenda Melhor | Beleza Fatal: Dramaturgia e Fenômeno Midiático

Entenda Melhor | Beleza Fatal: Dramaturgia e Fenômeno Midiático

Produção expõe os avanços estéticos e dramáticos no gênero novelístico na indústria cultural brasileira.

por Leonardo Campos
569 views

A vingança é um tema recorrente e sedutor na ficção, alimentando narrativas que capturam a imaginação dos leitores e espectadores ao longo de uma tradição dramática milenar. Desde as tragédias gregas, ao trabalho de Shakespeare no Renascimento, passando por sabor modernista de Nelson Rodrigues, aos filmes e séries contemporâneos, a busca por retaliação é um traço humano que marca profundamente a nossa formação comportamental enquanto seres humanos dominados por emoções. Na ficção, os personagens que buscam vingança frequentemente refletem um desejo coletivo de justiça e compensação. A narrativa se torna um espaço seguro onde esses sentimentos podem ser explorados sem as consequências do mundo real. É o que contemplamos ao longo dos 40 episódios do fenômeno midiático Beleza Fatal, um dos assuntos mais proeminentes das redes sociais e portais de cultura nos primeiros meses de 2025. Novela com formato semelhante ao das séries televisivas, em especial, por conta de seus atributos estéticos, a narrativa investe no deliciosamente sombrio tema da vingança. Ao terminar os episódios da produção, recordei, caro leitor, de algo que o psicólogo Michael McCullough sugere sobre a vingança ter, como possibilidade, raízes evolutivas, uma vez que em grupos sociais primitivos, o ato de retaliar poderia ter funcionado como um mecanismo para manter a coesão e deter comportamentos prejudiciais. Curioso, não?

Assim, a ficção não apenas amplia esses instintos primitivos, mas também permite que os espectadores analisem a complexidade das emoções humanizadas de maneira mais profunda. O desejo de vingança que parece inato nos personagens ajuda a criar uma conexão emocional com o público, tornando os enredos mais envolventes. Além disso, outro elemento que torna a vingança fascinante na ficção é a sua complexidade moral. A busca por retaliação levanta questões éticas que nos desafia a refletir sobre o que é “certo ou errado”. Muitas narrativas apresentam protagonistas que se tornam anti-heróis, fazendo escolhas questionáveis em nome da vingança. Isso cria um dilema moral, onde o público se vê dividido entre a empatia pela dor do personagem e a preocupação com as consequências de suas ações, algo delineado na jornada de Sofia, uma das protagonistas de Beleza Fatal, personagem a ser apresentada mais adiante, uma figura ficcional que nos coloca diante de uma teia que expõe a vingança entrelaçada com a noção de justiça. Em muitos casos, a retaliação é apresentada como um meio de corrigir injustiças sociais que o sistema não consegue resolver. As histórias de vingança frequentemente envolvem figuras oprimidas ou marginalizadas que, ao buscar retaliação, tornam-se símbolos de luta contra um sistema corrupto ou desigual.

Essa narrativa de justiça é sedutora, pois oferece não apenas uma catarse emocional, mas também um ideal de compensação que muitas vezes falta na realidade. A presença da vingança na cultura popular é um reflexo do tempo e do contexto social em que as histórias são contadas. Em épocas de instabilidade social ou política, os enredos de vingança podem se tornar especialmente ressonantes. Escrita por Raphael Montez sob a supervisão de Silvio de Abreu, Beleza Fatal é um fenômeno midiático e combina elementos clássicos de um folhetim com questões contemporâneas. E, talvez, seja uma produção que radiografa instabilidades de questões amargas em nosso cenário social. A trama explora a pressão estética e a busca obsessiva pela beleza, destacando a dependência das pessoas em relação à imagem e às redes sociais. A protagonista, Lola, interpretada por Camila Pitanga e dona dos principais memes das redes sociais brasileiras no preâmbulo de 2025 é proprietária de uma clínica de estética, mulher ardilosa que interage com seus milhões de seguidores, conhecidos como “lolovers”, promovendo suas mercadorias e compartilhando sua vida pessoal. Numa época onde A Substância, com Demi Moore, se tornou um fenômeno midiático no âmbito cinematográfico, as discussões da novela em questão se mostra pertinentes.

Em suas divulgações sobre situações de bastidores, tendo em vista atrair assinantes para o streaming Max, a direção destacou que a aparência “plastificada” da atriz é apenas um efeito de maquiagem, enfatizando a artificialidade da estética de uma série que aborda, além das questões estéticas, temas contemporâneos importantes, tais como a transfobia, misoginia, relacionamentos tóxicos, dentre outros tópicos da atualidade.  A inclusão de tais temas evidencia o compromisso da narrativa em discutir assuntos sociais relevantes, ampliando o alcance da trama e provocando reflexões importantes sobre relacionamentos e a diversidade em um contexto marcado pela superficialidade da imagem. Novela com “cara” de série televisiva, Beleza Fatal se destaca por sua capacidade de prender a atenção dos espectadores, criando uma vontade de assistir ao próximo capítulo através de “ganchos” que estimulam a curiosidade sobre o desenrolar da trama. Apresentando uma abordagem inovadora, essa ousada aposta do streaming Max combina a dinâmica da novela tradicional com um formato distinto, evitando clichês didáticos, numa produção que entrega tensão constante e reviravoltas a cada episódio, sem enrolar o espectador em jornadas maçantes e previsíveis demais. Com projeto de exibição no Brasil e em outros países, a trama é descrita pela diretora-geral Maria de Médicis como “um dos maiores produtos de exportação do Brasil”, proporcionando uma visão autêntica e contemporânea sobre temas debatidos não apenas em nosso território, mas preocupações comportamentais abrangentes, isto é, globais.

Os personagens principais de Beleza Fatal se envolvem em relações românticas pouco convencionais, destacando a soldo de Lola por sua assessora Viviane e o romance do médico com uma professora de dança transexual. Sob a direção Médicis, a narrativa seriada conta com 40 episódios, com duração variando entre 48 e 70 minutos, com transmissão programada para ocorrer entre 27 de janeiro e 21 de março de 2025. O texto dramático, concebido por Raphael Montes, em colaboração com outros roteiristas talentosos, tais como Mariana Torres, Victor Atherino, Rafael Souza-Ribeiro e Luiza Yabrudi nos apresenta seguinte estrutura dramática: desde a infância, Sofia (Melissa Sampaio) viveu um trauma profundo ao ver sua mãe, Cléo (Vanessa Giácomo), ser presa e morta por culpa de sua ambiciosa prima, Lola. A pequena, sem direção após essa tragédia, é acolhida pela família Paixão, liderada por Elvira (Giovanna Antonelli), que também enfrenta seu luto após a morte da filha Rebeca (Fernanda Marques) em decorrência de uma cirurgia plástica trágica. Os responsáveis por essa mazela são Rogenildo “Rog” Ferreira (Marcelo Serrado) e o cirurgião plástico Benjamin Argento (Caio Blat), que, em um esquema de corrupção, têm sua ação encoberta por Átila Argento (Herson Capri), o pai de Benjamin, que suborna a investigadora Viviane Martins (Naruna Costa) para encerrar as investigações. Esse mote embasa a dinâmica da vingança na posteridade.

Juntas, Sofia e sua nova família unem-se na dor, buscando justiça contra aqueles que foram responsáveis por suas perdas. Após dezesseis anos, Sofia (Camila Queiroz) se transforma em uma mulher determinada a se vingar dos culpados por sua infelicidade. Contando com o apoio da família Paixão, seu plano de vingança se concentra em Lola e em outras figuras que lhe causaram dor. Nesse contexto, Sofia reencontra Gabriel (Enzo Romaní), o filho de Lola, e advogado do lado oposto, que aspira ser policial como seu pai, Rubém (Rei Black). Esse reencontro a leva a reavaliar suas escolhas e a refletir sobre o alto custo da busca por justiça, desafiando suas convicções e a linha entre vingança e direito. Assim, o enredo se desdobra entre planos mirabolantes e personagens em conflito constante, nalgumas vezes, oriundos de uma absurda suspensão da descrença por parte de nós espectadores. Transformada em fenômeno midiático na era da convergência, com o público dividido entre a tela do streaming e os comentários e desdobramentos de teorias, análises e opiniões nas redes sociais, Beleza Fatal se mostra eficiência em captar a atenção e entregar uma trama com “sabor de quero mais”.

Há vários bons elementos para o enredo ter se transformado num fenômeno midiático, mas o mais preponderante deles é a personagem Lola, como já mencionado, interpretada por Camila Pitanga, uma figura ficcional complexa e ambiciosa, que transita entre as aparências glamourosas das redes sociais e os segredos sombrios que sustentam seu sucesso. De secretária sonhadora a poderosa empresária à frente da clínica de estética Lolaland, ela enfrenta dilemas morais em sua incessante busca por poder, utilizando manipulações e enganos para sustentar a imagem de vida perfeita que projeta ao lado de Benjamin Argento. Em entrevistas para diversos portais, o autor Raphael Montes revelou que a construção de Lola, embora cercada de especulações sobre inspirações em influenciadoras digitais, foi baseada em sua própria mãe. Ele explicou que a essência da personagem reflete as características de sua mãe, uma mulher forte e determinada, que o inspirou a criar uma vilã com um “jeitinho especial”. Muitas das falas marcantes de Lola são, na verdade, bordões utilizados por sua referência materna, incluindo a famosa frase “falem mal, mas falem de mim”, que a deixou muito feliz ao saber de sua inserção na trama. A revelação do autor trouxe à tona uma nova perspectiva sobre a vilã, destacando a conexão pessoal e emocional que moldou sua personalidade e trajetória.

Ela é uma antagonista demasiadamente caricata, mas esse delineamento de personagem é o que dinamiza as engrenagens dramáticas da produção. A caricatura, como forma de representação exagerada de características e comportamentos humanos, tem um papel relevante ao longo da história da dramaturgia. Embora frequentemente esses personagens possam ser vistos como figuras negativas ou simplistas, eles desempenham funções mais complexas ao refletir realidades sociais diversificadas. Curiosamente, muitos personagens caricatos conquistam a adesão do público e oferecem críticas sociais contundentes, desafiando a noção de que a caricatura é um sinônimo de “superficialidade”. A construção de personagens caricatos geralmente se dá através da hipérbole, exagerando traços de personalidade, aparência física ou comportamentos. Esse exagero serve para destacar determinadas características que podem ser facilmente reconhecidas pelo público. Embora suas ações possam parecer absurdas, elas revelam verdades sobre a natureza humana e as dinâmicas sociais subjacentes. Essa estrutura proporciona uma forma de crítica social, onde as falhas e os vícios da sociedade são expostos e, muitas vezes, ridicularizados. Lola, em meu entendimento, é uma representação cabal daquilo que se tornou rentável e atrativo numa burlesca era da exposição ao ridículo nas redes sociais.

Os personagens caricatos muitas vezes se tornam carismáticos e populares, não apenas porque são engraçados, mas porque encontram uma ressonância nas experiências do público. Quando uma figura caricatural personifica um estereótipo comum ou uma frustração coletiva, ela se transforma em um reflexo da vida real, permitindo que os espectadores ou leitores identifiquem seus próprios desafios e dilemas. No texto de Beleza Fatal, Lola funciona exatamente dentro dessa proposta, nos permitindo lembrar também que a caricatura não se limita ao riso e em muitas ocasiões, serve como uma ferramenta de crítica social poderosa. Os escritores e criadores utilizam personagens caricatos para abordar injustiças, hipocrisia e desigualdades de uma maneira que transcende o mero entretenimento. Trazendo para o âmbito comparativo, ela me fez lembrar as escolhas narrativas de Manuel Antônio de Almeida para o protagonista Leonardo em Memórias de um Sargento de Milícias, um anti-herói cujas aventuras, embora divertidas, criticam a corrupção e as interações sociais da época.

Para ter se tornado um fenômeno midiático, Beleza Fatal tinha que apostar em recursos narrativos atrativos para o público sedento por entretenimento, numa era revolucionária no quesito oferta. Basta passar o controle nos streamings para ver a quantidade de conteúdo ficcional e documental disponibilizado. Sendo assim, como proceder em um planejamento que mantenha o público envolvido? Além da ótima antagonista, a produção também é eficaz em seus ganchos narrativos, um elemento basilar para a dramaturgia seriada. Esse modelo narrativo possui uma estrutura única que as diferencia de histórias com começo, meio e fim definidos. Entre os elementos mais cruciais para a eficácia dessas produções estão os pontos de virada e os ganchos, que desempenham papéis vitais na construção do enredo e na manutenção do interesse do público. A compreensão e a utilização eficaz desses recursos são fundamentais para o sucesso de uma série. Os pontos de virada são momentos decisivos que alteram o rumo da história, introduzindo novos conflitos ou revelações que desafiam os personagens e, frequentemente, a audiência. Esses eventos não apenas garantem a progressão da trama, mas também aprofundam o desenvolvimento dos personagens, uma vez que as reações deles a essas mudanças são essenciais para a construção da narrativa. Além dos pontos de virada, os ganchos são uma ferramenta indispensável na narrativa seriada. Um gancho geralmente ocorre no final de um episódio, criando uma expectativa no público e incentivando-o a continuar assistindo. Esse dispositivo é frequentemente utilizado para deixar questões sem resposta ou situações em aberto que geralmente promovem a nossa curiosidade, levando o espectador a se perguntar o que ocorrerá a seguir.

Assim, a intersecção entre pontos de virada e ganchos é uma estratégia poderosa para manter a audiência cativada. Quando um ponto de virada surpreendente é combinado com um gancho, a expectativa criada pode intensificar a relação do público com a série. Por exemplo, uma mudança inesperada na lealdade de um personagem pode ser acompanhada por um ponto de virada que revela uma nova ameaça iminente, compelindo os espectadores a retornar para descobrir as implicações dessa nova dinâmica. Em Beleza Fatal, os protagonistas e coadjuvantes constantemente se aproximam, depois se afastam, criam sombras diante de suas dimensões psicológicas e sociais, nos deixando em dúvida sobre seus respectivos destinos dentro de uma história onde praticamente nenhuma figura ficcional é plana, tampouco completamente confiável. Um aspecto importante, por sua vez, é a consistência e a plausibilidade das viradas e ganchos. Uma série que abusa desses recursos de forma pouco organiza pode frustrar o público, que permitindo que haja prejuízo na conexão emocional com a narrativa. Os idealizadores quase perdem a mão nos episódios finais, com viradas extremamente bruscas e vulgarização de situações que tinham sido evitadas até então, mas que, no entanto, se reorganizam ao longo de seu desfecho. A produção é, em linhas gerais, uma jornada interessante para nossa dramaturgia, bem como para a dinâmica mercadológica do audiovisual brasileiro, tendo sido ainda mais poderosa se evitasse excesso de coincidências e diálogos mais frívolos em sua reta final.

Ademais, para o nosso encerramento, versar sobre Beleza Fatal é tratar da nova dinâmica do gênero novela na era do streaming. Um dos gêneros mais emblemáticos da televisão brasileira, sempre ocupou um lugar de destaque na cultura do país, influenciando comportamentos e moldando a sociedade. Com o advento das plataformas de streaming, o cenário audiovisual brasileiro passou por uma revolução significativa, resultando em mudanças tanto na forma de consumo quanto na produção de novelas. Este ensaio examina essas transformações e discute as perspectivas futuras para o gênero. Historicamente, as novelas brasileiras sempre foram produzidas para exibição em horários nobres, com tramas que se estendiam por meses. As emissoras de televisão, em especial, a rede Globo, sempre dominou esse mercado. No entanto, com a popularização dos serviços de streaming, tais como Netflix, Amazon Prime Video, dentre outros, o modo como as pessoas assistem a conteúdos mudou drasticamente. A possibilidade de ver episódios sob demanda, sem intervalos comerciais e em qualquer lugar, alterou a relação do público com as novelas. E com isso, uma das principais mudanças observadas é a forma de contar histórias. As novelas tradicionais frequentemente apresentavam longas tramas intituladas por temas universais, mas que, muitas vezes, se arrastavam.

Com as plataformas de streaming, há uma necessidade de capturar a atenção do espectador desde os primeiros minutos, resultando em narrativas mais ágeis e dinâmicas. As novelas que estão sendo produzidas para essas plataformas, como é o caso de Beleza Fatal, tendem a ter episódios mais concentrados, com arcos narrativos que podem ser finalizados em menos tempo, em comparação às novelas convencionais. Além disso, a diversidade de temas e personagens se expandiu consideravelmente. As plataformas de streaming têm demonstrado uma maior vontade de explorar narrativas consideradas periféricas ou menos exploradas nas produções televisivas tradicionais. Questões relacionadas à identidade de gênero, raça, classe social e sexualidade são tratadas com mais profundidade e sensibilidade, refletindo as demandas de uma audiência que busca representatividade e identificação com o que é colocado na tela para seus instantes de entretenimento. Essa nova abordagem não apenas permite um enriquecimento do conteúdo, mas também amplia o seu o público-alvo e a dinâmica de consumo. As plataformas permitem que o público assista a episódios a qualquer momento, o que favorece o binge-watching, isto é, o ato de assistir múltiplos episódios seguidos. Essa prática modifica a maneira como o roteiro é estruturado, pois a expectativa de que os espectadores assistam a vários episódios seguidos exige uma construção narrativa que mantenha o interesse ao longo de toda a temporada.

Sendo assim, a sala de roteiristas de Beleza Fatal precisou compreender esses mecanismos para adaptar sua narrativa a essa nova forma de consumo. E, para nós espectadores, um questionamento: qual será o novo entretenimento viciante disponibilizado para o nosso entretenimento nos streamings?

Agora é aguardar para o surgimento do próximo fenômeno midiático que, acredito, não vai demorar para aterrissar no profícuo território do entretenimento brasileiro.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais