A montagem é uma das fases mais importantes da produção cinematográfica. Alguns clássicos aclamados pela crítica passaram por muitos contratempos durante o processo de filmagem, encontrando na mesa de montagem um recanto para adequação da sua estrutura e correção dos erros oriundos destes equívocos de produção. Apocalipse Now, Psicose, Tubarão, hoje clássicos do cinema, possuem relação estreita com os meandros da montagem.
Em Tubarão, dirigido por Steven Spielberg, a montadora Verna Fields ganhou fama transformando a produção cheia de problemas técnicos em um dos maiores sucessos na carreira do diretor, ganhando inclusive o Oscar de melhor montagem na cerimônia de 1976. Spielberg queria incluir uma cena em que o personagem Matt Hooper (Richard Dreyfuss) mergulhava no mar e encontrava um cadáver dentro de um barco naufragado. Mas as filmagens já haviam sido encerradas, as locações desmontadas, e o estúdio, apertava o prazo de lançamento, aumentando as cobranças.
O diretor convocou o ator para filmar a cena na piscina de Verna Fields, que havia construído o estúdio de montagem da produção nos fundos da sua residência. A produção ainda ganharia fama pelo uso da subjetividade: no processo de montagem, os envolvidos perceberam o quanto os problemas técnicos com os tubarões mecânicos prejudicavam a narrativa que seguia à risca o roteiro. Dessa forma, investiram na abordagem subjetiva do tubarão, representado, na maioria das cenas, pela ótica de uma câmera serpenteando as águas, incluindo no canal sonoro a angustiante trilha sonora de John Willians.
Apocalipse Now, dirigido por Francis Ford Copolla e montado por Walter Murch, foi relançado em 2001 no festival de Cannes, totalmente remontado, com 49 minutos de cenas inéditas. O filme, roteirizado a partir do romance Hearth of Darkness, de Joseph Conrad, refletia no formato épico, questões filosóficas sobre o tema da guerra do Vietnã, conflito que deixou profundas cicatrizes na geração do diretor. Durante as filmagens, Copolla enfrentou dificuldades extremas com o elenco, além de alguns percalços técnicos que precisaram ser retocados durante a montagem de Murch.
Em Psicose, a montagem ocupa centralidade no sucesso da trama. Alfred Hitchcock e sua personalidade teimosa quase colocaram uma das suas mais famosas produções em risco. Reticente quanto a música tema produzida por Bernard Herman, Hitchcock decidiu entregar o filme ao estúdio sem a famosa composição arrepiante da cena do chuveiro. Recebendo indicações negativas sobre o seu filme, Psicose foi para a remontagem, desta vez, sob a supervisão da sua esposa, Alma Reville, que conseguiu convencer o diretor a colocar a trilha na cena, tornando-se um dos trechos mais referenciados no que tange à montagem e à inovação no cinema, tanto academicamente, assim como no senso comum. A montagem da cena do chuveiro, sugerindo mais do que mostrando, é também um dos trunfos do filme, que conseguiu passar, mesmo com dificuldades, pelas teias da censura da época. Estas informações estão bem ilustradas na recente cinebiografia Hitchcock, dirigida por Sacha Gervasi.
No Brasil, o cultuado Cinderela Baiana, é um dos exemplos da relação entre a produção e o que é resgatado durante o processo de montagem. Os oportunistas Conrado Sanchez e Antônio Polo Galante, então parceiros de produções desde a pornochanchada, realizadores de filmes como A menina e o estuprador, A menina e o cavalo, Sem vaselina e Como afogar o ganso, decidiram investir numa cinebiografia sobre Carla Perez, na época, dançarina de axé e celebridade do momento nos programas televisivos, inclusive dominicais, nas emissoras nacionais.
Sem roteiro e com uma protagonista que havia percebido a enrascada do projeto e desistido de terminar as filmagens, eles entregaram a produção para Eder Mazini, que alegou ter truncado muitas cenas e feito milagre com o material bruto que recebeu. Os envolvidos no projeto conseguiram filmar apenas 50% da produção, mas ainda assim, o filme foi lançado nos cinemas, numa sexta-feira, retirado de cartaz no dia seguinte, saindo em VHS pela Playarte alguns meses depois. Assistindo ao filme, percebemos que diferente das produções anteriormente citadas, nem a montagem foi sequer suficiente para salvar a produção, considerada, por unanimidade, como um dos piores filmes do cinema nacional.
Diante deste breve panorama introdutório, o principal ângulo a iluminar nesta tríade de artigos é a importância da montagem em As Horas, drama dirigido por Stephen Daldry, representante desta linhagem de trabalhos aclamados nos aspectos da montagem (e tema da quarta parte deste especial). Buscando aproximar o espectador do fluxo de consciência comum à obra literária que serve como ponto de partida, o livro homônimo de Michael Cunningham, pastiche do conto Mrs. Dalloway, de Virginia Wolf, também marcante no que tange ao fluxo de consciência e subjetividade, As Horas é um marco na montagem, importante para a reflexão desta fase do processo de produção tão importante para a indústria cinematográfica.
Na seara da teoria, as obras O sentido do filme e A forma do filme, do soviético Sergei Eisenstein, Estética da montagem, de Vicente Amiel, além das considerações sobre a montagem por parte de Jacques Aumont, em A estética do filme, Blain Brown, em Cinematografia, e Walter Murch, em Num piscar de olhos, que serão fundamentais para o norteamento estrutural deste especial, que ainda conta com os postulados de Marcel Martin, em A linguagem cinematográfica.
Até o próximo texto, enquanto isso, bons filmes!