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Entenda Melhor | Alegorias Entre Arquitetura e Cinema: Um Estudo de Caso

Gherkin: a arquitetura sensual londrina como espaço cênico para o ambíguo Instinto Selvagem 2.

por Leonardo Campos
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As relações entre arquitetura e cinema estão delineadas desde o Manifesto das Sete Artes e Estética da Sétima Arte, escrito pelo italiano Ricciotto Canudo e publicado em 1923, uma atualização de outro texto seu de 1908, na época, reflexão que colocava o cinema como a sexta arte, modificado para a sétima posição depois da inclusão da dança, manifestação que vem depois da arquitetura, escultura, pintura, música e poesia. Sabemos que algumas considerações são passíveis de reorganização, após tantas décadas de novos direcionamentos para pensar o cinema. A arquitetura, por sua vez, independente das novas perspectivas para o manifesto, não pode ficar de fora, pois é matéria básica para a construção dos espaços que engendram os conflitos dramáticos dos personagens que compõem as mais variadas narrativas ofertadas pelo cinema, uma arte em constante processo de transformação de formatos.

Quando pensamos em arquitetura no cinema, não podemos ficar apenas na dimensão da construção de cenários, um setor que integra o design de produção. Podemos refletir também o aproveitamento de espaços da vida real, imbuídos dentro das dinâmicas ficcionais e, nalgumas vezes, idealizado, revigorado, repensado, dentre outras ações que reformulam tais territórios. Se observarmos, por exemplo, Nova Iorque, perceberemos o quão diferente o lugar máximo do cosmopolitismo estadunidense aparece em narrativas diversas, tais como as temporadas de Sex and The City ou a ambientação suja e noturna da visita do antagonista slasher Jason no equivocado, mas divertido, Sexta-Feira 13 Parte 8: Jason Ataca Nova Iorque. O Rio de Janeiro, uma metonímia do Brasil, em especial, nas histórias que constroem um olhar estereotipado sobre os nossos costumes, diferencia-se bastante em Cidade de Deus e Bossa Nova, produções dentro de feixes temáticos distintos, mas ambientados praticamente no mesmo lugar.

Diante do exposto, caro leitor, a breve reflexão que se inicia pretende fazer uma análise da cidade e da arquitetura na dinâmica do cinema, tendo como recorte, o filme Instinto Selvagem 2, suspense com a femme fatale mais famosa do cinema contemporâneo, Catherine Tramell, interpretada por Sharon Stone. É possível observar, no desenvolvimento do filme dirigido por Michael Canton-Jones, a importância que o espaço urbano, em especial, um de seus edifícios mais famosos, o sensual e ousado Gherkin (30 St Mary Axe), projeto arquitetural de luxo, situado bem no meio de Londres, uma estrutura em formato fálico de concreto, aço e vidro, elemento bastante representativo para a compreensão dos temas propostos pelo roteiro que tentou reestabelecer a perigosa personagem que antes, tinha deixado o seu rastro de sensualidade e morte em São Francisco, espaço cênico do antecessor de 1992, dirigido por Paul Verhoeven.

Para Relembrar Instinto Selvagem 2

No filme, a escritora Catherine Tramell vive as suas aventuras em Londres. Logo na abertura, ela protagoniza uma tórrida cena que mescla os seus desejos mais profundos: prazer sexual envolto em situações arriscadas. Conduzindo um carro em alta velocidade, ela corta as ruas do território inglês, colocando a sua vida e a do carona, uma celebridade dos esportes, em risco. Não demora para o carro se chocar com um obstáculo e cair num rio, afundando. Enquanto escapa ilesa, a personagem deixa o homem ao seu lado para trás, um ser incapaz de se salvar por conta própria, haja vista o alto índice de drogas em seu organismo. Daí, a trama corta para a investigação policial que pretende comprovar que Catherine não é apenas um perigo para si, mas para outros. Munida de seus discursos safos e de um bom advogado, a viúva negra escapa.

A perigosa Catherine Tramell no interior do Gherkin (acima) Dr. Michael Glass no térreo e o instituto psiquiátrico com suas estruturas clássicas (embaixo) 

Há, no entanto, outros desafios. Apesar de não ser presa, a femme fatale precisará ser acompanhada por um psiquiatra, Dr. Michael Glass (David Morrissey), um profissional renomado não apenas no ramo da clínica, mas também conceituado academicamente, com planos de se inserir ainda mais no campo intelectual londrino. Se tratando de um filme do universo de Instinto Selvagem, sabemos que ele logo será envolvido pela perigosa teia de Catherine Tramell, uma mulher que sabe usar os seus atributos sensuais junto com a inteligência sagaz, atributos que deixarão o psiquiatra aos pés da loira com planos astutos e diabólicos. Nas idas e vindas, os dois acabam inseridos numa trama de mentiras, pistas falsas e assassinatos, situações que ocorrem numa versão geralmente incomum daquilo que contemplamos constantemente como Londres pelo viés cinematográfico, isto é, não temos os famosos ônibus turísticos vermelhos, os guardas reais com seus trajes peculiares, tampouco as tomadas do Tâmisa.

Londres, aqui, é sombria, noturna e sensual, foco da panorâmica análise do próximo tópico.

Gherkin: Arquitetura Sensual Como Alegoria Narrativa

Ao longo da história do cinema, podemos observar que a concepção de cidade moderna sempre esteve conectada com os desdobramentos da linguagem desta arte audiovisual. Oriundo das novas maneiras de experienciar o espaço e o tempo das sociedades aquecidas pelas revoluções industriais, potencializadoras de novas formas de percepção do mundo, o cinema e as cidades dialogam por serem artes de autores, fruto de relações humanas coletivas e configuradas numa diversidade que mescla estruturas materiais, num processo que colabora com a sociabilidade cotidiana. No cinema, as cidades integram um imaginário com aspectos físicos, simbólicos e culturais que na dinâmica das narrativas ficcionais, ganham funcionalidades diversas e configurações adicionais para aquilo que o território é de fato. Curiosamente, em Instinto Selvagem 2, como já mencionado, Londres ganha um olhar diferente daquilo que o cinema geralmente retrata quando estamos diante de uma trama que se desenrola na cidade.

Obscuro, o território aqui serve de espaço cênico para os planos diabólicos de Catherine Tramell, como se a cidade refletisse a ambiguidade e a atmosfera de tensão sexual dos contatos entre a loira fatal e o psiquiatra interpretado por Morrissey. Ao estudar o filme em si, os featurettes do seu lançamento em mídia física e a faixa de áudio com comentários assertivos e curiosos do cineasta Michael Canton-Jones, percebemos que essa de fato foi a intenção do projeto, numa busca por fugir dos clichês de apresentação da cidade e assim, criar uma ambientação provocadora, menos lugar-comum, conectada com a alta carga de sensualidade proposta pelo incendiário contato entre os personagens acossados pelos desejos sexuais que saem da latência e se tornam consumados em tórridas cenas de sexo quase animalesco.

O Gherkin em planos abertos e fechados e uma representação alegórica no isqueiro de Catherine Tramell: a forma fálica do projeto arquitetônico circunda por toda a narrativa, em diversos momentos.  

A alegoria maior, até óbvia, em Instinto Selvagem 2, é o Gherkin como o principal espaço de desenvolvimento da história. É neste suntuoso edifício situado no meio de Londres, numa região que mescla arquitetura clássica tradicional e os novos modelos de representação, conectados com as perspectivas vanguardistas modernas, o lugar onde Catherine Tramell e o Dr. Michael Glass digladiam constantemente, em especial, nos embates por meio de diálogos, olhares, pequenas aproximações, atos catalisadores da onda de emoções que envolve os personagens. Construído entre 2001 e 2003, o Gherkin teve as suas portas abertas em 2004, sendo contemporâneo ao processo de produção e lançamento do filme. Os realizadores alugaram uma das salas do empreendimento e o tiveram como cenário, acoplando alguns elementos organizados pelo design de produção de Norman Garwood. Para o devido cumprimento das intenções narrativas, a equipe também contou com a adequada direção de fotografia de Gyula Pados e o apoio da textura percussiva de John Murphy, profissionais que desenvolveram ótimos trabalhos, independentemente do resultado dramático final que sabemos, fracassou.

Norman Forster (conhecido por seu interesse em arquitetura de formas arrojadas com prédios ousados e preocupado com questões sobre meio ambiente), Foster and Partners, Ken Shutteworthen e Jean Mich assinaram o projeto arquitetônico que sedia Instinto Selvagem 2, um monumental edifício de 180 metros e 41 andares, construído com estruturas de aço, concreto e uma fachada em vidro que se ajusta em sua forma de circunferência, quando levada para o universo psicanalítico dos duelos entre o psiquiatra e a escritora fatal, nos remete aos conceitos de representação fálica, próprios das teorias deste ramo, em especial, as investigações freudianas, campo que estuda o tema de maneira recorrente com foco nas relações de poder, simbologia que desde os povos mais antigos, tinha a fecundidade da natureza como elemento representacional. Há também associações possíveis entre a forma do edifício com os diversos objetos fálicos presentes na narrativa, em especial, o famoso picador de gelo, aqui menos significativo em função, se comparado ao primeiro filme, mas ainda assim, na memória de quem conhece esse universo cinematográfico. Espaço para as idas e vindas entre os personagens e imagem central para os enquadramentos que relacionam os atos do filme, o Gherkin foi uma escolha funcional e bastante poética, um dos pontos fortes da estética desta produção.

O único plano turístico de Londres, cidade representada por outros viés na narrativa (acima). O Gherkin como elemento de ligação entre atos e a travessia do Dr. Michael Glass por uma perspectiva diferenciada do Tâmisa.

Focado na captação simbólica das tecnologias que dominam o contemporâneo, é considerado parte do movimento neo-futurista, reinserção da vanguarda moderna para os anos finais do século XX, com envolvimento das artes, design e da arquitetura, numa proposta que desvia doas atitudes do pós-modernismo e representa uma postura idealista do tecnológico. No bojo deste movimento, temos também uma reflexão em torno das novas formas de se pensar a estética e a funcionalidade das cidades, centros sempre em constante crescimento. Localizado em meio ao principal distrito financeiro de Londres, o Gherkin é um projeto arquitetonicamente significativo, parte integrante da cidade em questão e ponto de articulação entre personagens e situações importantes para o desenvolvimento do roteiro da produção, uma trama de visual obscuro e atmosfera sensual, elementos ideais para o estabelecimento da ambiguidade de Instinto Selvagem 2, um filme que relaciona arquitetura antiga e contemporânea em seus enquadramentos e constrói um espaço cênico que coaduna assertivamente com as suas propostas temáticas. Apesar de seus equívocos dramáticos em sua versão final, rechaçada por parte do público e da crítica, no que diz respeito aos elementos visuais e alegóricos aqui mencionados, a narrativa não deixa nada a desejar.

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