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Entenda Melhor | A Virgindade Como Talismã no Slasher

Uma análise panorâmica da virgindade na história evolutiva da humanidade e... no slasher.

por Leonardo Campos
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A virgindade é um tabu, correto? Ondas feministas surgiram ao longo das décadas do século XX, noções de empoderamento são cada vez mais discutidas, mas o tema ainda é bastante controverso. Desde que assistia aos filmes do subgênero slasher entre o final dos anos 1980 e o deslizar da década de 1990, percebia que um arquétipo básico se mantinha instalado na maioria destes filmes, com algumas variações. A garota mais comportada geralmente chegava ao final da narrativa, derrotava o monstro de traços góticos, mascarado e com o rosto muitas vezes indeterminado, diferente as jovens que se entregavam ao sexo, bem como as roupas ousadas, o linguajar menos polido, a bebedeira sem culpa, dentre outros comportamentos condenáveis pelo lado tradicionalista de nossa sociedade hipócrita. Mas, por qual motivo este padrão tinha se estabelecido? Descobri, ao longo dos anos, no exercício da crítica e no amadurecimento das reflexões. É o que pretendo destrinchar neste breve, mas acredito que elucidativo artigo.

Atualmente, esta é uma questão resolvida. Não é preciso se virgem para sobreviver ao terror estabelecido pelos assassinos no âmbito do slasher. Lá em 1996, a dupla Wes Craven e Kevin Williamson, diretor e roteirista de Pânico, respectivamente, já tinham flertado com o debate e satirizado tal perspectiva para o arquétipo, problematizando a questão por meio de uma estrutura dramática metalinguística que rendeu uma franquia responsável por elevar o subgênero, anteriormente defasado com os excessos de continuações e tramas recicladas após a pomposa Safra de 1981. Quando o slasher começava a adentrar mais uma vez na cultura do excesso, um grupo de realizadores resolveu produzir Medo em Cherry Falls, uma divertida empreitada sobre personagens de uma cidade que promovem o holocausto do hímen ao descobrirem que o assassino da vez aniquilava aqueles que ainda não tinham se entregado aos prazeres carnais.

Sendo assim, entre Pânico e Medo em Cherry Falls, esta reflexão pretende compreender por meio de uma abordagem panorâmica, os mecanismos que engendram a questão da virgindade como um talismã ao longo de determinados momentos históricos, culminando na contemporaneidade, para que possamos entender o presente em simbiose com os desdobramentos daquilo que ressoa do passado. Antes de adentramos em especificidades destas narrativas, num passeio que também vislumbra outros clássicos do slasher, vamos compreender de maneira sucinta a história desta tabu, afinal, apesar de parecer paradoxal numa era de tantas revoluções sociais, a virgindade ainda é um tema polêmico, haja vista a existência de clínicas para pessoas que desejam reconstituir o hímen, certificados que precisam ser entregues aos maridos por noivas mulçumanas antes de se tornarem esposas, numa discussão que envolve fetiche masculino, apego aos ritos de passagens tradicionalistas, dentre outros.

A Virgindade em Perspectiva: Uma Breve Análise Histórica

Curioso diante do assunto, o meu primeiro passo para compreender o tabu da virgindade foi a leitura de História da Virgindade, de Yvonne Knibiehler, publicado no Brasil pela Contexto em 2016. Panoramicamente, o livro reflete sobre uso do corpo, condição feminina e representações de gênero, dividido em cinco partes. Na primeira, Knibiehler analisa o corpo feminino na cultura greco-romana, numa análise sobre as divindades, dentre elas, Atenas, Artêmis e Héstia, figuras míticas simbólicas para o comportamento dos mortais, revestidas pelo manto da virgindade, numa sociedade organizada em volta de questões que inferiorizavam as mulheres. Na segunda parte, a autora filosofa sobre as religiões monoteístas, flertando com o ponto de vista dos judeus sobre a legitimidade da prole diante da virgindade como honra, dando ainda destaque aos hebreus e a dominação masculina, bem como uma reflexão sobre Joana D’Arc, Agnes e Maria, a “mãe do filho de Deus”. Ademais, pontua a visão da menstruação como impureza, a gravidez sucessiva como um item básico da cartilha cotidiana feminina, além da ascensão da virgindade como determinação com o advento do cristianismo. O véu e os votos, símbolos imaculados de status, abrem a terceira parte do livro, um capítulo interessante que também retrata as mulheres violadas como figuras que se transformavam em seres marginalizados socialmente, nada diferente do que temos na contemporaneidade, na maioria das vezes, não é mesmo, caro leitor?

Ser vítima de violação era uma desonra, numa época de avanços da medicina com a descoberta do hímen, período da história que preconizava a educação virginal, o matrimônio e a vigilância social. Na quarta parte de História da Virgindade, Yvonne Knibiehler analisa o estabelecimento das ideias iluministas e a dessacralização da virgindade, oriunda do desenvolvimento científico, da laicização da sociedade e de alguma emancipação feminina. É uma fase que traz alguns avanços, mas não deixa de tornar culpada, a vítima de abuso sexual, com a virgindade ainda sendo, para muitos, uma prova da devoção feminina e da submissão ao homem. Em detrimento da instrução, tinha-se a educação para a docilidade e ignorância sexual para as mulheres. Ainda neste capítulo, a autora versa sobre a virgindade no século XIX, era do declínio para algumas vocações religiosas, além de abordar o contexto da Primeira Guerra Mundial, momento de intensas alterações comportamentais, acentuadas com o advento da psicanálise, numa fase de busca por compreensão da diversidade dos desejos e da sexualidade humanas, passando ainda pela Segunda Guerra Mundial, era do crescimento do contingente de mulheres médicas, ampliação das pesquisas sobre sexualidade e métodos contraceptivos. Na literatura e no cinema, o sexo era um tema cada vez mais explorado.

Há também uma passagem pelos anos 1960 e seu advento da pílula, das revoluções sexuais, do estupro encarado de outra maneira, num relativo declínio do patriarcado, mesmo que muitas inconsistências ainda predominassem no paradoxal status da virgindade como tabu. Por fim, as pressões familiares, os novos problemas oriundos das conquistas no campo da liberdade de expressão e a releitura da virgindade por grupos religiosos fundamentalistas abriram espaço para debates em nossa era de “conservadorismo hipócrita de direita”. Encerrada a leitura do livro, ainda sentia que podia explorar mais o assunto. Era curioso me lembrar da época em que um milionário ofertou uma grande quantia de dinheiro para Britney Spears no começo de sua carreira, quando se vendia a imagem de “boa garota” logo em seu primeiro álbum, exaltando os valores da virgindade como pureza. O lance? Comprar a virgindade da moça, para deflorá-la. Recentemente, Paris Hilton declarou que iria recuperar a sua virgindade quando conseguisse o cara certo para se casar. E o que dizer da personagem de Reese Whiterspoon na primeira temporada de Big Little Lies, transtornada com a filha que colocou a virgindade num leilão para bancar os seus estudos? Observe, caro leitor, como este é um tema rizomático que se bifurca para diversos lados. Por este motivo, decidi me aprofundar um pouco mais e investir, também panoramicamente, em outros olhares para o tema, dentre eles, algumas concepções de Freud e Nietzsche, figuras do século XX que filosofaram sobre o assunto.

Para Freud, o homem primitivo instituía alguns tabus quando temiam algum perigo ou medo em seu entorno. É algo da esfera do “sagrado” e do “proibido”. Em O Tabu da Virgindade, o psicanalista explica que a atribuição de valor para tal questão criou a sujeição da mulher, numa reflexão de complexa perspectiva histórica que delineia a cultura de determinados povos primitivos que rompiam o hímen antes do casamento, para que a ação não fosse responsabilidade do noivo. Nos compêndios filosóficos de Tomás de Aquino, encontramos uma declaração elucidativa para entendermos as motivações da virgindade como um tema enraizado ainda hoje em nossa cultura, parte de um tecido social intenso e complexo. Conforme o autor, “aquele ou aquela que conheceu o prazer carnal não pode mais voltar ao estado normal anterior”, afirmação que nos leva ao ideal a virgindade como interação contínua entre natureza e cultura, espécie de distinção social, bem como moral e simbólica, de carga afetiva e emocional muito pomposa. É uma discussão que nos leva para as questões filosóficas sobre a moral debatidas por Nietzsche. Conjunto de regras criadas pelos dominadores e baseadas no passado para a perpetuação da convivência do “rebanho” dominado no presente, a moral associada ao cristianismo é interessantemente refletida em Genealogia da Moral.

Neste texto, o filósofo explica que a moral cristã se embasou num conjunto de ideias que pretendiam subverter as virtudes humanas e torna-lo um ser domesticado diante de seus instintos. Salvaguardas as devidas proporções, os fracos, ou seja, os submissos, eram os seres bons e iluminados, enquanto os fortes, isto é, os ousados e arredios, eram os maus da história. Ao longo do momento das publicações destas ideias, percebemos que nos dias atuais, ainda há esta concepção de pensamento enraizada fortemente em nossa cultura, em diversas nuances em espaços, e, ao trazer para o sistema de produção do subgênero slasher, propositalmente ou não, são demarcações firmemente estabelecidas na construção dos enredos destas narrativas, em especial, ao longo dos anos 1970 e 1980. Em linhas gerais, o pensamento é o seguinte: Deus pune os pecadores, pois é justo. Assim, a morte chega para os personagens como meio de retaliação para aqueles que usam indevidamente o livre-arbítrio, num castigo para quem ousa trocar a razão pela paixão. Aqui, para situar, temos diluído um punhado das ideias de Santo Agostinho sobre a questão do livre-arbítrio. A fragilidade da carne, então, é a impureza da humanidade. A perda da virgindade é uma mancha, contaminação que leva ao processo de busca pela purificação de muitos.

Na Idade Média, a nudez e o sexo se tornam pecaminosos, mas na Grécia Antiga, por sua vez, era representações do belo. No entanto, ao adentramos pelas veredas do slasher, percebemos que o tabu se estabelece com firmeza, mas como a retomada do subgênero entre os anos 1990 e 2000 subverteu tudo isso? A primeira aparição de Michael Myers no cinema é um bom caso para pensarmos estas associações. No filme de 1978 Laurie é a personificação da “boa moça”. Ajuda o pai nos trabalhos imobiliários, poupa dinheiro recebido pelos trabalhos como babá, além de ser uma exímia aluna, ao responder inteligentemente aos questionamentos literários e filosóficos da professora. Em certo ponto, uma de suas amigas diz que ela deveria deixar os livros de lado, material que a personagem carrega em excesso, tendo em vista se dedicar ao uso de um bom cartão de crédito. Laurie também não possui namorado, tampouco atividade sexual. As amigas são nitidamente tratadas como fúteis, enquanto a protagonista é apontada como “inteligente” pelos rapazes que a cortejam, característica que a deixam alijada das práticas oriundas do sexo juvenil. Ademais, ela também tem um lado maternal, ao demonstrar afeto e proteção com as crianças. Sua personagem, assim reverberou pelo slasher na década seguinte, repensado nos anos 1990 e na contemporaneidade. Será o que iremos refletir, também panoramicamente, em nossa próxima seção. Vamos nessa?

O Holocausto do Hímen ou As Virgens Agora Podem Morrer?

Num determinado momento de Pânico 4, de 2011, dirigido e escrito por Wes Craven e Kevin Williamson, respectivamente, uma divertida discussão é estabelecida pelos personagens quando o tema é a virgindade. Segundo dois cinéfilos inveterados de um clube de cinema da instituição onde estudam, as virgens, diferente dos filmes da década de 1980, agora podem morrer impiedosamente pelas mãos de Ghostface. Lá em 1996, no primeiro filme da franquia, o tabu da virgindade é parodiado pelos realizadores com a sobrevivência de Sidney Prescott, a heroína da narrativa, figura ficcional que perde o seu manto no terceiro ato para um dos responsáveis pela onda de assassinatos. Apesar de não ter sido em sua totalidade, a maioria das narrativas deste segmento condenava as garotas sexualmente ativas, encaminhadas para a morte, num contexto onde só havia espaço para sobrevivência aos comportados, moralmente capazes de derrotar o monstro, ao menos na história em que se encontravam, passando o bastão para outra final girl “certinha” na inevitável continuação. Ao sabiamente parodiar isto, Pânico abriu espaço para que Geoffrey Wright dirigisse o divertido e discutível Medo em Cherry Falls, escrito por Ken Selden, filme que em meu ponto de vista, é a última pá de terra para o slasher retomado em 1996, transformado posteriormente com a fase das refilmagens e reinicializações dos anos 2000.

Na trama, situada em Virginia, região peculiar para a proposta da trama, os jovens de Cherry Falls se encontram apavorados com a figura de um antagonista que aniquila as suas vítimas com um traço bastante peculiar: são virgens. Pendurada, a primeira personagem a morrer lembrar bastante um dos crimes do aterrorizante Assassino do Zodíaco. Com a palavra “virgem” talhada em sua perna, o cadáver é um aviso para que todos fiquem antenados, pois os próximos passos prometem um banho de sangue, responsável por deixar os jovens tão temerosos que chegam ao ponto de criar uma festa intitulada o holocausto do hímen, tendo em vista deixar o tabu da virgindade de lado para evitar ser uma das vítimas do impiedoso assassino, uma figura que tem os seus segredos do passado revelados no último ato desta narrativa com proposta ousada, mas execução questionável, algo que, por sua vez, não tira a importância de sua discussão para um subgênero profícuo, sempre em reconstrução no esquema de produção cinematográfica.

Com indumentária feminina, o “monstro” aparece de peruca, unhas pintadas de vermelho, munido de sua arma branca afiada e pontiaguda, interessado em acertar as contas com quem estragou a sua vida no passado. Aos curiosos, a questão da virgindade, para além do slasher, foi tema de peso para as estruturas dramáticas de outras produções de quilates variados, tais como Segundas Intenções, Minha Mãe é Uma Sereia, A Maldição de Carrie, Beleza Americana, além do mais recente Corrente do Mal, de 2016, escrito e dirigido por David Robert Mitchell, filme de terror com atmosfera sombria e estética apurada, trama que ao longo de seus 100 minutos, nos apresenta o horror diante de uma ameaça invisível, com jovens envoltos numa redoma sobrenatural, tendo a transmissão da maldição que não tem uma face exata como alegoria inevitável para a contaminação sexual diante das doenças sexualmente transmissíveis, algo que ao “pegar” um indivíduo, precisa ser urgentemente passado adiante para que haja a desejada garantia de sobrevivência. Com evocações da atmosfera musical de John Carpenter, bem como imagens que nos remetem ao processo de concepção visual de Halloween: A Noite do Terror, de 1978, o filme é um ótimo exemplar para pensarmos o tabu da virgindade, um talismã nos meandros do subgênero slasher, em perspectiva neste panorâmica reflexão sobre cinema.

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