É interessante testemunhar o quanto a vida pode imitar a arte. O Hobbit conta a história de uma tropa de anões, um hobbit (claro!) e um mago se juntando para, depois de uma jornada cheia de percalços, chegar até a Montanha Solitária, matar um dragão chamado Smaug e recuperar o tesouro roubado dos anões. A jornada da produção cinematográfica do filme também foi parecida, com uma quase queda de um gigante, a entrada de personagens chave, a saída de outros e, no final, o retorno de quem nunca deveria ter saído.
Tamanha foi a confusão durante a batalha montanha acima para derrotar o dragão – ou começar a efetiva produção do filme – que ela poderia, por si só, ser uma obra de Tolkien, se fosse reduzida a termo. Mas, como Tolkien não está mais entre nós (a não ser que ele, na verdade, seja um elfo e tenha ido para Valinor), temos que nos contentar com anedotas sobre a produção, que tentarei reunir aqui, para vocês se divertirem e, talvez, se surpreenderem com alguns detalhes.
No entanto, como gosto de começar pelo começo, decidi fazer que nem a Warner e Peter Jackson e inflar meu trabalho ao máximo, dividindo esse Entenda Melhor em duas partes: a primeira sobre a produção da trilogiaO Senhor dos Anéis e, a segunda, sobre a produção de O Hobbit. Pensei em dividir em três partes, mas, como abomino essa decisão caça-níquel (e apenas tolerava a divisão em dois filmes), resolvi me segurar ao máximo.
Mas vamos lá!
Os Espíritos, King Kong, Saul Zentz e Miramax
O neozelandês Peter Jackson é, sem dúvida alguma, um diretor polivalente. Antes de 1996, sua carreira cinematográfica consistia, basicamente, de filmes trash produzidos em sua terra natal, como Náusea Total 1987) eFome Animal (1992). Mesmo Almas Gêmeas (1994), seu filme mais “normal” e com a então principiante Kate Winslet, carregava, em sua essência, uma qualidade estranha, surreal.
Mas uma coisa unia todos os seus filmes: o uso de efeitos visuais e especiais. No começo, a criatividade dos efeitos práticos é algo que dá gosto de ver (se você, claro, conseguir ultrapassar a parte da nojeira). Esse lado técnico de Peter Jackson, de maneira muito semelhante a George Lucas, levou-o a fundar, junto com Richard Taylor e Jamie Selkirk, a hoje famosa Weta Digital, para trabalhar nos efeitos especiais de Almas Gêmeas.
Isso não passou despercebido de Hollywood e, sob a batuta de Robert Zemeckis (na época em que ele ainda fazia filmes bons), Jackson conseguiu emplacar seu primeiro grande projeto hollywoodiano – Os Espíritos – que ele também trouxe para a Nova Zelândia. A Weta passou, então, a cuidar dos efeitos desse seu novo filme.
Mas o resultado foi um fracasso de bilheteria. Além disso, Peter Jackson viu seu projeto de estimação – o remake de King Kong de 1933, o filme que o inspirou a ser cineasta – ir bueiro abaixo, já que a Universal ficou com receio de produzir um filme de alguém que já havia fracassado comercialmente e, também, em meio a uma outra refilmagem de filme de gorila (Poderoso Joe, de Ron Underwood) e uma refilmagem de Godzilla (de Roland Emmerich), cujas produções já haviam se iniciado.
Acontece que King Kong foi, na verdade, um obstáculo para Peter Jackson já que, entendendo a mecânica de Hollywood, ele já havia se envolvido em negociações para obter os direitos de produção de O Hobbit e O Senhor dos Anéis do famoso produtor Saul Zentz. Como a oferta para refilmar King Kong surgiu no meio desse caminho e, ao mesmo tempo, ficou determinado que Zentz não tinha os direitos amplos de distribuição da obra de Tolkien, qualquer tentativa de abordar a Terra Média em filme encontrou, momentaneamente, obstáculos intransponíveis.
No entanto, como já disse, o projeto King Kong acabou engavetado e a Miramax, então encabeçada pelos Weinstein, bancaram a negociação de Peter Jackson e Fran Walsh. A missão deles era desembaraçar os direitos sobre O Senhor dos Anéis. Quem conhece um mínimo de Hollywood sabe o quanto pode ser complicada uma missão como essa, com certeza muito mais complicada do que levar o “um anel” para ser derretido na Montanha da Perdição.
Mas Peter Jackson e Fran Walsh fizeram como dois hobbits e, juntando toda sua força de vontade, ganharam a batalha. Mas a guerra estava longe do fim!
Dois filmes, um filme, três filmes e, enfim, entra a New Line
Jackson e Walsh chegaram a escrever dois roteiros abordando todos os três livros da trilogia. Um deles iria até a chegada de Frodo a Mordor e, o segundo, pegaria desse ponto. Acontece que um executivo da Miramax foi para a Nova Zelândia verificar o trabalho da dupla que, a essa altura, já contava com a ajuda inestimável de Philipa Boyens, e concluiu que o dinheiro prometido por sua produtora – 75 milhões de dólares – não daria nem para o começo. Em sua estimativa, as produções precisariam de, pelo menos, o dobro disso.
E o que aconteceu? Ora, o óbvio: os dois filmes deveriam ser condensados em um apenas. Imaginem só condensar os três livros de Tolkien em um filme de 2 ou 3 horas? Para isso, até mesmo a batalha de Helm’s Deepteria que ser extirpada da história. Isso sim é uma adaptação!
Foi aí que Jackson deu um ataque e resolveu parar o trabalho para tentar dar um jeito no problema. Voltou para Hollywood com um filminho de 35 minutos que havia feito para apresentar o projeto e o resultado foi que ele conseguiu conversar com a New Line. Diz a lenda que Robert Shaye, executivo do estúdio, depois de ver o tal filminho perguntou a Jackson porque ele estava pensando em apenas dois filmes se havia três livros? Se isso foi verdade, fico imaginando o sorriso de felicidade no rosto do diretor.
Mas claro que considerações econômicas foram tecidas e a New Line, provavelmente, viu a exeqüibilidade do projeto desde que a obra de Tolkien fosse respeitada mais completamente e, com isso, fosse possível já trazer para o âmago da produção a boa vontade da legião dos fãs ardorosos da Terra Média. A New Line, também, precisava justificar-se como estúdio, já que era parte do conglomerado Time Warner, que já tinha a Warner Bros. A New Line era tida como emprego ineficiente de recursos e estava ameaçada de ser incorporada à Warner Bros.
No entanto, a trilogia de O Senhor dos Anéis acabou servindo como uma bóia de salvação para a New Line, pelo menos por mais alguns anos. O trabalho de Jackson, Walsh e Boyens teve que basicamente recomeçar não só para não utilizar o trabalho já feito para a Miramax, que já havia gasto uma grana no processo, como, também, para permitir a redivisão da obra de Tolkien em três roteiros com alguma coerência.
David Lean, Ray Harryhausen e Alan Lee
Mas, mesmo com essa vitória, o projeto ainda era muito arriscado. Afinal de contas, para cortar custos e permitir que a trilogia inteira pudesse ser filmada com um orçamento pouco abaixo dos 300 milhões de dólares (valor irrisório se pensarmos que o terrível Episódio I de Star Wars, de 1999, custou, só ele, 115 milhões de dólares), os filmes teriam que ser rodados simultaneamente.
Para aqueles que coçaram a cabeça com a lógica do que afirmei acima, não se desesperem. A questão é que, como produções cinematográficas não são rodadas conforme sua cronologia e sim de acordo com o que faz mais sentido econômico, com todas as cenas em determinado local sendo filmadas de uma vez, mesmo que, no filme, elas apareçam em momentos diferentes, a lógica dita que se faça isso em um trilogia que partilhará locações, cenários, figurinos e outros elementos caros.
Assim, a visão de Peter Jackson começou a se formar quando ele determinou que queria algo que fosse uma mistura de David Lean com Ray Harryhausen ou, em outras palavras, que a trilogia tivesse o escopo e abrangência dos clássicos de Lean (pensem, aqui, em Lawrence da Arábia, Doutor Jivago e A Ponte do Rio Kwai) com os belíssimos efeitos práticos do mestre Ray Harryhausen (Fúria de Titãs, Simbad e o Olho do Tigre, Jasão e o Velo de Ouro). Claro que Jackson não se furtou em usar efeitos digitais, até porque ele sentiu que o mundo estava apto a ver Tolkien nas telonas quando assistiu Jurassic Park e ficou maravilhado com os efeitos do filme.
Para a visualização e o detalhamento do mundo tolkeniano, Alan Lee, o clássico ilustrador de tudo que é relacionado com a Terra Média foi contratado. Ele preparou não só os visuais de, por exemplo, Valfenda, o lar élfico de Elrond, como, também, os detalhes que vemos nas roupas e nos armamentos dos variados povos que habitam esse mundo fantástico.
E não só isso. Cada armadura, cada elmo e cada arma de cada povo tem sua história pregressa. Uma é diferente da outra, assim como cada orc é diferente do outro. O amor de Jackson pela obra de Tolkien pode ser vista exatamente assim, nesses detalhes que passam despercebidos mesmo para olhos treinados de especialistas. É a velha história da autenticidade a qualquer preço (desde que dentro do orçamento previsto) que faz o espectador mergulhar sem reservas em um mundo diferente.
Mas o risco maior da New Line e de Peter Jackson repousava exatamente na produção simultânea de três filmes. Afinal de contas, seriam 12 meses de trabalho de produção – normalmente, um filme não demora mais do que 1 ou 2 meses para ser filmado, o resto é montagem e pós-produção – para um resultado absolutamente incerto.
A perguntava que aterrorizava a todos era: o que aconteceria se o primeiro filme se revelasse um fracasso?
Mas não se revelou, não é mesmo? Mesmo com três horas de duração, o primeiro filme fez 871 milhões de dólares na bilheteria mundial. Era a prova da qualidade da obra de Tolkien, da visão de Jackson e da coragem da New Line. Daí em diante, o segundo e terceiro filmes foram só se superando, recebendo até mais injeção de dinheiro para algumas refilmagens e refinamentos de efeitos.
Mas a jornada ainda não havia acabado. Não, não mesmo. Jackson, apesar de ter se desviado do caminho original depois da trilogia, enveredando por produções que não deram certo, ainda teria que enfrentar problemas talvez maiores para colocar o prelúdio de O Senhor dos Anéis, o livro O Hobbit, na tela dos cinemas.
No entanto, isso fica para uma próxima história.