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Entenda Melhor | A Mulher Fatal em Perspectiva

Dos textos bíblicos aos clássicos literários, ressoantes no cinema: um breve percurso histórico da mulher fatal.

por Leonardo Campos
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Um arquétipo construído pelo olhar masculino ao longo da história da humanidade. A mulher perigosa e mortal está na mitologia, nas malhas ficcionais da Bíblia Sagrada, na literatura clássica e com ecos na escrita contemporânea, propagada na era da reprodutibilidade técnica potencializada pelo cinema, televisão, publicidade, força motriz de muitos filmes, foco da análise proposta nesta breve, mas creio que elucidativa reflexão sobre o assunto. Diferente das donzelas em perigo que precisam ser salvas pelos homens, a mulher fatal é o inverso, pois comporta-se como agente do medo, doutrinadora do horror, castradora do masculino fragilizado. Determinada, ela deseja realizar os seus desejos e consumar o que lhe traz ânsia a qualquer preço. Isso pode custar vidas, não exatamente humanas, mas de um coelho de estimação, colocado numa panela e fervido impiedosamente, para o pavor da filhinha de um homem aparentemente correto, mas que cometeu adultério com a mulher errada. Quem assistiu Atração Fatal sabe do que estou falando. Como veremos a seguir, no entanto, essa concepção do perigo feminino não é de agora.

Lá no século XII, em Tratado do Amor Chamado Cortês, obra atribuída ao Capelão André, o autor utiliza uma quantidade considerável de sua produção para traçar um panorama de características que dialogam com a sua visão do feminino. Em seus apontamentos, elas são incapazes de amar, egoístas, interesseiras, mesquinhas, ladras, infiéis, invejosas, maledicentes, soberbas, concupiscentes, desobedientes, inconsequentes, gulosas, charlatãs, insaciáveis, rebeldes, supersticiosas, dentre outras características que ainda ganham o destaque final, a cereja do bolo: toda mulher é desprovida de sabedoria. Essa é uma obra realizada dentro de um contexto específico, mas a visão que se tem nesta época, salvaguardas as devidas proporções, não é muito diferente do ódio e do medo, sentimentos em simbiose, quando observamos a construção da mulher na ficção, espelho para as ansiedades masculinas na tessitura real de nossas vidas ao longo da trajetória evolutiva da humanidade. É a reincidência constante do mito de Lilith, a antecipadora do pecado original de Eva, numa cultura que precisa da mitologia para conseguir explicar os seus processos formativos, sempre ameaçados pela presença da mulher fatal.

Cauteloso, preocupado em não deixar qualquer traço de leviandade em minha reflexão, atento também ao meu lugar de fala, dediquei-me aos densos textos das escrituras sagradas, histórias que ainda são compreendidas dentro de tabus e conforme os interesses de doutrinadores religiosos com direcionamentos muito específicos. Cada um faz a leitura que quer da Bíblia Sagrada, mas um ponto é certo: a construção da mulher como uma figura perigosa, fatal e até mesmo mortal está presente em várias passagens absurdamente violentas. É preciso um olhar diacrônico, ciente da estrutura milenar do que ali está descrito, mas são construções assim que permitiram a calcificação desta imagem que pode ser encarada como algo puramente ficcional, no entanto, interpretado ao pé da letra ainda hoje, num mundo onde os casos de violência doméstica tornam-se cotidianos, alguns alçados ao status de escândalo midiático, tal como ocorreu com as imagens que a mídia sensacionalista reiterou constantemente nos noticiários ao apresentar um certo DJ espancando a sua esposa em situações hediondas de covardia.

Logo no Gênesis, Deus castiga as mulheres com as dores do parto e a sujeição aos homens, como podemos ver descrito em GN 3:16. Antes disso, em GN 2: 20-22, o texto narra que o criador concebeu a primeira mulher porque não era possível encontrar uma adjuntora dentre os animais trazidos para o paraíso. Em Êxodos, 22:18, temos delineado que “a feiticeira não deixarás viver”, citação que ao longo da história da humanidade, serviu de guia para a matança de mulheres com base em preceitos bíblicos. Neste mesmo livro, especificamente em EX 34:16, Deus expõe que os homens buscam outros deuses graças ao comportamento culposo das mulheres, geralmente responsáveis por desvirtuar os seus filhos. Em Levíticos, 21:7, temos reforçado que a prostituta e a mulher separada não podem se casar, pois contaminariam os seus homens. Ademais, em Provérbios 7: 5-27, a mulher que seduz o homem é má, sendo a figura masculina uma vítima inocente, livro que também diz ser necessário não olhar para uma “mulher estranha”, pois assim proferirá coisas perversas (PV 23:33) ou serão levados pelas mentiras e dessas criaturas que tem como objetivo, apanhar homens inocentes (PV 23: 27-28). Temos aqui apenas um pequeno panorama. A leitura, como já dito, é complexa, requer análise com aprofundamento histórico, mas em linhas gerais, já nos oferta uma perspectiva de olhar para o tema em questão, ressonante na composição de obras literárias posteriores.

Na poesia homérica, Ulisses/Odisseu precisa lidar com deusas fatais, mulheres acossadas por seus desejos mais profundos, voltadas a manter os homens aos seus pés, tendo em vista satisfazer as suas ânsias em geral, inclusive as sexuais. Calipso e Circe são duas ilustrações interessantes, responsáveis por episódios pontuais da Odisseia, o eterno retorno do astuto personagem que saiu de Troia e após desrespeitar Poseidon, teve como castigo uma série de intempéries para conseguir chegar em Ítaca e reencontrar a sua amada Penélope, padrão de mulher que o esperava ansiosamente, a costurar cotidianamente uma colcha e desfazê-la toda noite, tendo em vista retardar o novo homem a tomar posse do trono de seu esposo. Estrutura poética de longa tradição, o material atribuído a Homero ganhou ressonâncias na Eneida, de Virgílio, épico da poesia que também possui o seu arquétipo da mulher fatal, Lavínia, uma bela dama capaz de dispersar qualquer homem, poderosa manipuladora de atributos sexuais bem definidos. Mais adiante, na literatura romântica e realista, teremos a construção de mulheres atordoantes, material que encontra ressonâncias no século XX, no período entre guerras e na produção literária posterior, campo que junto ao cinema, formata outros modelos perigosos.

A figura da mulher fatal pode ser contemplada, por exemplo, em Drácula, de Bram Stoker. As vampiras que habitam o castelo do conde, a transformação de Lucy, uma personagem que após mordida, deixa para trás as suas crenças predecessoras e ataca até mesmo crianças. São imagens que nos remetem ao processo de emancipação feminina e o medo do homem em lidar com mulheres em posições públicas de poder. Ela os faz lembrar o quão a sexualidade pode ser, ao mesmo tempo, atraente, desejável, mas assustadora. Ao assumir uma posição dominadora e monstruosa, tais personagens deixam o universo masculino reduzido, transformados em meros objetos descartáveis face ao comportamento das mulheres fatais, descritas como perigosas e responsáveis por atitudes pecaminosas que desvirtuam os homens. Incapaz de controlar a própria volúpia sexual, trazemos o arquétipo para o cinema e observamos as figuras ficcionais de Michael Douglas em Atração Fatal e Instinto Selvagem, criaturas que perdem o próprio controle e se deixam levar pelas enigmáticas e fortes mulheres interpretadas por Glenn Close e Sharon Stone. Sedutoras, elas flertam com o masculino fragilizado pela falta de autocontrole.

Com destaque especial para a personagem dirigida por Paul Verhoeven, Catherine Tramell, temos uma relação entre o feminino e as forças da natureza. Incontroláveis, elas podem ser perigosas, pois ao destruir o que está devidamente organizado em nossos códigos civilizatórios, tais personagens emulam a imagem clássica do monstro, figura que precisa ser punida para que a história encerre o seu arco de maneira a apaziguar os ânimos e devolver ao mundo a sua tranquilidade após um longo período de tormento. Interessante observar como os dois filmes do universo Instinto Selvagem negam esta padronização e colocam a mitológica personagem de Sharon Stone em posição de poder constante, uma espécie de entidade que atordoa os homens e ganha um destino diferente das mulheres interpretadas por Madonna, Erika Christensen, Amanda Seyfried, Nicole Kidman, Hilary Swank e a já mencionada Glenn Close em Corpo em Evidência, Fixação, O Preço da Traição, Malícia, Fatale e o clássico Atração Fatal, modelo para quase todos os filmes sobre adultério e mulheres obcecadas lançados posteriormente.

A mulher fatal do cinema mais recente ecoa elementos das platinadas do cinema de Alfred Hitchcock, juntamente com traços consideráveis da estrutura narrativa noir. Os perfis físicos, sociais e psicológicos destes personagens são similares. Resultado do pós-guerra, a femme fatale noir é uma imagem que representa a derrocada do masculino em um mundo com mulheres mais ativas. Feridos, amputados, ainda distantes e sem previsão de retorno, os homens envolvidos neste contexto tiveram que enfrentar essa reformulação da sociedade, situação marcada por mulheres assumindo espaços que antes não lhe eram permitidos. Inicialmente, as recrutadas eram mulheres solteiras, mas a baixa do contingente masculino foi tão grande que essa delimitação se tornou mais abrangente. Diante da situação, o medo da emancipação feminina fez surgir a representação da mulher fatal, personagens que são subversivas, gananciosas e se relacionam sexualmente sem remorso algum, interpretadas por Ava Gardner, Lana Turner, Veronica Lake, Jenny Greer, Rita Hayworth, Barbara Stanwyck, Marlene Dietrich, dentre tantas outras, atrizes integrantes de um estilo cinematográfico em constante evolução.

Rapidamente de volta ao contexto literário, o dramaturgo Nelson Rodrigues também criou um painel curioso de mulheres que dialogam com elementos da mulher fatal, criaturas que tem na sexualidade o caminho para solapar homens incautos. A Dama do Lotação, Diabólica e Gêmeas são alguns dos contos que ilustram bem esse arquétipo, todos levados ao cinema e também traduzidos para o suporte semiótico televisivo. E o que dizer da mulher de olhar oblíquo, Capitu, tipo complexo construído em Dom Casmurro, obra-prima de Machado de Assis? Amplo, esse é um tema que requer análise mais longa. Por questões editoriais e de recorte, deixo essa provocação para o leitor, com algumas produções literárias e cinematográficas mapeadas para que vocês tirem as suas próprias conclusões. Uma reflexão pormenorizada dos filmes sobre o tema será realizada no livro A Mulher Fatal no Cinema, parte integrante do projeto A Persistência da Memória, série de publicações ainda inéditas que pretende radiografar alguns subgêneros do cinema e compreender por quais motivos eles rendem tanto ainda hoje, sempre em reinvenção, como é o caso das narrativas sobre exorcismo, psicopatas mascarados (slasher), tubarões, dentre outros. São temas que se desenvolvem em seus respectivos contextos culturais e partem de um molde, como é o caso de Instinto Selvagem e Atração Fatal, focados em recontar essas histórias sob novos prismas, alguns interessantes, outros superficiais e esquecíveis.

Ao leitor, uma pergunta: em sua opinião, qual a mulher mais fatal da história do cinema?

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