Traje utilizado por um personagem dentro de uma produção artística, o figurino é essencial para compreensão dos elementos que compõem uma narrativa. O responsável por criar e idealizar a criação de tal traje é o figurinista. Numa produção audiovisual, o departamento de arte é o setor responsável por tornar visual (real) a ideia proposta pelo roteiro: cenógrafos e figurinistas estão dentro deste espaço, como profissionais incumbidos em dar corpo ao filme, juntamente com o diretor, os produtores, o diretor de fotografia, bem como os atores, pois é com eles que os figurinistas farão os seus testes e devidas estudos, tendo em mira inseri-los na dimensão do personagem a ser interpretado.
Uma das obrigações mais básicas dos figurinistas é a pesquisa. A compreensão do setor também. Ao adentrar numa produção, deve ser considerada a época da trama, o local da filmagem, o perfil psicológico e físico dos personagens, bem como as orientações oriundas de outros profissionais, tais como a direção de fotografia, a direção de arte e a cenografia.
Quantos figurinos estão marcados em sua memória? Esta é uma pergunta realizada pela diretora de arte Vera Hamburger em seu livro Arte em Cena – A Direção de Arte no Cinema Brasileiro. A profissional que é referência na indústria cinematográfica brasileira aponta alguns personagens e vestuários icônicos, tais como as sensuais roupas noturnas de Rita Hayworth em Gilda; o esvoaçante vestido de Marilyn Monroe em O Pecado Mora do Lado; os trajes macabros de José Mojica Marins para o eternizado Zé do Caixão; e Antônio das Mortes, de O Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro, um dos últimos filmes do engajado Glauber Rocha. Depois deste pequeno panorama, traça um painel com algumas questões basilares para compreensão da presença do figurinista no âmbito de uma produção cinematográfica.
Conforme aponta Hamburger, o figurino é “o ponto ativo do quadro, a caracterização de um personagem”. Como sabemos, o personagem é o centro nervoso de um roteiro, desta forma, o figurino surge como a sua representação plástica. Marcel Martin, um dos mais respeitados teóricos dos estudos da linguagem cinematográfica, juntamente com Gerard Berton, adotou uma classificação para os figurinos que os dividem em três categorias: os realistas, isto é, aqueles que retratam o vestuário da época retratada no filme com detalhes bastante específicos no que tange aos elementos históricos; os para-realistas (ou ultrarrealistas), denominados como aqueles em que o figurinista se inspira na moda da época para a realização do trabalho, mas no decorrer da sua produção, a estilização dos trajes prevalece sobre a exatidão histórica; e os simbólicos, figurinos que deixam de lado a exatidão histórica para exercer outra função, isto é, compor uma tradução simbólica para criar aproximação com os estados dramáticos e psicológicos dos personagens.
Em seu artigo O figurino como elemento essencial da narrativa, publicado em 2002, o especialista Francisco Araújo afirmou que “surgem dificuldades quando se engessa, pois tais categorias de Martin e Berton não precisam ser lidas à risca, mas como complementares”. Como toda regra oriunda de manuais, devemos pegar o que pode nos ser útil na contemporaneidade, mas não seguir as dicas à risca, pois na atualidade, os conceitos são terrenos tão pantanosos que definir as coisas de forma tão fixa assim torna o trabalho e o pensamento na área dos figurinos uma camisa de força. Quer seguir as regras? Ótimo, mas não precisa se martirizar caso o seu roteiro peça a junção destes tópicos teóricos que também não são descartáveis, mas apenas um dentre tantos pontos de vista sobre a rica e densa linguagem audiovisual.
Neste processo, outra coisa importante não pode ser esquecida: nada, mas nada mesmo em uma produção cinematográfica é sem propósito, pois as coisas são estudadas. E não precisa ser filme do Hitchcock, Almodóvar ou Scorsese, pois há uma tendência em listar sempre estes filmes do mainstream e deixar de observar fenômenos mais simples, no entanto, tão eficientes como estes ícones das bilheterias e da crítica.
Os figurinos e a narrativa estão interligados no que diz respeito ao estilo adotado (realista, ultrarrealista ou simbólico, propostos pelos teóricos Martin e Berton); as cores, pois tais elementos expressam sensações e possibilitam a definição do estado psicológico do personagem, além de dar pistas do gênero do filme; ao volume, responsável por observar aspectos do corpo do ator e adequá-lo às necessidades dramatúrgicas; a textura, elemento que permite o relacionamento do personagem com seu grupo, condição social, etc.; o contexto e o ambiente, questões de fundamental importância por conta da possibilidade de descaracterização, e por sua vez, perda da verossimilhança do filme; a silhueta, que também não poderia ficar de fora, afinal, “cada período, inclusive o nosso, tem um contorno e uma silhueta bem definidos”, o que permite a inserção temporal do personagem no tecido narrativo.
Mas, afinal, é preciso tudo isso mesmo?
Em uma de suas tantas reflexões, Umberto Eco afirmou que “o vestuário é comunicação, além de cobrir o corpo da nudez”. Antes de ir adiante, peço ao leitor que imagine uma cena épica, estilo Grécia Antiga ou Idade Média. Imaginou? Eis que de repente, durante uma escavação para encontrar um documento político importante, o personagem recebe ajuda de um desconhecido utilizando calça jeans e camiseta Calvin Klein. Concorda que há algo estranho? Caso a trama seja mais uma das tantas viagens ao tempo no melhor estilo De Volta para o Futuro, tudo bem. Está explicado. No entanto, se não for, surge como inverossímil e boa parte do público contemporâneo, ativo e atento, perceberá as falhas. Foi assim com a personagem de Jordana Brewster em O Massacre da Serra Elétrica: O Início. As suas sandálias havaianas não condiziam com o tempo histórico. Os mais atentos perceberam e não deixaram de comentar.
Sempre atento às necessidades do roteiro, bem como do orçamento de um filme, o figurinista é o responsável por cuidar das roupas e acessórios dos personagens. Para isso, a leitura do roteiro e a intensa pesquisa são elementos basilares para a realização da função. Se você assistiu ao musical Nine, de Rob Marshall, adaptação da peça homônima da Broadway, deve se lembrar da cena que a figurinista interpretada por Judi Dench tenta desenhar o figurino de Claudia (Nicole Kidman), a musa da nova produção de Guido Contini (Daniel Day-Lewis), mas como o conflito do filme nos mostra um cineasta autoral com crise criativa e incapaz de escrever sua nova história, os demais personagens não conseguem realizar as suas funções. Claudia chega a criticar o diretor, reclamando sobre como vai fazer testes de fotografia se não sabe sequer as falas de seu personagem. Parte integrante do departamento de arte, os responsáveis pelo figurino precisam estar alinhados com a cenografia do filme, atentos sempre ao que compõe a narrativa, pois o foco é evitar discrepâncias visuais.
Então, respondendo ao que foi questionando no tópico, sim, é preciso isso tudo e muito mais. Toda peça presente em um filme busca dialogar, mesmo que inconscientemente, com os códigos sociais vigentes. Os figurinos são parte, inclusive, do avanço cronológico de um filme, sendo também responsável por informar a localização geográfica e a época em que a história é contada.
Trazendo de volta as colocações bastante elucidativas de Vera Hamburger, “o figurino colabora, de maneira essencial, para a atmosfera geral do filme”. E mais, a especialista afirma que “do desenho inicial à roupa, um longo processo se desenrolar”. O figurinista, através da prática da experimentação, testa a roupa nos atores, busca tecidos que tenham as cores, texturas e caimentos que dialoguem com a sua produção, além de tingir, bordar, criar botões, golas, rendas e demais acessórios.
Há “orçamentos” e “orçamentos”, mas independente do valor de crédito, os profissionais, brasileiros, estadunidenses, alemães ou de qualquer localidade, podem encontrar as roupas em brechós, bazares, lojas ou realiza-las especialmente para a produção. Tudo depende do orçamento. Como dito, vai depender do orçamento, e, para funcionar, da criatividade dos envolvidos.
Durante um evento de Moda e Design, Sarina Sena, jornalista e assistente de figurino contou que os figurinistas vasculham todas as informações possíveis sobre o personagem no processo de pré-produção. Com os elementos selecionados numa pasta (dossiê), é feita a reunião com os demais profissionais do setor de arte, bem como o diretor e os atores. Caso o sinal verde seja fornecido, a produção segue adiante. No caso de ressalvas, os responsáveis pelo figurino vão buscar a adequação solicitada. Sendo assim, aos figurinistas de plantão, é preciso compreender que é para exercer bem a função, você precisará ver muitas fotos, filmes, séries, livros, acessar a internet, procurar em revistas, etc.
Em Moulin Rouge – Amor em Vermelho, de Baz Lurhmann, Satine (Nicole Kidman), principal cortesã da casa noturna parisiense teve os seus figurinos desenhados cuidadosamente por Angus Strathie e Catherine Martin, pois era preciso transmitir a miscelânea metalinguística através da imagem do personagem, uma espécie de “Marlene Dietrich, Marilyn Monroe e Madonna”. Em Halloween H20 – Vintes Anos Depois, de Steve Miner, a personagem de Jamie Lee Curtis muda de nome e cidade para fugir dos traumas do passado, marcado pela morte de toda a sua família pelo psicopata Michael Myers. Durante todo o filme, o seu figurino está conectado com a discrição, sempre com a união do branco mesclado com marrom ou cinza, sem excessos, pois qualquer elemento mal conectado não dialogaria com o perfil depressivo da personagem.
O mesmo ocorre com Nicole Kidman, Meryl Streep e Julianne Moore em As Horas. Além das cores discretas dos personagens, os colares e pulseiras utilizados por Meryl Streep numa cena de discussão atendem bem a sua tarefa: passar para o espectador o seu nervosismo diante das pressões de um jantar com presenças simbólicas na vida de todos os envolvidos em seu ciclo. Sacolejados através de gestos expressivos, o som dos adereços são bastante expressivos para a compreensão do trecho.
Em Disque M Para Matar, de Alfred Hitchcock, a protagonista interpretada por Grace Kelly adentra na narrativa com vestidos de cores vivas, mas ao passo que o filme avança, as cores mudam, assim como o perfil psicológico da personagem, ciente que o seu marido, ao descobrir que estava sendo traído, encomendou assassinato da esposa. A lista, caro leitor, é extensa. São muitos filmes memoráveis e a vontade é de trazer numerosos casos de sucesso.
Moda e imagem em cena: outros casos interessantes no cinema e na televisão
Os figurinos de Eiko Ishioka em Drácula, de Bram Stoker. Adaptação estadunidense do famoso romance de Bram Stoker. Lançada em 1992, esta versão foi dirigida por Francis Ford Copolla, com participação de Gary Oldman, Winona Ryder, Anthony Hopkins e Keanu Reeves no elenco. A figurinista contou que durante a pré-produção, o cineasta ligou e disse que “o figurino vai ser o set. E o set vai ser iluminação”. Com estas palavras, Copolla deu os indícios do que seria o visual do filme, produção dedicada a aproveitar bastante dos espaços e das sombras, para que sobrasse verba para o desenvolvimento dos figurinos, em suas palavras, “a joia do set”. Eiko Ishioka contou que em sua concepção, o personagem precisava sair do clichê, pois a longa tradição na história do cinema o tinha transformado num estereótipo. Com uso de cores bizantinas e inspiração em pintores simbolistas, em especial, a obra The Kiss, de Klint, sugerida por Copolla durante uma reunião, a figurinista sentiu a presença do híbrido cultural oriente-ocidente, aproveitando-o para a composição dos trajes presentes nesta adaptação. Com figurinos femininos que versam entre o virginal e o erótico, há um vestido de casamento inspirando em um lagarto e uma armadura de Drácula baseada em um tatu. Experiente em artes visuais, a profissional encantou Copolla com o pôster japonês para Apocalypse Now, um dos motivos que o levou a convidá-la para assumir o design de produção do filme.
Os figurinos de Jill Ohanneson em Revenge. Criada por Mike Kelley, a série durou quatro temporadas. Inspirada em O Conde de Monte Cristo, romance de Alexandre Dumas, os folhetinescos episódios trouxeram figurinos bem delineados, principalmente no que tange o duelo entre as arqui-inimigas Victoria Grayson (Madeleine Stowe) e Emily Thorne/Amanda Clarke (Emily VanCamp). Ao iniciar o seu trabalho na série, a figurinista Jill Ohanneson conversou com as atrizes para entender os seus sentimentos em relação aos personagens. Para Emily, os figurinos foram compostos com base no charme clássico de Audrey Hepburn, Grace Kelley e Katherine Hepburn. Bege, branco, cáqui e jeans foram alguns elementos direcionados para o visual da personagem, diferente de Victoria, usuária de roupas sensuais e mais agressivas, mas não menos elegantes e com um estilo “perigoso”. Segundo a figurinista, os acessórios e alguns vestidos plissados “demonstram simbolicamente que a personagem esconde muitos segredos”. Em seus momentos de “serviço sujo”, Emily é vestida com roupas escuras, para que o seu disfarce colabore com o projeto de vingança contra os envolvidos na traição que levou o seu pai injustamente para a prisão. O visual descolado, com uso de bustiê, jaquetas de couro, jeans e botas modernas dão o tom contemporâneo e informal para tais momentos da personagem.
Adaptações históricas: das pinturas para as telas: Mary Stuart, Rainha da Escócia (1936). Ligações Perigosas (1988). Sissi (1955).
Os figurinos de Ellen Hirojnick em Atração Fatal. Um dos clássicos modernos responsáveis por cristalizar a imagem das mulheres possessivas no cinema, o filme dirigido por Adrian Lynne oferta ao espectador um espetáculo de suspense claustrofóbico sobre um homem (Michael Douglas) sendo perseguido por sua “aventura de um final de semana” (Glenn Close), o que o coloca em perigo, juntamente com a sua família. A figurinista Ellen Hirojnick dá uma aula de cinema ao afirmar que todos (diretor de arte, cenógrafo, maquiagem e figurino) fazem parte do quebra-cabeça para chegar ao diretor do filme. Ao seguir as orientações de produção, ela vestiu Michael Douglas com roupas simples, típicas de um homem comum, dando o destaque para a personagem de Glenn Close, atriz que até então tinha sido vista de maneira pudica no cinema.
Os figurinos de Colleen Atwood em Memórias de Uma Gueixa. Ganhador do Oscar de Melhor Figurino, o filme dirigido por Rob Marshall é uma adaptação do romance homônimo de Arthur Golden. A trama nos conta a dramática história de uma menina que é vendida para uma casa de gueixas por seus pais. Segundo os envolvidos na produção, as gueixas eram influenciadoras da moda feminina no Japão. Durante a produção, Colleen Atwood tomou algumas liberdades, tendo em vista dar um caráter diferenciado para a obra, sem a precisão histórica tão cirúrgica. Dois elementos se destacam: o corte para demonstração de um trecho do pescoço na parte de trás da cabeça, tendo em mira exalar mistério na narrativa, bem como as cinturas mais apertadas, menos quadradas, oriundas de alguns figurinos que tinha até doze peças por debaixo da roupa principal.
Os figurinos de Sharen Davis em Django Livre. Banquete visual sob a direção do sempre competente Quentin Tarantino, o filme nos mostra a trajetória de um escravo liberto (Jamie Foxx) a caminhar com um caçador de recompensas (Christoph Waltz) numa missão encarregada de salvar a sua esposa (Kerry Washington) de um fazendeiro maléfico (Leonardo DiCaprio). Cineasta que se aproxima do que os teóricos da linguagem do cinema chamam de “autor”, Tarantino “mete as mãos em todos os setores”, revela a figurista que desenhou todos os visuais dos protagonistas. Para Django, há um figurino inspirado na pintura O Garoto Azul, de Thomas Gainsborough, de 1770. Não interessada em caricaturas, há no personagem muitas referências ao western spaghetti e elementos da série de TV Bonanza. Para o personagem de Christoph Waltz, temos o uso constante de cinza, cor considerada extensa e que tem muitas variações. O cruel Monsieur Calvin Candie, interpretado brilhantemente por Leonardo DiCaprio flerta com o visual europeu aristocrata, com roupas lindas, tal como nas palavras da figurinista, “mas deselegantes e audaciosas”.
Os figurinos de Jacqueline Durran em Anna Karenina. Adaptação cheia de classe do cineasta Joe Wright para o romance homônimo de Tolstoi, publicado em 1877. Ganhou o Oscar de Melhor Figurino ao mergulhar com estilo no século XIX e nos contar a história de Anna Karenina (Keira Knightley), uma mulher casada com Alexei Kareni (Jude Law), um rico funcionário do governo. Numa viagem para consolar a irmã por conta de um problema no casamento, ela conhece o Conde Vronsky (Aaron Johnson), ao passo que a narrativa avança e ele a corteja frequentemente, apaixonam-se e um destino trágico começa a ser delineado. Segundo a figurinista Jacqueline Durran, quando o cineasta a procurou, o interesse era num “figurino libertador que não se prendesse apenas a uma época”, tendo em vista mesclar a moda dos anos 1950 com a silhueta dos anos 1870. Semelhante ao que Sharen Davis alegou sobre Tarantino em Django Livre, o diretor Joe Wright entende de moda, estilo e época, o que tornou a concepção dos personagens mais completa. Entre os destaques temos os uniformes masculinos, inspirados nos trajes de militares russos; o contraste entre Anna e o Conde numa cena de dança, com uso de preto (ela) e branco (ele) que nos remete ao Yin Yang, num filme de época que a figurinista chamou de banquete visual não convencional, tampouco naturalista.
Curiosidade: a premiação anual do Oscar incluiu esta categoria em 1948. Inicialmente eram duas subcategorias: Melhor Figurino em Preto e Branco e Melhor Figurino Colorido, mas em 1957, a divisão foi abandonada e continua até hoje como Melhor Figurino, independente da fotografia do filme.
Leituras indicadas:
História do Vestuário no Ocidente, de François Boucher | 480 páginas
A História Mundial da Roupa, de Patrícia Rieff Anawalt | 608 páginas
Tudo Sobre Moda, de Marnie Fogg | 576 páginas