Home Colunas Entenda Melhor | A 1ª Era Davis em Doctor Who: Figuras Históricas, Política e Sociedade

Entenda Melhor | A 1ª Era Davis em Doctor Who: Figuras Históricas, Política e Sociedade

A fama e o poder.

por Rafael Lima
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Uma característica bastante específica da Era Davies foi a forma como ele escolheu lidar com as figuras históricas que foram retratadas no programa. Nos primórdios da Série Clássica, durante a era do 1º Doutor (William Hartnell), Doctor Who valeu-se de figuras históricas como Marco Polo ou o Imperador Nero, mas o programa estava mais interessado na mítica em torno dessas figuras e em como elas ajudavam a compor o cenário histórico, do que no valor que possuíam como personagens. Após o fim da Era Hartnell, as figuras históricas praticamente desapareceram da Série Clássica, salvo uma ou outra exceção.

Quando trouxe o programa de volta, Russell T. Davies resolveu que a série devia voltar a trabalhar celebridades históricas, gerando um tipo de narrativa que se tornou um dos gêneros internos do show, os episódios de celebridades históricas. A abordagem aplicada por Davies, entretanto, se diferenciaria do que foi feito antes por buscar uma humanização de tais figuras, buscando mostrar um pouco das pessoas por trás dos mitos. Ao trazer personagens como Charles Dickens; a Rainha Vitória; William Shakespeare e Agatha Christie, o Showrunner traz junto dramas humanos que tornam tais figuras relacionáveis. 

Charles Dickens (Simon Callaw) e Agatha Christie (Fenella Woolgar). Explorando as inseguranças humanas atras da genialidade.

Não que essas histórias não reconheçam os feitos desses homens e mulheres célebres, afinal The Unicorn and The Wasp é um grande pastiche da obra de Christie, enquanto The Shakespeare Code se valeria de signos clássicos da obra do dramaturgo para construir a sua trama. Mas esses episódios também estavam interessados em questões íntimas, como a insegurança de Dickens com o próprio trabalho; o luto de Vitória pelo marido; ou as dificuldades emocionais enfrentadas por Christie após o seu divórcio. Excetuando talvez a participação de Madame De Ponpadour em The Girl In The Fireplace (escrito por Moffat), a 1ª Era Davies parece se esforçar para ver as figuras históricas não tanto quanto os arquétipos que representam, mas como pessoas com virtudes e defeitos sob os quais são construídos os seus feitos e criações.

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Política, Sociedade e Autoridade na 1ª Era Davies

Davies é um Showrunner que não tem vergonha de explorar as suas tendências políticas e sociais. Quando falamos sobre alguns dos vilões criados por Davies, observamos como muitos deles surgem como sátiras políticas, como os Slitheen e os Judoon. Tal abordagem seria levada ainda mais longe em The Sound Of Drums, onde Davies não só faz o Mestre ser eleito primeiro-ministro britânico, como ainda traz a figura do presidente dos Estados Unidos como um homem ainda mais descontrolado que o vilão, em uma sátira ao então presidente norte americano George W. Bush.

Essas sátiras não seriam feitas só ao governo, pois o setor privado causou muitos problemas ao Doutor. Os Cybermen são criados por um magnata da Internet e os Oods lutam pela sua liberdade contra uma empresa maligna. O Doctor Who de Davies é um show desconfiado de autoridades, o que pra ser justo, a série sempre foi em menor ou maior grau, mas a Era Davies sente-se especialmente desconfortável com as instituições. School Reunion e Human Nature/The Family Of The Blood olha com desdém para a escola tradicional; New Earth critica os desmandos do sistema de saúde, enquanto The Long Game alerta para o mau uso do poder do jornalismo. Mesmo autoridades que não eram postas de forma vilanesca, como a Primeira-Ministra Harriet Jones e a Rainha Vitória teriam uma relação tensa com o Doutor. A última inclusive seria responsável pela fundação de Torchwood, organização que na 2ª Temporada, foi usada como crítica para a mentalidade imperialista indissociável da história britânica.

A Primeira-Ministra Harriet Jones (Penelope Wilton) e o 9º Doutor. Diferentes faces da autoridade.

Portanto, não é de se admirar que Russell T. Davies hesitou tanto em reintroduzir a UNIT. A organização militar é o mais próximo que o Doutor já esteve de integrar uma força de autoridade constituída. Então, quando a UNIT finalmente é reintroduzida no arco The Sontaran Stratagem/The Poison Sky, (após uma série de pontas), ela surge como uma espécie de fã-clube militar do Doutor, pondo a sua autoridade abaixo da do Doutor. Mas um dos pontos mais interessantes dessa era, é que a repreensão de Davies sobre autoridades reflete-se no próprio Doutor. Davies não foi o primeiro e nem o último a apontar as falhas do Time Lord, mas ninguém o fez com tanta rigidez, e a fonte de muitas das falhas apontadas vem da autoridade do viajante do tempo.

Vejam bem, o Doutor é um personagem rebelde por natureza, tendo em vista que fugiu de seu povo em uma TARDIS roubada, e tem como passatempo a derrubada de governos tirânicos pelo tempo e espaço. Na Era Davies, o Doutor atrai pessoas da mesma natureza, tendo em vista que Rose e Jack, os primeiros companions desse período, eram uma garota que no passado fugiu de casa e deixou a escola; e um agente do tempo renegado. Da mesma forma, o Time Lord não gosta quando seus parceiros se afiliam a organizações de  autoridades, com o 10º Doutor reprovando as escolhas de Jack e Martha de se juntaram a organizações institucionais como Torchwood e a UNIT. Davies, entretanto, está consciente da hipocrisia do protagonista, já que ele inspirou os seus amigos a seguirem esses caminhos.

Mas por mais libertário que seja, o Doutor atua como uma autoridade. O Papel Psíquico, embora criado como um dispositivo de enredo para acelerar  a narrativa, é um exemplo de como a autoridade se torna uma ferramenta para o protagonista se impor em certas situações. O status como o Último dos Time Lords também foi mais de uma vez usado pelo 10º Doutor como argumento de autoridade e ferramenta de intimidação. O show atribui as faltas mais graves do Doutor aos momentos em que ele deixa que a autoridade lhe suba a cabeça. Em sua primeira aventura, o 10º Doutor decide sozinho derrubar a primeira-ministra pelas suas ações na invasão Sycorax; ele também põe uma aldeia inteira em risco em Human Nature/The Family Of The Blood para tentar ser piedoso, e depois adota uma abordagem extrema quando as coisas saem de controle. Waters Of Mars traria o ápice do desconforto da série com a autoridade requerida pelo Doutor, quando por um momento, ele acredita ter o direito de escolher quem vale a pena salvar ou não, até ser lembrado de que não tem esse direito.

Não que o Doctor Who de Davies seja completamente anti-autoridade. Se por um lado, a série foi caustica com alguns governos e administrações, ela daria acenos muito simpáticos ao reinado da Rainha Elizabeth II, e até para a administração do então presidente norte-americano Barack Obama. De fato, a série revisaria decisões que tomou em relação ao seu próprio universo no que diz respeito a autoridades, ao trazer Harriet Jones de volta em The Stolen Earth, como forma de fazer justiça para a personagem. Além disso, o arco The End Of Time, ao trazer os Time Lords como ameaça final da Era Davies; se não endossa, ao menos explica a ação extrema e a decisão individual do Doutor de pôr um fim à Time War extinguindo o próprio povo, ao descrever a Guerra do Tempo como um pesadelo lovecraftiano. Tais perspectivas são com certeza contraditórias da parte de Davies, mas para mim só tornam tais subtextos mais ricos.

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