Home Colunas Entenda Melhor | A 1ª Era Davies em Doctor Who: Signos Religiosos e Spin-Offs

Entenda Melhor | A 1ª Era Davies em Doctor Who: Signos Religiosos e Spin-Offs

Outras camadas para Doctor Who.

por Rafael Lima
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A questão da fé, religião e divindade foram tratadas algumas vezes ao longo dos anos em Doctor Who, mas na Era Davies elas surgem de maneira proeminente, devido ao já citado aspecto semidivino que a série passa a direcionar ao protagonista. Ainda que seja declaradamente ateu, Davies reconhece a força da simbologia bíblica, frequentemente usando-a na era do 10º Doutor para ilustrar o caráter mítico do personagem. Basta lembrar do Doutor sendo erguido por anjos em Voyage of The Damned ou do Time Lord emoldurado pela luz branca da TARDIS esticando a mão em salvação em The Fires Of Pompeii para perceber o interesse desse período do programa em alusões visuais bíblicas, tendo em vista os paralelos já discutidos que a série faz entre o Doutor e figuras mitológicas.

Claro, esse gosto pela estética judaico-cristã é apenas visual, bastando olhar para os especiais de Natal da série (tornados tradição por esse período do programa) para perceber que Davies não acredita e nem tem grande interesse nos aspectos emocionais e simbólicos do Natal, vendo-o mais como um bonito evento mercadológico com ícones legais para serem transformados em armas alienígenas letais. Tanto isso é verdade, que se você pegar especiais de Natal como The Christmas Invasion e The Runaway Bride, e transformá-los em um especial de ano novo ou de Halloween, as diferenças seriam mais estéticas do que narrativas

Narrativamente, no que diz respeito a visão do divino, Davies se inclina mais para a visão greco-romana. O protagonista muitas vezes parece fascinado pela condição humana em pequena escala, mesmo que não a compreenda muito bem, como podemos notar no interesse que o 9º Doutor demonstra pela história de como um casal se apaixonou em Father’s Day. Essa incompreensão faz com que muitas vezes o viajante do tempo não dê a devida atenção as consequências que deixa por onde passa com a TARDIS, mesmo quando as intenções são nobres, como no supracitado The Family Of The Blood. O Mestre usando a humanidade como um joguete para provocar o 10º Doutor também se comunica com a visão mitológica que Davies direciona para a série, com ambos os personagens usando as falhas e virtudes da humanidade em sua disputa como um jogo.

Acendendo com anjos, e trazendo a salvação vinda da luz. As imagens religiosas de Doctor Who.

A série levantou pontos interessantes sobre crença e religião nos anos em que Russell T. Davies esteve no comando. The Parting Of The Ways metaforiza os traumas pós 11/9 ao trazer os Daleks como religiosos fundamentalistas, com o 9º Doutor apontando que a religião torvava criaturas como os Daleks ainda mais perigosas. Davies aponta que a fé posta no lugar errado, pode ser danosa, embora também reconheça a força positiva que ela possa ter, bastando lembrar que o corpo do 10º Doutor é restaurado em The Last Of The Time Lords pela crença e fé que Martha Jones inspirou na humanidade. Mas nenhum episódio da 1ª era Davies aborda o assunto de forma tão direta quanto The Satan Pit. Em um arco em que o grande vilão é possivelmente o próprio diabo, o 10º Doutor se declara não acreditar em um ser superior, ainda que considere a hipótese de que possa estar errado sobre a existência de uma força superior não explicada pela ciência; o que se revela uma forma respeitosa e coerente de Davies falar sobre o próprio ateísmo.

É curioso, portanto, que o tempo dentro da Era Davies seja uma força quase onipresente. Father’s Day vê anticorpos do tempo surgirem dos céus depois que Rose salva o pai, destinado a morrer em um atropelamento, e causarem estragos até o tempo voltar ao seu curso natural. The Waters of Mars tem como grande reviravolta dramática o 10º Doutor desafiando o próprio tempo em um surto de soberba após salvar a vida da astronauta cuja morte inspira a expansão espacial da raça humana, apenas para ser posto em seu lugar quando o tempo se corrige com o suicídio da mulher. O tempo para Davies é uma força inegociável, que não pode ser driblada, nem por um viajante do tempo, do contrário, as consequências seriam catastróficas. De fato, as tramas desse período muitas vezes colocam o Doutor na posição de ser um defensor do tempo; seja impedindo que zumbis e bruxas dominem o passado; ou provocando a destruição de Pompeia para salvar o resto do mundo.

É curioso que um ateu como Davies encare o tempo e o destino como  forças superiores tão invioláveis em uma série de ficção científica sobre um alienígena viajante do tempo. Por outro lado, essa abordagem parece indicar uma resistência do Showrunner a saídas milagrosas para tragédias e situações que acontecem, e que nem mesmo um ser fantástico como o Doutor pode evitar. Ainda que eventualmente se entregasse a um ou outro Deus Ex Machina, o tempo e o destino permanecem basicamente intocados na Era Davies, em um interessante contraste com o seu sucessor.

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Um Universo Além da TARDIS

No começo do texto, citei como o universo expandido influenciou a criação da Nova Série. Essas histórias não se limitavam as aventuras do Doutor; contando também com romances com aventuras-solo de Companions do Doutor, ou dramas de áudio sobre as conspirações políticas de Gallifrey. Durante a Série Clássica, houve tentativas de se criar Spin-Offs do programa estrelados pelos Daleks e por Sarah Jane, mas o primeiro sequer entrou em produção, e o segundo não passou do piloto. Mas após as duas primeiras temporadas da Nova Série terem sido bem recebidas por público e crítica, Davies lançou duas ideias para Spin-Offs. O primeiro foi Torchwood, um show sobre a organização introduzida na 2ª temporada da série mãe, que agora é assumida pelo ex-Companion Jack Harkness. Já a segunda atração seria The Sarah Jane Adventures, estrelada pela Ex- Companion Sarah Jane Smith, ao lado de um elenco principal adolescente.

Torchwood e The Sarah Jane Adventures. A expansão do universo de Doctor Who na TV.

Com essas três séries, Russel T. Davies criou um mundo televisivo que falava com várias audiências. Doctor Who é um programa com um público mais amplo, apelando tanto para o espectador mais jovem quanto para o mais maduro. Torchwood era um show direcionado ao público mais adulto, que não só permitia uma maior violência gráfica, mas proporcionava a abordagem de questões políticas; de sexo; entre outros temas, de forma mais direta do que em Doctor Who. The Sarah Jane Adventures voltou-se ao público infanto-juvenil, adotando uma linguagem estética e narrativa mais lúdica do que a da série mãe, e tratando de temas mais próximos do universo infantil e adolescente, em aventuras de escala mais íntima do que as de Doctor Who e Torchwood. Ainda assim, há coesão entre os shows, sentindo-se que eles pertencem ao mesmo universo, sinergia comprovada no crossover entre os três programas ocorrido na Finale da 4ª temporada de Doctor Who.

Torchwood duraria quatro temporadas antes de ser cancelada, enquanto The Sarah Jane Adventures ficaria por cinco temporadas no ar, só não tendo ganho um sexto ano devido a morte de sua estrela. Esse período provou que o universo de Doctor Who era rico o suficiente para gerar diferentes tipos de história, que poderiam existir além da TARDIS e do Doutor. Um terceiro Spin-Off oficial, Class, foi produzido em 2016, durando só uma temporada,  mas não causando o mesmo impacto das duas produções anteriores. Assim, a existência de um universo expandido televisivo de Doctor Who tornou-se uma exclusividade da Era Davies, com o próprio produtor citando em uma entrevista recente que esse deveria ser um aspecto da marca em que a BBC deveria investir mais. Essa é uma visão curiosa para o futuro de Doctor Who, e é esse futuro que nos interessa no trecho final deste texto.

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