Home TVEpisódio Crítica | Decálogo 4 – Honrarás Pai e Mãe

Crítica | Decálogo 4 – Honrarás Pai e Mãe

por Luiz Santiago
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Baseado no quinto mandamento, “Honra teu pai e tua mãe, para que teus dias se prolonguem sobre a terra.”, o Decálogo 4 é um episódio atípico em relação aos anteriores. Primeiro porque a punição divina à desobediência não se dá no tempo fílmico; segundo, porque o ato rebelde é quase ínfimo se comparado ao dos decálogos Um, Dois e Três [muito embora esta seja uma observação jurídica secular, já que para Deus não existe “pecadinho” ou “pecadão”: pecado é pecado e são punidos com o mesmo resultado final, caso não haja arrependimento por parte do pecador].

A ação que descumpre o mandamento no Decálogo 4 acontece de dois modos. O primeiro deles é o desprezo da filha para com um pedido póstumo da mãe. O segundo, é a manutenção do desejo incestuoso da filha pelo pai. Como ambos duvidam da paternidade, o desejo contido não parece tão grave mediante a situação, mas a descoberta de uma carta deixada pela falecida mãe pode fazer ruir esta mentira inventada, de modo que ambos preferem queimar o envelope a descobrir a verdade. A opção pela ignorância, aparentemente, libertaria Anna e Michael de seus desejos incestuosos, mas longe disso (e essa é a punição): nasce uma espécie de maldição moral que irá persegui-los ad eternum.

O filme começa na manhã de uma segunda-feira de Páscoa. Num primeiro momento, a relação entre Anna e Michael dá a entender que eles são marido e mulher, tal a força dos olhares e atitudes de um para com o outro. A água, elemento purificador, símbolo da vida (reafirmado pela Páscoa, a ressurreição de Cristo), é derramada como uma espécie de unção sobre a cabeça de Michael, que ainda dorme. Essa atitude guarda um quê de profanação e podemos aplicar a desonra não só ao pai e a mãe terrenos, mas a Deus, o pai celestial, representado na figura de Cristo, em seu dia de ressurreição. A revelação do Complexo de Édipo vem colorir a manhã dos protagonistas com uma espécie de ritual há muito praticado.
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 A mulher e o pecado: visão retrógrada
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Kieslowski apresenta Anna sempre em figurinos claros ou de cor azul, embora a personagem nunca esteja perfeitamente vestida, maquilada e sob uma luz favorável. É notória a ausência de beleza ou vaidade nas mulheres do Decálogo. É como se essa série representasse também a postura de uma sociedade arcaica –- exatamente como no Velho Testamento -–, onde as mulheres, sempre desajeitadas e causadoras de problemas, estavam aquém dos homens. Na Trilogia das Cores (1993 – 1994), o diretor adotaria uma outra postura. A tríade feminina que protagoniza os filmes é tratada com o máximo de cuidado –- estético e personalístico -– e são catalizadoras de suas ações, independentes da força e presença masculina.

Nesse episódio, assim como no Decálogo 3, a mentira faz parte do cotidiano das personagens. A representação de uma postura social e familiar – hipócrita – é comum nos dois protagonistas e isso percebemos com o passar do tempo: pai e filha sabiam da existência da carta e do seu conteúdo, apenas não tinham certeza absoluta porque não haviam-na lido; mas representam o tempo inteiro como se não soubessem de nada. Anna, como estudante de Artes Cênicas, é a verdadeira farsa da situação, assumindo o papel de mulher proibida, moralmente rejeitada pelo pai.

Alguns objetos, aparições e acontecimentos interessantes formam a identidade desse decálogo e depreendem pouco esforço para serem contextualizados: Anna vai ao oftalmologista (primeiro fato curioso, porque o momento em que ela “descobre” a deficiência na visão é quando o avião do pai decola e ela não consegue enxergá-lo direito), e a doutora aponta uma sequência de letras de formam a palavra FATHER. Em uma cena no elevador, temos a interação com um protagonista de outro decálogo – é importante lembrar que os dez episódios se passam com pessoas diferentes de um mesmo conjunto habitacional em Varsóvia -, o médico do Decálogo 2. A personagem angelical, símbolo da onipresença de Deus, surge no momento em que Anna está para abrir o envelope deixado pela mãe. Ele atravessa um rio em um pequeno barco e, ao chegar à margem, pega-o, para em frente a Anna, olha para ela fixamente e segue seu caminho. A oportunidade de se livrar de uma mentira é concedida à personagem nesse exato momento.
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 O fim da moral coletiva?
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Se uma pessoa perde as referências pessoais (refiro-me ao campo moral) e os valores familiares (refiro-me ao campo ético), pode-se abrir um caminho para muitas atitudes criminosas (pode ler considerando possíveis aspas aí), já que não existe mais essa garantia de ordem social e limitações chamada família, sociedade, dever para consigo mesmo e o entorno — e sim, eu sei que isso é “limitador” e “controlador” em relação à vida do indivíduo, mas é isto que está posto nas entrelinhas do Decálogo.

De uma maneira muito irônica, esse passo para o crime não é aberto no Decálogo 4 (diferente do filme e da série Twin Peaks, caso muito bem apontado por Slavoj Zizek em um artigo sobre o Decálogo). O futuro das personagens e a legitimidade do pecado estão no julgamento do espectador.

A música expressiva de Zbigniev Preisner, que acompanha a cena final, não nos deixa pistas sobre o que virá – embora o pecado do próximo Decálogo seja uma herança dessa família desvirtuada: Não Matarás. Apenas um dilema moral paira na tela, com a câmera envergonhada que se afasta dos protagonistas para ver “envelhecer” uma velha fotografia de família, como se quisesse aludir ao declínio e morte dessa instituição consumida pelo mundo secular dos modismos, dos extremos e dos excessos.

Decálogo 4 (Dekalog, cztery) — Polônia, 1990
Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Piesiewicz, Krzysztof Kieslowski
Elenco: Adrianna Biedrzynska, Janusz Gajos, Artur Barcis, Adam Hanuszkiewicz, Jan Tesarz, Andrzej Blumenfeld, Tomasz Kozlowicz, Elzbieta Kilarska, Helena Norowicz, Aleksander Bardini, Igor Smialowski
Duração: 55 min.

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