No livro Imagens Apesar de Tudo, o teórico francês Georges Didi-Huberman resgata fotografias retiradas dentro do campo de concentração de Auschwitz para realizar uma defesa da sobrevivência dessas imagens. Na contramão de outros pensadores, que defendiam que os lapsos do horror deveriam ser esquecidos, Didi-Huberman advoga justamente pela exposição destas imagens, argumentando que é justamente pela sua visualização através do mundo que poderia se construir uma memória de tal violência. Zona de Interesse, novo filme do diretor inglês Jonathan Glazer, volta seu olhar justamente para este local: acompanhamos as vivências cotidianas da família do oficial nazista Rudolf Höss, comandante responsável por administrar Auschwitz, cuja residência faz fronteira muro a muro com o ambiente da barbárie.
Ao contrário do que poderíamos, a princípio, esperar em uma produção similar, Zona de Interesse se debruça menos sobre juízos acerca das consequências e naturezas morais decorrentes da contraditória vida de seus personagens – cujo cotidiano parece, muitas vezes, quase esquecer do cenário ao lado -, e mais sobre justamente uma investigação desta ideia de rotina em si. Dessa forma, o que Glazer procura focar ao longo do filme é como os sujeitos que compõem a família Höss experienciam seu dia-a-dia: os filhos e suas experiências de infância e adolescência, a mãe e seu apego fixo a uma ideia de lar construído arduamente, o pai e suas responsabilidades familiares e conjugais. O que se torna, de certa forma, algo atrativo ao espectador, no sentido de que se quebra um pouco a corrente de pensamento esperada para, em uma tentativa subversiva, fazer o banal explodir na face através, precisamente, da sombra oculta não mostrada.
Isso porque Glazer opta, na contramão da filosofia de Didi-Huberman, por nunca mostrar a violência em si. Os campos nunca são de fato, mostrados, apenas seus muros. A violência nunca é explicitada ao espectador, apenas ouvidos as constantes modulações sonoras que servem de pano de fundo àquela narrativa cotidiana através dos ruídos de tiros, gritos e lamentos. Assim, o oculto ressoa nestes detalhes circundando aquele cotidiano quase inocentemente representado, existindo invisível nos pormenores visíveis. Essa opção de Glazer serve, de certa forma, para reforçar a perspectiva de que seu interesse reside sobretudo na contradição: no não-sentido criado entre aquele cotidiano e o peso que ele carrega ao fundo. Uma tentativa de criar dialeticamente um silêncio ensurdecedor.
Diferentemente também de Didi-Huberman, para quem o anacronismo é uma maneira possível de se ler a história, para Glazer ele se torna um problema, pois no filme, de certa forma, tudo está em seu devido lugar. Todas as peças representam um teatro formado para conduzir ao comentário do horror através do oculto ressonante, fazendo com que a intervenção de um presente, representado pelo museu, torne-se uma espécie de ótica que categoriza a visão do passado, alocando-o em um lugar específico: a memória, mas através de um filtro. Dessa forma, Höss, uma espécie de proto-Eichmann que apenas procura “cumprir seu dever” (quando se reúne com os outros oficiais nazistas, o comandante não pensa em nada a não ser seu trabalho: imagina formas de se aniquilar todos eles para melhorar o trabalho dos campos), é o representante máximo desta crítica invisível. Seu objetivo reside justamente no processo: quase um personagem kafkiano, para quem a moralidade existe de forma lateral aos objetivos, assim como a sua própria vida, como quando declara seu amor ao cavalo, a representação da máquina potente, ao invés de sua família. Höss encarna este aspecto procedural em sua estrutura, tornando-se máquina executora por excelência – o que, de certa forma, aliado à opção de não mostrar o horror, cria uma espécie de higienização que seria, para Glazer, algo ainda mais gritante.
É neste processo constante, com o foco nos sujeitos do lado higienizado do muro, que Zona de Interesse estabelece, enfim, seu jugo moral. Os planos sempre distanciados da face de seus personagens, com enfoque no espaço, fazem com que esta concepção asséptica do horror se torne, para Glazer, sua grande arma. É justamente nesta tentativa opositora que a moralidade é despedaçada e entregue ao espectador – o que gera, de certa forma, um interessante efeito de contraditoriedade constante. No entanto, é nela, também, que o horror é transformado em museu. Em museu limpo, também higienizado. Em um lapso futurista, o proto-Eichmann enxerga a conclusão de seu trabalho e pode, assim, ir para casa. Talvez se apostasse em demonstrar esse horror, como defende o filósofo francês, o caminho de Höss seria perturbado. Pois seu grande inimigo, não deixa de ser, enfim, a memória, como Glazer tenta e consegue parcialmente demonstrar.
Zona de Interesse (The Zone of Interest) – EUA, Polônia, Reino Unido, 2023
Direção: Jonathan Glazer
Roteiro: Jonathan Glazer
Elenco: Christian Friedel, Freya Kreutzkam, Ralph Herforth, Sandra Hüller, Johann Karthaus, Marie Rosa Tietjen, Maximilian Beck, Sascha Maaz
Duração: 105 min.