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Crítica | Zodíaco

por Ritter Fan
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estrelas 5,0

Obs: Há spoilers do filme. Como de praxe, se você não viu Zodíaco – e isso vale para qualquer outra obra de David Fincher – sugiro fortemente que veja o filme antes de ler a crítica.  

Hurdy Gurdy Man“, a balada de Donovan, abre e fecha Zodíaco, assim como a presença de Mike Mageau (Lee Norris), sobrevivente do que em tese seria o primeiro assassinato de um dos assassinos mais famosos dos EUA, impulsiona e nos dá fechamento para essa fascinante história que se passa ao longo de décadas. Mas será que David Fincher realmente encerra a história? O que esse grande diretor quis fazer com o livro não ficcional de Robert Graysmith sobre o Zodíaco, lançado em 1986?

Essa pergunta poderá ficar na mente de todo o espectador que tiver o prazer de assistir a mais essa obra-prima de Fincher. Afinal, na superfície, trata-se de mais um filme sobre um serial killer, como em Seven, só que, agora, baseado em fatos reais. Mas aqueles que conhecem minimante a mitologia por trás do assassino Zodíaco, como ele mesmo se chamava, sabem que esse caso jamais foi resolvido, dando azo a muitas especulações e a muitos filmes, famosamente Perseguidor Implacável, o primeiro da franquia de Dirty Harry e que é comentado mais do explícita e sarcasticamente – com um quê de melancolia – na projeção, já que foi lançado enquanto os crimes ainda estavam quentes.

Mas Zodíaco não é isso. Ou, pelo menos, dentre tantas outras coisas mais importantes, é sobre isso também. O genial dessa obra é a maneira como o roteiro de James Vanderbilt, adaptando a obra de Graysmith, nos faz mergulhar nas vidas de diversas pessoas. É isso que vemos passar ao longo de 157 minutos de um enorme prazer audiovisual: vidas. Temos Robert Downey Jr. como Paul Avery, repórter fanfarrão do San Francisco Chronicle, Jake Gyllenhaal como o próprio Robert Graysmith, cartunista do mesmo jornal e, do lado da força policial, temos Mark Ruffalo como o Inspetor David Toschi e Anthony Edwards como o Inspetor William Armstrong. Outras vidas também são tocadas, mas o foco, na primeira metade da fita, fica nesses quatro, com uma lenta ênfase em Graysmith e Toschi que se solidifica completamente no terço final.

De toda forma, as vidas que vemos são vidas dedicadas às suas respectivas profissões, cada um de sua maneira e o preço que todos pagam pelos anos de frustração na investigação do caso Zodíaco. São vidas que se fundem e se separam na medida da força do vento que as levam e da força de vontade daqueles que resistem à natureza. São vidas que completamente se misturam com a evolução da cidade ao seu redor. No meio do caminho, perde-se Avery que, quase como Tony Stark, se entrega à garrafa e à solidão. Depois, é a vez de Armstrong, com a família pesando em sua decisão.

Toschi e Graysmith perseveram, mas também pagam o preço e perdem tudo que amam. Toschi é defenestrado do departamento de homicídios e Graysmith mergulha de cabeça na obsessão de resolver os crimes iniciados em 1969 (ou será que foi antes?), deixando sua família e emprego de lado. A nobreza dos esforços de todos os envolvidos comove e impulsiona o espectador, que testemunha bem mais do que uma obra de investigação criminal para que, ao final, tudo seja esclarecido. Esclarecimento não é o objetivo do roteiro de Vanderbilt e da direção de Fincher. Eles nos querem seguindo as pistas como os protagonistas, mas nunca, em hipótese alguma, para alcançar esse objetivo, eles nos confundem.

Muito ao contrário, aliás, Fincher faz uso de suas técnicas precisas e do excelente trabalho de montagem de Angus Wall (parceiro do diretor desde Clube da Luta) para exatamente deixar tudo muito claro. Nomes, personagens e situações novas nos são apresentadas já tarde na estrutura – várias no terceiro ato – e nunca ficamos confusos, pois há uma correlação crível entre tudo que acontece desde os primeiros momentos até a última sequência, em um grande exemplo de roteiro circular executado à perfeição por Fincher e equipe. A ideia, aqui, não é nos atrapalhar, mas sim impulsionar a narrativa, criar momentos improváveis de tensão (a sequência do porão é absolutamente enervante e desesperadora, com magistral uso de um jogo de luz e sombras que nos remete a Seven por alguns momentos) e desenvolver personagens que muitas vezes são usados de forma esparsa, com intervalo de anos e mesmo assim conseguimos, muito facilmente, imaginar o caminho de cada um do ponto A para o ponto B.

E Fincher não torna seu trabalho fácil com o uso de flashbacks. Não há nenhum em Zodíaco. O tempo, nesse filme, corre apenas para frente, inexoravelmente para frente, distanciando os fatos das investigações, tornando cada vez mais improvável a resolução e cada vez mais evidente a necessidade de “fechamento” que os personagens têm, especialmente Graysmith que, em determinado momento, não esconde sua frustração quando uma potencial testemunha se recusa a concordar com ele sobre um nome que ele encasquetou que é o culpado.

Outra prova do distanciamento de Zodíaco de filmes sobre serial killers é a maneira como Fincher filma os crimes em si. Para começar, são poucos, pouquíssimos para uma obra dessa duração. Além disso, comparem as mortes em Zodíaco com as que vemos em Seven (sim, falar em Seven é basicamente inevitável). Não há elaboração nem rituais, só crueza e desorganização. Um é profissional ao extremo, outro é um amador “com sorte”. Nada de glamorizar os acontecimentos, só relatá-los.

Até o filtro sépia de Seven é trazido para Zodíaco, mas de maneira diferente, novamente para provar as diferenças entre uma coisa e outra. Em Zodíaco, o sépia se abre para um amarelo onipresente, cor que nos remete à limpeza, clareza, esperança e é assim que toda a fotografia é feita, com a ajuda de um design de produção que também tinha isso em mente. Há um filtro quase idílico, de “paraíso” em um dos assassinatos nas marges de um lago, uma limpeza extraordinária nos ambientes que também nos faz lembrar de Vidas em Jogo. E esses mesmo ambientes vão perdendo sua perfeição – sua “sanidade” – na medida em que a trama se desenvolve, literalmente sem um vilão que não seja a mente humana e nossa necessidade de acabar com alguma coisa, de, novamente, ver um encerramento para algo importante em nossas vidas.

E, coroando todo esse trabalho de Fincher, que também usa a computação gráfica para amplificar sua liberdade com a câmera (reparem na tomada por cima da Golden Gate), há as excelentes atuações de todo o elenco, até mesmo de Anthony Edwards, ator que nunca teve grande destaque, mas que cria um personagem digno, uma força de equilíbrio em relação a Toschi, vivido por Mark Ruffalo, esse sim em um de seus melhores papeis. Robert Downey Jr., de certa forma, vive ele mesmo, mas não há como se ignorar sua transformação, sua queda, sua literal auto-destruição. Mas é claro que a coroa vai mesmo para Jake Gyllenhaal, em uma performance que começa discreta, pois seu papel também começa dessa maneira e que aos poucos vai ganhando profundidade e dimensão ao ponto de ele tomar completamente a tela em todas as tomadas em que aparece, mesmo contracenando com seus colegas. Suas mudanças ao longo dos anos são marcadas, sensíveis e perfeitamente críveis, em um trabalho que merece todos os aplausos.

Zodíaco pode não trazer o fechamento que esperamos, mas, justamente ao não trazer o que ansiosamente aguardamentos, o sexto filme de David Fincher é uma obra arrebatadora, hipnotizante. Um tour de force imperdível e inesquecível.

Zodíaco (Zodiac, EUA – 2007)
Direção: David Fincher
Roteiro: James Vanderbilt (baseado em livro de Robert Graysmith)
Elenco: Jake Gyllenhaal, Mark Ruffalo, Anthony Edwards, Robert Downey Jr., Brian Cox, John Carroll Lynch, Richmond Arquette, Ed Setrakian, John Getz
Duração: 157 min.

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