Ieyasu conquistou o império recuando.
– Provérbio japonês.
Publicado originalmente em 1937 com um título talvez pomposo demais, que classificava Tokugawa Ieyasu como “o criador do Japão moderno”, Xógum: A Vida de Tokugawa Ieyasu, título da edição que li, é, até onde consegui pesquisar, a primeira biografia ocidental do fundador do último e segundo mais longo xogunato dinástico nipônico, que durou de 1603 a 1868. Escrito pelo professor britânico Arthur Lindsay Sadler, que lecionou no Japão por quase 15 anos a partir de 1909 e que traduziu diversas obras clássicas e variadas do arquipélago japonês, dentre elas Hōjōki e Heike Monogatari, a biografia é considerada, hoje, uma relíquia de um passado já distante que eleva o sujeito de seu estudo ao status de “Grande Homem”, sem jamais enxergar falhas e que, obviamente, não leva em consideração estudos posteriores, ainda que seja visível que a obra tenha sido uma das que influenciou James Clavell na composição de seu inesquecível Yoshi Toranaga em Xógum – A Gloriosa Saga do Japão, de 1975.
No entanto, se o leitor tiver isso em mente, algo que, aliás, vale para qualquer biografia ou texto de cunho histórico, Xógum: A Vida de Tokugawa Ieyasu é um ótimo, ainda que imperfeito, começo de mergulho na história desse fascinante período da História do Japão e de uma figura história que definitivamente foi extremamente importante para o longo e custoso processo de unificação do país depois de uma devastadora era de guerras civis incessantes que começou com o violento Oda Nobunaga, que fora assassinado em 1582, continuou com o sábio Toyotomi Hideyoshi, que chegou a ser Kampaku (Chanceler do Reino) e, depois de sua aposentadoria, Taikō, e que faleceu em 1598 e terminou com o paciente e profundamente estrategista Tokugawa Ieyasu que sempre recuava para avançar, comendo pelas beiradas, por assim dizer, a ponto de originar o provérbio que usei para iniciar a presente crítica.
Seguindo uma narração cronológica clássica que começa com uma introdução que estabelece o caótico status quo do país antes de os esforços de Nobunaga, na direção da unificação, começarem, introdução essa que talvez seja rápida demais e repleta de nomes demais sem o devido contexto, para realmente funcionar muito bem, Sadler então embarca diretamente na vida de um Tokugawa Ieyasu muito jovem, ainda chamado de Matsudaira Takechiyo, sendo usado como moeda de troca na estrutura feudal que mantinha algum nível de paz com o uso de reféns, ou seja, de membros de um clã ou dinastia passando a morar – com todos os luxos, mas sem poder sair – nas cidades e castelos do clã ou dinastia rival. O biógrafo deixa clara a inteligência ímpar (seria exagero?) do futuro Ieyasu já em tenra idade e o quanto a vida dele como refém por anos moldou sua conhecida paciência estratégica.
A abordagem que vem em seguida já trabalha o futuro xógum primeiro como líder militar em campanhas relevantes e, depois, como aliado de Nobunaga no início do processo de décadas de apaziguamento (ou concentração) de feudos, o que lhe vale seus próprios feudos iniciais e seu estabelecimento como monarca por seu próprio direito e esforços. Mas suas aspirações por mais o colocam primeiro em caminho divergente do de Toyotomi Hideyoshi após o assassinato de Nobunaga e, mais para a frente, em uma mudança radical de posição que é comparável a uma capitulação, mas que, na verdade, faz parte de seu notório jogo estratégico, ele adota caminho completamente convergente, chegando a ser ungido como o “presidente” do Conselho de Regentes que Hideyoshi cria, próximo à sua morte, para tentar fazer com que seu filho ainda muito jovem, Toyotomi Hideyori, o suceda quando chegar à idade mínima (15 anos). Essa aliança e confiança eleva o status então já bem estabelecido de Ieyasu como daimyo da região de Kantō, onde se localizava Edo, hoje Tóquio.
É perfeitamente possível considerar todo esse desenvolvimento de Ieyasu como sendo a parte “introdutória” do livro, já que tudo é trabalhado de maneira muito rápida, como se Sadler estivesse escrevendo para alguém que tenha já um conhecimento razoável sobre o Japão no século XVI, o que compreensivelmente pode afastar muita gente. Seu estilo hiperbólico e superlativo quando fala do futuro xógum pode ser, também, cansativo para o consumo moderno, mas é necessário entender e aceitar que o autor muito claramente considerava o sujeito de suas pesquisas um homem admirável, cujas falhas, se existentes, eram inconsequentes se comparadas com suas qualidades. Com isso, tudo o que vem depois da morte de Toyotomi Hideyoshi, que pode ser visto como o efetivo começo da terceira e última parte do processo de unificação do país, então capitaneada exclusivamente por Ieyasu, ganha enorme destaque, com especial foco na capacidade estratégica do daimyo a todos os momentos.
Sadler, porém, perde-se entre mitos e lendas de um lado e fatos concretos de outro. Com isso, quero dizer que ele não parece se preocupar muito em diferenciar e separar o que pode ser meramente exageros carregados ao longo dos séculos, como a questão da “espada amaldiçoada” de Ieyasu e das diversas anedotas sobre o regente, inseminando o texto com informações que são quase que aleatórias. No lado dos fatos concretos, tudo o que ele parece ter tido à disposição quando fez suas pesquisas, ele marretou no texto. Com isso temos quantidades de sodados, de mortos, de mosquetes, de canhões em batalhas, além de outros número que povoam a narrativa sem que seus contexto sejam devidamente trabalhados e tornados relevantes. Com isso, personagens que poderiam ser mais abordados, como o fiel shinobi Hattori Hanzō que lhe permitiu viajar incólume pela mítica região de Iga e o hatamoto britânico William Adams, ou Miura Anjin, como foi rebatizado no Japão.
Além disso, os capítulos finais, situados após a morte de Ieyasu, todos eles dedicados a legado do regente, parecem muito mais uma interminável coleção de fatos que Sadler não soube amalgamar ao texto precedente, preferindo partir para traduções de leis e textos de cunho pessoal do líder japonês. Novamente, há o problema de o autor parecer estar escrevendo para um par seu e não para um público que tenha bem menos conhecimento dessa época específica e deste monarca específico do Japão. São quase que como apêndices ao texto central, mesmo que haja ainda apêndices logo em seguida.
Mesmo com problemas sensíveis, Xógum: A Vida de Tokugawa Ieyasu consegue não só servir de texto introdutório sobre o personagem histórico, como efetivamente justifica a atenção que é normalmente dada a ele na História do Japão. Sim, ele foi o terceiro de um trio de unificadores do país, mas foi ele que efetivamente – ainda que não exatamente pelo “bem do país” – levou o Japão a 260 anos de paz interna. Não é um feito a ser descartado ou diminuído de forma alguma.
Xógum: A Vida de Tokugawa Ieyasu (Shogun: The Life of Tokugawa Ieyasu – 1937)
Autoria: A.L. Sadler
Editora original: G. Allen & Unwin
Data original de publicação: 1º de janeiro de 1937
Páginas: 416