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Crítica | Xógum – A Gloriosa Saga do Japão, de James Clavell

Um imersivo choque de culturas.

por Ritter Fan
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Em uma citação extraída da crítica literária de Xógum – A Gloriosa Saga do Japão, pelo Washington Post, contida na quarta capa do exemplar que li, o comentarista afirma que a obra é “um daqueles livros que atrapalham as férias e põem em risco o casamento porque simplesmente não deixa o leitor ir”. Mesmo considerando o gigantesco tamanho do terceiro livro – em ordem de publicação, primeiro em ordem cronológica – da chamada Saga Asiática do britânico naturalizado americano James Clavell, foi exatamente o que senti quando finalmente decidi embarcar nessa jornada literária. Tive que consciente e ativamente frear minha leitura para saborear a história e para pesquisar diversos aspectos dela de forma a mergulhar ainda mais nesse fascinante universo de ficção histórica que o autor criou e, quando finalmente virei a última página, minha sensação foi simultaneamente de realização pelo feito e tristeza por ter chegado ao fim.

Baseado na história real do navegador britânico William Adams, o primeiro de seu país a colocar os pés no Japão e um dos poucos não-japoneses a se tornar samurai, o que ocorreu no ano de 1.600 meses antes da decisiva Batalha de Sekigahara, Xógum é um épico complexo que, para além de funcionar como uma excelente introdução, para o público ocidental, à cultura e à política do País do Sol Nascente no final de uma era marcada por ferozes guerras internas, é uma magnífica obra sobre intrigas palacianas, estratégias de guerra, comportamento e filosofia japonesa que servem de pano de fundo, em essência, a uma bela história de amor proibido. Em outras palavras, há de tudo um pouco na criação de Clavell que introduz uma infinidade de personagens, mas todos com função narrativa clara e bem desenvolvida, começando, claro, pela trinca protagonista formada pelo piloto/navegador britânico (e protestante) John Blackthorne (Adams), rebatizado pelos japoneses de Anjin (Miura Anjin), que, juntamente com uma pequena tripulação holandesa faminta e doente, chega ao vilarejo de Anjiro, o líder do Conselho de Regentes que comanda o país e exímio estrategista Yoshi Toranaga (Tokugawa Ieyasu) que logo vê valor no náufrago e na carga de armas de fogo encontrada em seu navio Erasmus (De Liefde, mas antes Erasmus mesmo) e a japonesa convertida ao catolicismo Toda Mariko (Hosokawa Gracia, também Maria em seu nome cristão), que serve de intérprete para Blackthorne e, claro, seu interesse romântico.

A base narrativa da obra é o choque cultural. Por mais que, nos dia atuais, haja uma intimidade maior do público ocidental com a cultura oriental, o que Clavell escreve ainda ecoa muito bem, com o autor conseguindo passar verossimilhança em tudo o que escreve, mesmo que os mais conhecedores consigam indicar no que ele se equivocou (dizem que o japonês que ele usou no livro é atroz). Mas é por isso que Clavell elegeu basear-se em fatos históricos, mas alterando os nomes de todos os personagens (isso explica os parênteses que uso, ao longo da presente crítica, com os nomes reais dos personagens fictícios citados, quando existem), permitindo-lhe plena liberdade e esvaziando qualquer afirmação na linha de “ah, mas isso não aconteceu assim”. O que importa, no final das contas, é a capacidade que o autor teve – certamente fruto de um estudo profundo – de criar coesão e de tecer uma tapeçaria detalhada e cuidadosa sobre o Japão do final do século XVI e a relação do país com os Jesuítas portugueses e o comércio com Portugal e Espanha (ambos sob um mesmo rei), que serviam de intermediários no comércio com a China, além de trabalhar o conflito europeu entre Inglaterra e Holanda de um lado, expoentes do protestantismo, e os países papistas da Península Ibérica de outro.

Com isso, Clavell refestela-se nos contrastes que são variados e alguns até cômicos, como o medo de banho que os “bárbaros” (como os japoneses chamam os ocidentais) têm e a dificuldade de Blackthorne adaptar-se aos hábitos alimentares mais frugais do povo que passa a hospedá-lo, o que leva a um momento realmente hilário em que ele cozinha um coelho, para o horror de todas as pessoas destacadas para servi-lo, além de um desdobramento trágico muito bem conduzido. Do lado puramente japonês, a abordagem da completa falta de vergonha do povo sobre seu próprio corpo e sobre sexo e sexualidade e, claro, na honra acima de tudo e na conexão que é feita entre vida e morte, levando ao suicídio cerimonial (ou seppuku) por razões que podem parecer prosaicas para olhos não nipônicos, são constantes absolutas no texto. A observância estrita à hierarquia é outro ponto de nota, além de todo o ritual do cotidiano, como curvar-se cerimonialmente diante de outros, não usar sapatos em ambientes fechados, a importância dada ao chá – inclusive com páginas e páginas dedicadas ao cha no yu, e assim por diante, mesmo que essa separação em “castas” leve os nobres a simplesmente considerar os plebeus como fazendeiros e pescadores que estão ali para alimentá-los, sendo, de outra forma, completamente descartáveis. A política isolacionalista japonesa é outro elemento que permeia toda a narrativa e contextualiza a literal natureza xenofóbica e insular dos nobres do arquipélago. O autor parece usar seu livro realmente como um tratado introdutório à cultura e política japonesas que, de quebra, conta uma história cativante.

Outro aspecto muito relevante no que Clavell escreve é sua lucidez no tratamento de um branco ocidental em meio aos japoneses. Diferente do que talvez muitos podem imaginar, não há, aqui, nenhuma tentativa de transformar John Blackthorne/Anjin no chamado “salvador branco”, ou seja, no estrangeiro que, no alto de sua sapiência, resolve os problemas internos de uma civilização milenar. Sim, Blackthorne é inteligente e particularmente hábil com línguas – além do inglês e do holandês, ele fala português, espanhol e latim fluentemente – que lhe permite aprender japonês em velocidade acelerada, mas sempre verossímil e sim, há alguns capítulos que o colocam em destaque em momentos cruciais, mas, no fundo, ele é muito mais a ponte entre o leitor ocidental e a cultura oriental do que qualquer outra coisa. É muito evidente como o autor faz das tripas coração para destacar Toranaga e Mariko, colocando-os em pé de igualdade com Blackthorne, além de desenvolver narrativamente um sem-número de outros personagens como o sereno Padre Martin Alvito (João Rodrigues), o traiçoeiro líder de Anjiro, Kasigi Yabu (Honda Masanobu), e o violento segundo em comando de Yabu, Kasigi Omi (Honda Masazumi).

Considerando o quanto a sociedade japonesa (e não só a japonesa) era e ainda é patriarcal, é notável como Clavell faz de Mariko uma personagem completa, com passado rico e um presente ambicioso, uma mulher que muito longe de ser apenas uma intérprete e um interesse romântico, é sagaz em suas observações, subserviência ao seu marido e ao seu lorde Toranaga, sendo verdadeira peça fundamental na complexa engrenagem montada. E ela não está sozinha, pois o autor também não deixa para trás outras personagens femininas relevantes, especialmente a trágica Fujiko, que se torna consorte de Blackthorne, e a inteligente Kiri, conselheira pessoal de Toranaga. E isso sem falar na maquiavélica mãe do herdeiro do líder anterior (que, por ser de origem plebeia, não pode ser Xógum, mas sim Kampaku, ou Regente do Reino, na prática a mesma coisa, e, quando se aposentou, Taikō, ou, simplesmente, Regente Aposentado) Lady Ochiba (Yodo-dono) e a bem informada cafetina Gyoko.

Toranaga é abordado de maneira reverencial, com Clavell realmente bebendo de variadas fontes ocidentais sobre o grande líder Tokugawa Ieyasu, o terceiro em uma trinca de unificadores do país (os outros dois foram Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi, o mencionado Taikō, ambos já falecidos quando a história começa) que o adjetivam como um estrategista exímio que sempre joga um jogo longo, paciente, repleto de planos dentro de planos e com uma cabeça lúcida sobre seus objetivos. O texto do romance dá muito destaque a Toranaga, seja quando vemos a história a partir de seu ponto de vista, incluindo e especialmente belíssimos momentos filosóficos em que ele usa sua paixão pela falcoaria para classificar as atitudes de Mariko e Blackthorne, seja quando ele sai fisicamente da narrativa central – o que acontece com constância -, mas permanece espiritualmente presente por toda ela.

No entanto, para fazer tudo isso, James Clavell toma algumas liberdades narrativas que podem parecer inicialmente estranhas. A mais saliente delas é o quanto ele pula de ponto de vista, não tendo nenhum pudor em trabalhar a visão a partir de Blackthorne em um parágrafo e, no seguinte, a partir de Mariko ou Toranaga ou qualquer outro dos diversos personagens que ganham esse tipo de destaque e isso sem contar quando entra um “narrador” para explicar determinadas situações e conceitos, algo que a maioria dos autores evitaria, preferindo empregar notas de pé de página ou outros artifícios nessa linha. Há, portanto, uma curva de adequação e costume ao leitor, curva essa que, no meu caso, demorou algo como umas 150 páginas para tudo tornar-se mais natural, ainda que os “pulos” de uma mente para outra sempre permaneceram como fatores de leves distrações momentâneas, de frações de segundo que reputo um preço baixo para pagar pelo que Clavell oferece em troca.

E não é que a leitura seja difícil, vejam bem, pois Clavell tem excelente controle narrativo, mesmo que ele se repita muito – as frases que mais povoam o livro, juntas ou separadas, são “So sorry. I apologize. Please allow me to commit seppuku.” ou, em português, “Sinto muito. Peço desculpas. Por favor permita-me cometer seppuku.“, o que por vezes chega a ser engraçado – e mesmo que ele entre em detalhes sobre absolutamente tudo o que introduz ou aborde, de falcoaria a instrumentos sexuais em prostíbulos, passando por quimonos e espadas. É, como já disse, uma espécie de livro didático sobre a sociedade japonesa do século XVI disfarçado de romance épico, o que pode ser, para muitos leitores, algo que os afaste da obra, mas que, para mim, foi um fator que me fez imergir completamente no universo criado, seja pela recusa do autor em introduzir personagens somente com um breve objetivo específico, fazendo com que todos tenham sua própria história, seja pela maneira precisa com que ele costura sua própria versão de um número absurdo de fatos históricos em uma narrativa que desafia o leitor a separar ficção e realidade.

Xógum – A Gloriosa Saga do Japão é uma obra valiosa por criar uma belíssima ponte entre Ocidente e Oriente, por ensinar história em meio a uma aventura épica ficcional com profundos alicerces em fatos e por introduzir personagens cativantes, mesmo quando são odiosos. É realmente um daqueles romances que, quando o leitor percebe, foi tragado completamente para um mundo do qual não quer mais sair, tanto que chega a ser irresistível colocar em lista de leituras futuras um sem-número de obras literárias vindas diretamente do Japão para complementar, expandir e até mesmo contradizer as “aulas” de James Clavell.

Xógum – A Gloriosa Saga do Japão, de James Clavell (Shōgun – Reino Unido, 1975)
Autoria: James Clavell
Editoras originais: Delacorte Press (EUA) e Hodder & Stoughton (Reino Unido)
Data original de publicação: 1º de junho de 1975
Editora no Brasil: Editora Arqueiro
Data de publicação no Brasil: 15 de junho de 2008
Páginas: 1312 (edição única americana que foi a lida pelo crítico)

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