O documentário longa-metragem indiano Escrevendo com Fogo, que concorre ao Oscar 2022 em sua categoria, tem duas linhas narrativas principais que são tão bem costuradas que parecem uma só, havendo a tendência que reputo natural de que uma, a que se refere às mulheres da casta mais baixa do estado de Utar Pradexe, ao norte do país, que faz fronteira com o Nepal, criando e mantendo, contra todas as probabilidades, o jornal independente Khabar Lahariya. Sem dúvida um feito incrível por si só em um país absurdamente patriarcal, dividido hierarquicamente em castas intransponíveis e tomado de crenças religiosas conflitantes. Mas a segunda linha narrativa, que vai de mãos dadas com a primeira, lida com a condenação em larga escala do jornalismo feito por conglomerados de mídia sem rosto e sem nenhuma preocupação efetiva com os fundamentos do jornalismo, e ela consegue ser tão interessante quanto a primeira, mesmo que fique como aquela discreta linha de contrabaixo que marca o ritmo de algumas canções.
Considerando que o jornal em questão já existia há algum tempo quando a dupla de documentaristas Sushmit Ghosh e Rintu Thomas embarcou na produção do documentário, ela inteligentemente usa o momento de transição da mídia escrita para a mídia digital e o quanto isso afeta as jornalistas, como o gatilho narrativo para mergulhar na história. Grande parte do foco fica em Meera Devi, da casta Dalit, também chamada pejorativamente de “intocável”, já estabelecida como a principal repórter e, também, a que mais faz força para que suas colegas entrem na era da internet, o que significa apresentar a elas os conceitos básicos do que é a rede mundial de computadores, as mídias sociais e, principalmente, smartphones, aparelhos que algumas sequer tocaram na vida. Esse início usa toda essa construção para trabalhar a estratificação social abissal da Índia, o preconceito que as mulheres Dalit sofrem e quanto seus próprios pais e maridos duvidam do que elas fazem, em momentos que chegam a ser revoltantes.
Feita essa introdução, por assim dizer, o documentário envereda pelas matérias que a equipe passa a cobrir usando os novos equipamentos e o quanto isso acaba sedimentando o sucesso da empreitada dessas mulheres destemidas. As coberturas vão desde casos sérios de estupro que são completamente ignorados pela polícia local, que basicamente considera a mulher como culpada dessa ignomínia, passando por questões “menores” como saneamento básico, rios assoreados, mineração ilegal e chegando à política do estado que, por ser um dos mais importantes do país, influencia de maneira pesada nas eleições gerais, com a tomada do poder pelo partido BJP (Bharatiya Janata Party) que privilegia sem qualquer medida a maioria hindu. Ao longo dessas abordagens, vemos as jornalistas se arriscando em meio a homens que as consideram menos importantes do que as “vacas sagradas”, mas sem que elas deem para trás ou amedrontem-se. Muito ao contrário, elas vão aos poucos se fortalecendo ainda mais, inclusive aquelas que pouco conseguem fazer no início simplesmente por não conseguirem usar os apetrechos essenciais como os telefones.
E o melhor é notar como esse jornalismo de guerrilha, olhando para o povo e suas agruras e realmente feito – até onde se pode notar – sem interesses pessoais sobrepujando a busca pela verdade, alcança resultados práticos que alimentam o alcance do jornal, ao mesmo tempo em que muda a vida das pessoas das mais diferentes maneiras. É assim que podemos notar, de maneira mais franca, a crítica ao jornalismo pasteurizado feito por empresas gigantes que, em regra, estão tão distantes da população quanto os políticos, mesmo que alguns jornalistas, aqui e ali, ainda mantenham inamovíveis sua ética e moral. Mas há uma ironia nisso tudo também, claro, que, porém, fica no ar. Será que, se o Khabar Lahariya crescer o suficiente não existe a chance de ele mesmo agir como a grande mídia ou, pior ainda, ser comprado pela grande mídia? Restar torcer que não, mas sempre fica a dúvida do quanto a ética resiste ao poder do dinheiro.
Mas isso é só especulação. O que realmente importa é que Escrevendo com Fogo é um importante instrumento para trazer à tona a prova inequívoca de que o sistema de castas indiano pode sim ser furado com persistência e paciência e por pessoas que estão tão lá embaixo na hierarquia sócio-política, que sua própria existência é ignorada e, diria, negada. O Khabar Lahariya é como uma ponta de lança que abre espaço para que essa inacreditável injustiça sistêmica, um dia, seja pelo menos mitigada, de forma que uma mulher não precise lutar contra seus próprios parentes para conseguir fazer algo tão “simples” quanto perseguir seus sonhos. O caminho ainda é longo, mas o documentário de Sushmit Ghosh e Rintu Thomas é mais um aceno para essa possibilidade sem jamais emudecer a linha de contrabaixo que permanentemente aborda a questão macro sobre os problemas do jornalismo gigante moderno.
Escrevendo com Fogo (Writing with Fire – Índia, 2021)
Direção: Sushmit Ghosh, Rintu Thomas
Com: Meera Devi, Suneeta Prajapati, Shyamkali Devi, Krishna Mishra, Kumkum Yadav, Lakshmi Sharma, Lalita Devi, Meera Jatav, Nazni Rizvi, Rajkumari Ahirwar, Rajni Kumari
Duração: 92 min.