SPOILERS!
É quase impossível para alguém que tenha contato com os quadrinhos ou com a cultura nerd em geral jamais ter ouvido falar de Watchmen, minissérie (depois classificada como graphic novel, embora, a rigor, não o seja — mas definitivamente ajudou a popularizar o termo) publicada mensalmente em doze partes entre setembro de 1986 e outubro de 1987. Alan Moore (à época, também no leme da Saga do Monstro do Pântano) escreveu o roteiro, Dave Gibbons desenhou, letrou e fez as capas e John Higgins coloriu a obra. Desde o início de sua publicação, Watchmen criou em torno de si um grupo enorme de admiradores e ‘decodificadores’ de seu conteúdo, situação que tornou a série uma dentre as mais adoradas da história dos quadrinhos, embora, como em qualquer grande obra, haja quem não tenha lido, haja quem tenha lido pela metade, quem não tenha gostado e também aqueles que fingem que gostaram para não parecer “diferentões”. Que fique claro, desde já, que ninguém é obrigado a gostar de nada. É na divergência que exercemos alguns dos melhores diálogos sobre as coisas, especialmente na arte. O que não é saudável é negar a qualquer produção artística o seu lugar na História, sua qualidade e a sua importância só porque ela não passou pelo seu crivo de gosto pessoal.
O mercado mundial dos quadrinhos nos anos 1980 parecia querer trazer à luz gerações inteiras de artistas e obras undergrounds pouquíssimo conhecidas nas décadas de 1960 e 1970 (quando começaram a levantar voos mais… populares). A nona arte passava a espelhar e a filtrar uma década de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais intensas ao redor do globo, ganhando maturidade e nos trazendo produções dentro e fora do mundo dos super-heróis que abraçavam esses temas*. Foi nesse mundo de grandes obras ganhando vida e popularidade que Alan Moore e Dave Gibbons conceberam uma história onde os Estados Unidos de uma realidade fictícia, mas muito similar à nossa (o ano é 1985 e o presidente do país é um Richard Nixon que vencera a Guerra do Vietnã), amarga um terrível impasse diante da União Soviética e uma Guerra Nuclear iminente ameaça toda a humanidade.
Este cenário é o plano de fundo para o relevo de [super] heróis realistas que atravessam todo tipo de “problema mundano” imaginável, todos à margem de arquétipos e estereótipos conhecidos — uma abordagem bastante comum nos quadrinhos a partir da década de 80 –, que, combinados com um estilo narrativo híbrido entre HQ, TV, cinema e literatura (da qual também o autor empresta nuances formais nos diálogos e descrição dos eventos), termina em uma saga de crítica política ácida, absurda exploração psicológica dos personagens, simbolismos e uma lista inteira de figuras de linguagem no decorrer de 12 edições. Gostemos ou não de Watchmen, sua proposta ousada de narrativa e tremenda objetividade e funcionalidade da arte são revolucionárias e fizeram escola. Não admira em nada o enlevo total que a obra recebe até hoje.
Quando a DC Comics adquiriu os direitos para alguns personagens da Charlton Comics em 1985, Dick Giordano, Diretor Executivo da casa, abriu espaço para que alguns artistas contratados propusessem histórias baseadas nesses heróis, e foi aí que Alan Moore entrou com uma ideia de reformulação que matava de cara o Pacificador e seguia entre a neurose e a semeadura de uma distopia centrada em um Estados Unidos — ou um mundo inteiro — à beira de um holocausto. Giordano aprovou a ideia, mas negou o uso dos personagens da recém aquisição da DC, sugerindo a Moore que inventasse novos heróis e vilões, não importando se fossem inspirados em algo da Charlton; o importante era que não fossem os mesmos. E depois de saber de onde viriam os heróis de sua nova obra, Moore começou a pensar em como tornar as coisas politicamente interessantes para eles.
O mundo de Watchmen não traz apenas ingredientes da Guerra Fria, mas de praticamente todos os importantes conflitos políticos/bélicos que ganharam destaque nos jornais e principalmente na TV durante a década de 80. O roteiro é construído em duas colunas temporais que sustentam seus mundos quase que unicamente em consequências de guerras e violência urbana. A primeira delas ocorre no passado (décadas de 1930 e 1940, onde vemos, em flashback, a ação dos Minutemen ou Homens-Minuto, que é uma homenagem do autor à Era de Ouro dos Quadrinhos) e a segunda, na década de 1980 (a primeira entrada no diário de Rorschach é 12 de outubro de 1985), que traz as consequências ideológicas e políticas da Guerra do Vietnã e uma embolada de deixas, exemplos, desdobramentos, polêmicas e críticas à Guerra Afegã-Soviética (1979 – 1989), à Guerra do Líbano de 1982, à Guerra das Malvinas (1982), à Invasão de Granada (1983), à Guerra Irã-Iraque (1980 – 1988) e, por fim, à decisão do presidente Ronald Reagan de colocar mísseis americanos na Europa Ocidental como uma espécie de garantia para a OTAN frente ao “Oriente Vermelho, desesperado e ainda ameaçador“.
O pessimismo e medo que marcam esse mundo ’80 são as primeiras coisas que o texto nos dá em À Meia-Noite, Todos os Agentes…, bem como o primeiro passo da responsabilidade moral que aparece hasteada em toda a obra. Ele parte, como já levantei, do diário de Rorschach, que escreve:
Esta manhã, no beco, havia um cão morto com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi o rosto dela. As ruas são sarjetas dilatadas e essas sarjetas são cheias de sangue. Quando os bueiros finalmente transbordarem, todos os ratos irão se afogar. A imundície acumulada de todo o sexo e matanças que praticaram vai espumar até suas cinturas e todos os políticos e rameiras olharão para cima, gritando, “salve-nos”… e do alto, eu vou sussurrar: “não”. […]
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A visão de Rorschach “contamina” a visão do leitor desde o início. Não importa sua posição política ou entendimento de mundo, as poderosas primeiras páginas de Watchmen vão redirecionar essas posições para um outro lugar, para uma postura aliada à extrema-direita, à extrema solidão, à impiedade, a um código moral duro, implacável e, segundo o próprio Moore, a um personagem “Ditko fundamental. Assassino ou santo? Vê o mundo como moral + fraco + necessitando de um código rígido”. Baseado no Questão (Charles Victor Szasz ou Vic Sage, criado por Steve Ditko em Blue Beetle #1, de 1967), Rorschach/Walter Kovacs principia investigando a morte do Comediante e é por sua pregação de danação do mundo — O FIM ESTÁ PRÓXIMO! — e apodrecimento da sociedade que os galhos dessa árvore de “heróis em nosso mundo” vão brotando. O personagem ainda traz a nossa familiar vontade de punição em teoria retributiva (malfeitores devem ser punidos por terem cometido maldades) que, em isolada vontade, é um sentimento puro: busca pela justiça, vontade de fazer o que é certo. Os meios e os métodos de quem pune e os porquês de punir é que começam a ser um problema, tanto na sociedade quanto na trama, vide o comportamento que o vigilante toma a partir dessa sua descida aos infernos periféricos da cidade. No final, é extremamente sintomático que ele exiba as pranchas de interpretação em seu rosto: ele nos deixa ver, entender e buscar significados pessoais através do juízo feito daquilo que estamos lendo.
Através da arte de Dave Gibbons nossa perspectiva também é afetada. Entenda que, desde o início, somos obrigados a pensar como Rorschach (nada mais natural, visto que o nome do personagem vem do teste projetivo de autoexpressão desenvolvido pelo psiquiatra e psicanalista suíço Hermann Rorschach, ou seja, o mascarado é um teste para nós) e, através da arte e das cores, a ver exatamente como ele. Não é preciso mais de duas páginas para criarmos uma impressão terrível de uma realidade da qual não gostaríamos de fazer parte. A grande sacada é que a proposta dos autores coloca tudo isso como se ocorresse em nosso quintal, daí o contraste de emoções e as dúvidas de como agir ou entender o que lemos. Quando, mais à frente, o Relógio do Apocalipse é apresentado, a maioria dos leitores já está no seguinte estágio: “tomara que dê logo meia-noite e tudo isso seja destruído. Nada mais vale a pena”.
A divisão da série em 12 partes, como os doze pontos do relógio, atiça mais a sensação de emergência, que jamais é diminuída ou floreada. O peso da arte de Gibbons é um outro agravante aí, porque além de nos fazer ver sujeira para todo lado, nos obriga a passar muito tempo olhando os quadros, transformando-nos em investigadores, mesmo que seu traço e sua proposta para toda a série seja extremamente simples. Todavia, é nesta simplicidade que muitos lugares, expressões e objetos são adicionados à mitologia dos heróis e ganham enorme importância em toda a saga, como a famosa smiley face, a carinha feliz manchada de sangue que emula a cratera Galle, de Marte e que se tornou um dos símbolos da saga.
O conceito de exterminismo somado à doutrina militarista MAD (Mutual Assured Destruction ou Destruição Mútua Assegurada) é implantado em Watchmen junto à paranoia de Rorschach para o que poderia acontecer a partir dali. Há um exterminador de mascarados à solta e todos precisam ser avisados. O fim, não só da sociedade, mas dos vigilantes que ninguém vigia (Quis custodiet ipsos custodes?) está chegando. A primeira vítima, o Comediante/Edward Morgan Blake, baseado no Pacificador (Christopher Smith, criado por Joe Gill e Pat Boyette na Fightin’5 #40, de 1966), é o tipo “animal atlético” dos heróis que trabalhavam para o governo e pelo qual o leitor não tem nenhuma simpatia. Seu niilismo e desrespeito imensos à vida humana e à sociedade só fazem dele alguém aparentemente simpático nos momentos antes à sua morte. É importante lembrar que sua “licença para matar” se deu após o fracasso dos Combatentes do Crime, heróis que tentaram formar um grupo em 1966 como uma “segunda geração dos Minutemen“, resultando, no máximo, em algumas parcerias incomuns. Em seguida houve a proibição dos super-heróis pela Lei Keene de 1977, e daí para frente, apenas o Comediante e o Dr. Manhattan permaneceram ativos, trabalhando para o governo.
Como a narrativa se dá em primeira pessoa, mudando aos poucos o foco e adicionando alguns apêndices temáticos (abaixo), é possível entender sob vários pontos de vista como a gravidade das relações políticas dos EUA com a URSS cresce e de como as pessoas recebem essa situação. Em paralelo, os heróis parecem voltar à mídia, devido a uma exposição ingrata do eremita místico que vê o mundo como um sistema subatômico, o Dr. Manhattan/Jonathan Osterman (baseado no Capitão Átomo/Allen Adam, criado por Joe Gill e Steve Ditko em Space Adventures #33, de 1960), único dos vigilantes desse Universo com super-poderes, algo que o afastará progressivamente da humanidade, culminando com o seu exílio voluntário da Terra. Em outra camada, os mascarados — novos e antigos; famosos ou obscuros, como Moloch, por exemplo — caem, um a um, e o cerco vai se fechando em torno de Rorschach, que parece pressentir a execução de uma ideia pelo “bem comum”, uma perigosa utopia que Alan Moore explora em seu texto com tanta relevância filosófica que parece estar adaptando a visão de Hannah Arendt para este tema em As Origens do Totalitarismo:
A legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e pretendendo estabelecer diretamente o reino da justiça na Terra, executa a lei da História ou da Natureza sem convertê-la em critérios de certo e errado que norteiem a conduta individual. Aplica a lei diretamente à humanidade, sem atender à conduta dos homens. Espera que a lei da Natureza ou a lei da História, devidamente executada, engendre a humanidade como produto final; essa esperança — que está por trás da pretensão de governo global — é acalentada por todos os governos totalitários.
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Na história temos os seguintes apêndices que ajudam a ampliar esse Universo e entender melhor o comportamento de alguns personagens e organizações.
- Três excertos do livro fictício Sob o Capuz, escrito por Hollis Mason (o primeiro Coruja);
- Um ensaio intitulado Dr. Manhattan: O Super-Homem e as Superpotências, escrito por Milton Gass, um Doutor em Física;
- Uma matéria sobre quadrinhos de pirata onde se podem ler chamadas do tipo “Um Homem Sobre os Corpos de Quinze Mortos“; “A Ilha do Tesouro – A Tesouraria dos Quadrinhos” e “Contos do Cargueiro Negro“;
- Ficha do Departamento de Polícia de Nova York – Manhattan; ficha do Hospital Psiquiátrico do Estado de Nova York – Ala Oeste; Ficha do Lar Charlton (pegaram a referência?) e uma carta de infância: tudo sobre Rorschach;
- Um ensaio sobre ornitologia — ramo da biologia que se dedica ao estudo das aves — intitulado Sangue dos Ombros de Palas, escrito por Daniel Dreiberg, o segundo Coruja;
- O press release de um jornal de extrema-direita chamado The New-Frontiersman, onde se lê a matéria Honra é Como um Falcão: às Vezes, Deve Ser Encapuzada e os subtítulos Armagedom Vermelho; Quem Eles Pensam Que São?; Vilipêndio; Covardes Comunistas e Cocainômanos; além de uma charge e uma outra matéria: Escritor Desaparecido: lista de pessoas desaparecidas cresce enquanto investigações são abolidas;
- Excertos de um álbum de recortes da primeira Espectral, onde no final, lemos uma entrevista em que ela declara — para polêmicas contemporâneas — “Estupro é estupro e não há desculpas para isso. Não mesmo, mas, pra mim, eu sinto… sinto que de alguma forma, eu contribuí para isso.“;
- Memorandos das empresas de Adrian Veidt, o ex-vigilante Ozymandias, onde podemos ver trechos do Método Veidt de vida e sugestão para o perfume Nostalgia.
- Entrevista com Adrian Veidt feita por Doug Roth e intitulada Depois do Baile de Máscaras.
Neste ponto, chega em boa hora a discussão sobre o projeto do homem com dez vezes a inteligência humana, o solitário que vê o mundo como um organismo a ser controlado por ele, Ozymandias/Adrian Veidt (baseado no Relâmpago/Peter Cannon, criado por Pete Morisi na Thunderbolt #1, de 1966). Esse “bem comum” ou “bem maior” que ele engendra torna polêmica a sua classificação e, dependendo dos laços morais ou interpretação de seu ato na história, poderá ser tanto um vilão quanto um herói. Em um olhar mais aprofundado, estamos falando da autorrealização do pensamento liberal, curiosa e anacronicamente (no bom sentido) com suas raízes no correspondente grego a Ramsés II, faraó que, segundo o historiador americano Lionel Casson “[…] num opulento reinado de 67 anos, empenhou-se numa guerra extravagante contra uma coligação de Estados asiáticos chefiada pelos hititas, gerou mais de 100 filhos e construiu os maiores e mais imponentes edifícios do Egito.”.
O que muita gente não sabe sobre a famosa frase de Juvenal utilizada como mote de Watchmen, a inesquecível “Quem vigia os vigilantes?“, é que em seu contexto original, o autor satirizava a ação dos homens que punham guardas nas portas para garantir a castidade de suas mulheres. Perceba que estamos falando de um trabalho oficial de responsabilidade moral, porém, totalmente entregue ao subjetivo, ao emocional, ao caráter daquele que vigia. Novamente, a responsabilidade e julgamento arendtianos voltam à tona e, no caso de Ozymandias, sinalizam que há muito mais em jogo do que apenas uma apologia à salvação através de meios moralmente complexos. Aqui, basta lembrar que o personagem é inspirado por Alexandre, rei macedônico que morreu invicto em batalhas, soberano de um império que ia da Grécia à Índia (somando o Egito), e que é considerado um dos comandantes militares mais bem-sucedidos da História. Sua tentativa de unir Persas e Macedônicos se equipara, aqui, à tentativa de Ozymandias em unir americanos e soviéticos, ou… o mundo capitalista e o mundo socialista, trazendo uma “era de paz mundial” que parece não ser mais utopia. A questão é: os meios maquiavélicos do personagem são válidos (a reunião de cientistas e artistas em uma ilha para criar e teletransportar uma lula gigante geneticamente modificada até o centro de Nova York e matar milhões de pessoas para gerar uma “ameaça comum”), dado o resultado final?
Deste ponto, vejam que dois braços narrativos se abrem, fechando dois diferentes ciclos. É da descoberta deste plano pelo Comediante que Ozymandias inicia a matança; e é pelo resultado final dele, diante de uma programação no melhor escopo de ética utilitarista — onde as ações são corretas proporcionalmente à sua tendência para promover a felicidade –, que a união entre os povos é realizada e a guerra evitada, sabe-se lá até quando. Eis aí “o bem”, conseguido através “do mal”. Há algo além disso?
E tudo fica ainda mais interessante quando comparamos esta mentalidade e este momento histórico aos medos e problemas de um passado que talvez seja o responsável indireto pela tragédia do presente, um tipo de dívida histórica da humanidade para com ela mesma. Não consertados no mundo a partir de 1938 (…pois é claro que os grandes problemas começaram depois da criação do Superman!), esses problemas geraram civilizações inteiras em busca ensandecida e a todo custo pelo poder, quase numa microfísica Universal em camadas foucaultianas. É como se víssemos perversões e trágicas atualizações de todas as nuances filosóficas dos personagens dos anos 30 e 40 refletidas naqueles que se juntam a partir de 1966, mantendo aí o acúmulo de seus fracassos e mudanças que causaram no mundo, especialmente no caso do Dr. Manhattan, fato que acaba aproximando Watchmen a um dos princípios mais curiosos da Teoria do Caos: o Efeito Borboleta. Neste cenário, a ideia frustrada dos Combatentes do Crime é uma mensagem política por si só, cheia de consequências (e também causadoras de consequências) através do tempo e da memória histórica, fortemente acrescidas de significados transversalmente às pistas que Gibbons colocou nos desenhos.
Na frase “luta pelo que é certo, perdição e necessidade de renascimento” aparecem as migalhas de informações do passado (repetição em farsa e tragédia?) onde o estreante desse mundo de heróis desconstruídos (o Justiça Encapuzada), era um homossexual com tendências sadomasoquistas. Fora de seu tempo, renegado por sua sociedade, mas lutando em prol da ordem dela — percebam a ironia! –, o Justiça abriu as portas para uma onda de “morais anormais” que tinham exatamente este mesmo sonho. Mas cada um recebeu um impulso diferente para começar e só continuaram por motivos bem menos altruístas.
Grosso modo eles são egoístas e buscam exercer poder sobre os outros, talvez como caminho para se chegar a um sonho pessoal, embora possamos relativizar isso através do mais ético desses personagens, em suas duas versões: o Coruja. Trazendo as várias virtudes apresentadas por Aristóteles em Ética a Nicômaco (bravura, temperança, amabilidade, amizade e espirituosidade), ele é uma espécie de bastião clássico que equilibra extremos e que curiosamente — percebam outra ironia! — é tido como o mais covarde e “sem graça” dos vigilantes, sintoma de um mundo que escanteia a neutralidade como algo… ultrapassado.
Depois do Justiça Encapuzada na Era de Ouro deste Universo, o mundo conheceu os novos atores dessa jornada de luta contra o mal. O primeiro e confuso contato da população com os mascarados. Os Minutemen.
- Coruja (Hollis J. Mason, baseado no Besouro Azul da Era de Ouro/Dan Garret, criado por Charles Nicholas Wojtkoski na Mystery Men Comics #1, de 1939. No futuro haveria o Coruja II/Daniel Dreiberg, baseado no Besouro Azul da Era de Prata/Theodore Stephen “Ted” Kord, criado por Steve Ditko na Captain Atom #83, de 1966);
- Espectral (Sally Jupiter/Sally Juspeczyk, aspirante a atriz que se torna vigilante para promover sua carreira. Ela é a versão mais velha — e mãe — da Espectral II/Laurie Juspeczyk, baseada em Sombra da Noite/Eve Eden, criada por Joe Gill e Steve Ditko na Captain Atom #82, 1966);
- Dollar Bill (herói contratado/criado por um banco como forma de publicidade); o já conhecido Comediante e os outros parceiros do grupo: Traça; Capitão Metrópole (militar conservador com ligeira síndrome de Peter Pan) e Silhouette (futuramente expulsa da equipe por se assumir lésbica).
Olhando para todas essas fases e suas tragicomédias sociais, o que poderia dar certo como um escape neste mundo de heróis humanizados e desconstruídos? Ora, a ficção! Ao pensar nisso, Moore e Gibbons mergulharam em uma viagem metalinguística chamada Contos do Cargueiro Negro que, como história dentro da história, sincroniza fantasia e realidade, refletindo os dramas e neuroses do marinheiro perdido nos dramas e motivações dos vigilantes, muitas vezes agindo com extremo cinismo junto ao próprio Universo de Watchmen, uma autocrítica que não se contenta em já ter um leitor “manipulado” e o faz engajar-se na história também como uma pessoa comum, um leitor de quadrinhos, como o rapaz que acompanha a história do Cargueiro e, em outro aspecto social, como leitor de jornais ou comentador de notícias, tal qual o jornaleiro da banca de esquina.
Eu já comentei sobre os aspectos centrais da arte de Gibbons e das cores de John Higgins, que investiu em modelações europeias e pesou a mão em cores secundárias e trabalho com matizes dentro de uma mesma paleta (no Capítulo VI, o nietzschiano O Abismo Também Contempla, há o maior exemplo dessa graduação sensacional) mas gostaria de reservar um espaço para analisar certos elementos de perto. Na famosa entrevista dada por Alan Moore a Vincent Eno e El Csawza em 1988, o autor relatou que a composição artística da obra foi pensada com tal cuidado e nível de detalhes que há coisas que “só serão percebidas ou entendidas depois de uma quarta, quinta leitura“. Gibbons construiu, deliberadamente, uma peça de propaganda cheia de artifícios e MacGuffins que no início se dá quase que unicamente pelo choque de perspectiva do leitor, espalhando-se, ao final do primeiro capítulo, para a profundidade de campo com o aumento de coisas nos quadros.
Também comentei que os personagens tiveram um princípio (esboço e traço) simples, cujo objetivo era ser facilmente reconhecido pelo leitor. Mas essa concepção visual não impediu que Gibbons investisse em elementos que se alteram imensamente no decorrer dos capítulos, como o traço dos personagens com um tipo de caneta rígida na finalização que não permitia muita modulação anatômica. Porém, como esta não era a única base para o acabamento, vemos cada um ganhar ou perder cicatrizes, rugas, sinais, pequenas hachuras e, por parte das cores, diferentes exposições de luz que contam muita coisa sobre suas intenções (isso só é percebido a partir da segunda leitura, claro) e emoções. E também junto a essas modificações dos personagens, o leitor terá leves mudanças nos modelos dos edifícios e carros, um mescla de clássico com o futurista escondido na normalidade dos anos 80.
O fato de estarmos falando de uma série em que há uma estrutura majoritariamente de nove painéis por página nos dá uma base clara do controle rítmico que marca a arte de Gibbons (lembrem-se, por exemplo, do painel duplo de reflexo na luta de Ozymandias em Terrível Simetria), cuja inspiração em Harvey Kurtzman e nos primeiros trabalhos de Steve Ditko não passa despercebida.
A polêmica em relação ao final de Watchmen (para mais lenha na fogueira, leia O Final de Watchmen (filme) é Superior ao Final de Watchmen (HQ)…) segue até hoje, tanto pelo seu conteúdo, quanto pelo chamado anticlímax ou “bobidão” com que é feita.
Já falei sobre o propósito de união entre Ocidente e Oriente encabeçado por Ozymandias e o seu plano de forjar uma invasão alienígena para colocar os beligerantes no mesmo lado da moeda: em vez de lutarem contra si, uniriam forças para lutar contra um inimigo externo [que não existia]. A despeito da morte de milhões de pessoas, o plano de paz mundial é alcançado. Há alguns estreitamentos entre o final de Alan Moore (que, convenhamos, para uma ficção da Guerra Fria, não era nada extraordinário terminar com invasão alienígena, um tipo de O Dia em que a Terra Parou que “chegou aos finalmentes”) e duas fontes muito interessantes.
A primeira, um episódio da série Além da Imaginação chamado The Architects of Fear (exibido em 30 de setembro de 1963), onde um grupo de cientistas, para evitar uma guerra nuclear iminente, forjam uma invasão alienígena a fim de estabelecer um inimigo comum. A outra é o livro A Paz Indesejável (The Report from Iron Mountain ou O Relatório da Montanha de Ferro, escrito por Leonard Lewin e publicado em 1967), que aponta exatamente a mesma coisa só que como se fosse um furo jornalístico, afirmando que isto estava de fato acontecendo nos Estados Unidos. O livro, claro, vendeu muito, mas quando o presidente Lyndon B. Johnson percebeu a comoção geral, fez com que a obra fosse oficialmente difamada e pediu que o autor se retratasse, o que de fato aconteceu, transformando toda a história em um hoax satírico sobre aquela época. Porém, a centelha de “desconversa” ficou plantada na mente da população.
Independente da resolução de seu caso principal, com a lula gigante (inspirada nos contos e mitos de Cthulhu, da obra de H.P. Lovecraft) matando milhões de novaiorquinos, ou a reticência colocada com o Diário de Rorschach no refugo de um jornal, pronto para ser publicado, Watchmen alcançou um nível de solidez em sua construção de ideias que raramente será contestado, mesmo pelos que não gostam da obra. Ao longo dos anos, Watchmen foi amplamente discutido, de teorias da conspiração até teses de Doutorado, ganhando uma adaptação para o cinema, dirigida por Zack Snyder em 2009; uma série-prelúdio em quadrinhos chamada Antes de Watchmen, publicada em 2012; uma minissérie-sequência em quadrinhos chamada O Relógio do Juízo Final (Doomsday Clock), iniciada em 2017 e uma série de TV pela HBO, em 2019. Uma coisa é certa: depois de Watchmen, a Nona Arte nunca mais foi a mesma. Assim como nunca mais foram os mesmos os leitores que chegaram ao final de Watchmen pela primeira vez e, quase sem fôlego e com um enorme incômodo no peito, pensaram: “o que foi isso que eu acabei de ler?“.
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* Alguns exemplos podem ser vistos em obras como A Trilogia Nikopol (iniciada em 1980), A Odisseia da Metamorfose (1980 – 1981), O Incal (1981 – 1988), Camelot 3000 (1982 – 1985), Akira (iniciada em 1982), Marvelman/Miracleman (iniciada em 1982), Martin Mystère (iniciada em 1982), Os Companheiros do Crepúsculo (iniciada em 1984), A Queda de Murdock (1986), O Cavaleiro das Trevas (iniciada em 1986), Maus (iniciada em 1986), Dylan Dog (iniciada em 1986), A Piada Mortal (1988) e Sandman (iniciada em 1989).
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Deixo aqui os meus sinceros agradecimentos ao caríssimo Ritter Fan pelos e-mails trocados enquanto eu escrevia esta crítica, pelas muitas conversas que tivemos sobre a obra e pelas sugestões de acréscimos que me fez. Também agradeço pelo constante incentivo ao longo de todo o processo. Esta crítica — que na verdade é um ensaio — foi a que mais tempo eu demorei para terminar (quase um mês!) e por duas vezes me vi encurralado diante da obra, com tanta coisa para trazer à tona e sem saber exatamente que instrumentos pegar para seguir. Mas lá estava o Ritter para me dar suporte, para zombar de mim, me xingar e falar “termina logo, seu vagabundo, senão eu apago tudo e você vai ter que começar do zero“. Muito obrigado, Gandalf!
Watchmen (Estados Unidos, 1986 – 1987)
Publicação no Brasil: São várias, a primeira, tendo saído pela Abril, em 1989 (edição encadernada) e a última tendo saído pela Panini em 2011 (edição definitiva – 2ª impressão). Esta última citada é a que eu tenho e li para fazer a crítica.
Roteiro: Alan Moore
Arte: Dave Gibbons
Cores: John Higgins
Letras: Dave Gibbons
Capas: Dave Gibbons
456 páginas (edição definitiva da Panini)