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Crítica | Warrior – 1ª Temporada

Muito mais do que apenas rinha de galo.

por Ritter Fan
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Não me lembro o porquê de eu ter parado de assistir Warrior lá pela metade da primeira temporada em idos de 2019, mas eu me lembro bem a razão pela qual eu não retornei à série até agora, 2023: o fato de, neste interregno, eu ter assistido Banshee, obra anterior criada e comandada por Jonathan Tropper que, apesar de muito elogiada em alguns círculos, mal conseguiu passar do nível da mediocridade para mim, não sendo muito mais do que uma sucessão de sequências de sexo e de ultraviolência sem qualquer qualidade especial para além de seu valor de face. Felizmente, porém, Tropper, apesar de manter suas marcas registradas em Warrior, oferece muito mais ao espectador em sua série de artes marciais com pano de fundo histórico baseada em ideias e escritos de ninguém menos do que o mítico Bruce Lee.

A premissa básica de Warrior até pode parecer simples – um lutador de kung-fu chinês que fala inglês fluentemente migra nos anos 1870 para São Francisco, nos EUA, com o objetivo de achar sua irmã mais velha, que teria ido para lá algum tempo antes -, mas ela é extremamente reducionista e, em última análise, muito injusta com a série. Se alguma coisa, o que eu escrevi é, apenas, o gatilho narrativo para ela, já que a história, os personagens e os desenvolvimentos vão muito, mas muito além dele. Aliás, diria que o grande valor da série, que é justamente o que faltou em Banshee (não foi só isso que faltou lá, vale dizer), é haver uma sólida discussão que vai muito além de sua premissa. Não só existe o natural valor de que o pano de fundo da narrativa ser completamente baseada em eventos históricos – os distúrbios na China que levaram à migração em massa de seus habitantes para os EUA, criando enclaves chineses em diversas cidades, notadamente da Costa Oeste e fornecendo mão de obra barata para a expansão do país e que aumentou a animosidade e  o preconceito dos trabalhadores brancos contra os orientais e que geraram facções rivais chamadas “Tongs” que, por sua vez, chegaram a um ponto de ebulição justamente na época em que a obra se passa -, como os temas abordados, especialmente preconceito racial, xenofobia, interesses corporativos, corrupção policial e governamental e efeitos da Guerra Civil que acabara poucos anos antes emprestam sabores especiais a tudo o que é colocado em tela.

Em linhas gerais e mal comparando, o que Tropper faz, aqui, é o que a HBO fez com Roma, série criminalmente cancelada antes do tempo, ou seja, usar personagens fictícios para lidar com eventos que realmente ocorreram. Tudo bem que o uso de personagens fictícios em Warrior é muito maior do que em Roma e nenhum personagem real na série tem o destaque que Júlio César, Marco Antônio ou Cleópatra tiveram. Mas o que realmente importa, nesse contexto, é que, do protagonista Ah Sahm (Andrew Koji), passando pelo Joven Jun (Jason Tobin), filho do chefe da gangue Hop Wei, pela cafetina justiceira Ah Toy (Olivia Cheng), a dupla policial formada pelo irlandês corrupto e viciado em jogo Bill “Big Bill” O’Hara (Kieran Bew) e o jovem sulista certinho e cuidadoso com as investigações, mas que tem um passado sombrio Richard Henry Lee (Tom Weston-Jones), e chegando no violento líder sindical irlandês Dylan Leary (Dean Jagger), na esposa do prefeito que basicamente foi forçada a se casar com ele para salvar os negócios do pai Penelope Blake (Joanna Vanderham) e, claro, na ambiciosa, traiçoeira e manipuladora esposa do líder da gangue Long Zii Mai Ling (Dianne Doan), no igualmente ambicioso, traiçoeiro e manipulador sub-prefeito Walter Franklin Buckley (Langley Kirkwood) e no escorregadio e inteligente intermediador e negociador Wang Chao (Hoon Lee, muito facilmente a melhor coisa de Banshee), isso somente para citar os principais, todos eles são cuidadosamente construídos e desenvolvidos ao longo dos 10 episódios da temporada.

A atenção e cuidado aos personagens é tanta que o próprio Ah Sahm, naturalmente o foco da série por ser o protagonista, compete bravamente – e perde várias vezes, diria – pela história mais interessante. As sequências de luta com ele são excelentes e, por ele canalizar para quase todo o azedume do racismo e da xenofobia que marcam a temporada, é natural que ele chame mais atenção, mas, por outro lado, ele é o personagem que, por ficar perdido em seu propósito logo no primeiro episódio ao descobrir em que sua irmã se transformou, demora a realmente mudar e desenvolver-se e, nesse meio tempo, toda a complexa ciranda narrativa envolvendo os demais personagens que citei já está em pleno e fascinante movimento. E nada é básico e raso, como foi em Banshee. Um exemplo disso é a relação mestre-pupilo entre os policiais O’Hara e Lee que passam a compor a força tarefa para inglês ver responsável por Chinatown. Tudo bem que a estrutura clássica do pareamento hesitante que se torna uma amizade real está bem presente por lá, mas a relação entre os dois vai muito além desse clichê, com um O’Hara que é a encarnação da culpa católica ao não saber equilibrar seu vícios que o leva a decisões terríveis com a responsabilidade que sente pelo que é obrigado a fazer e um Lee que vive um sulista “contra o tipo” que esperamos de alguém criado em uma plantation servida por pessoas escravizadas e que, interessantemente, sofre preconceito justamente por isso e, claro, por representar o sul rebelde que perdeu a guerra.

Outro elemento que merece comenda na série é sua reconstrução de época. Tudo bem que, por medidas orçamentárias naturais, grande parte da ação se dá em espaços confinados ou em cenários externos parcialmente construídos e ampliados com discretas doses de computação gráfica, mas a pesquisa histórica para a recriação de uma São Francisco da segunda metade do século XIX não deixa nada a dever a outras séries passadas em épocas mais ou menos próximas como The Nick ou a recente A Idade Dourada, ambas situadas na outra costa dos EUA, por vezes conseguindo ser superior pela complexidade da geografia de uma cidade grande, mas ainda em franca expansão, e profundamente dividida entre os territórios da população branca e os da população não-branca. Aliás, é particularmente fascinante fazer uma comparação mental entre Warrior e a espetacular Deadwood simplesmente por serem séries que se passam no mesmo país e exatamente na mesma época e que mostram o quase inacreditável abismo civilizatório – por assim dizer – que existia entre duas cidades que, mesmo distantes, compartilhavam dos mesmos tipos de problemas. E essa tremenda qualidade de Warrior é refletida também nos figurinos e nos trabalhos de maquiagem e cabelo que não só respeitam a época, mas também e principalmente as diferenças culturais profundas de uma efervescente São Francisco.

Finalmente, é admirável como Tropper conseguiu navegar bem no que se refere às dificuldades linguísticas. Não havia como uma série americana apoiar-se pesadamente na legendagem para permitir que seus personagens chineses falassem cantonês o tempo todo. Seria impraticável pelas mais diversas razões e não só pela famosa preguiça de muitos em ler palavras formando frases que aparecem na parte inferior da telinha e o showrunner decidiu, então, usar dois mecanismos espertos para não deixar o cantonês de lado completamente. O primeiro deles é estabelecer a “mudança” de língua para o inglês em diálogos entre chineses por meio de um simples, mas bem indicativo movimento de câmera e o segundo é usar pontos de vista diferentes para diálogos que são travados em um ambiente em que chineses não entendem o inglês e americanos não entendem o cantonês, algo que, por exemplo, é a regra, até certo ponto, no episódio “puro faroeste” que marca a metade da temporada em que Ah Sahm e Jovem Jun precisam enfrentar bandidos em um entreposto em Nevada. Com isso, a série ganha em respeito à língua em tese dominante na história e, claro, em autenticidade, sem que, no processo, seu alcance em relação ao público em geral seja afetado de maneira significativa.

A primeira temporada de Warrior é um sensacional mix de lições de história valiosas e infelizmente de fácil transposição para dias atuais com uma narrativa fictícia que nunca sacrifica seus personagens com abordagens rasas e idiotizantes meramente focadas em sexo e pancadaria. Há muito para absorver ao longo dos episódios e, quando o sexo e a pancadaria inevitavelmente vêm, eles servem à história, mas nunca a determinam, com o bônus de as coreografias de luta – sejam elas marciais, de boxe ou “de bar” – serem um agradabilíssimo espetáculo à parte.

Warrior – 1ª Temporada (EUA, de 05 de abril a 07 de junho de 2019)
Desenvolvimento e showrunner: Jonathan Tropper (baseado em ideias e escritos de Bruce Lee)
Direção: Assaf Bernstein, Loni Peristere, David Petrarca, Kevin Tancharoen, Lin Oeding
Roteiro: Jonathan Tropper, Adam Targum, Kenneth Lin, Evan Endicott, Josh Stoddard, Brad Caleb Kane
Elenco: Andrew Koji, Olivia Cheng, Jason Tobin, Dianne Doan, Kieran Bew, Dean Jagger, Joanna Vanderham, Tom Weston-Jones, Hoon Lee, Langley Kirkwood, Christian McKay, Perry Yung, Joe Taslim, Rich Ting, Henry Yuk, Graham Hopkins, Kenneth Fok, Emily Child, Brendan Sean Murray, Christiaan Schoombie, C. S. Lee, Erica Wessels, Andrew Stock, Rachel Colwell, Patrick Baladi, Dustin Nguyen, Frank Rautenbach, David Butler
Duração: 480 min. (10 episódios)

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