Embora muitos artistas e intelectuais tenham se aproximado ou até feito parte do regime nazista, tal como os compositores Carl Orff e Richard Strauss e o filósofo Martin Heidegger, curiosamente nenhum nome do mundo das artes e da cultura permanece tão ligado ao nazismo como o de Richard Wagner. Episódios profundamente infelizes, como o ocorrido recentemente no Brasil, em que o ex-secretário de Cultura proferiu um discurso com citação de Josef Goebbels e impulsionado pela abertura da ópera Lohengrin, do notório compositor alemão, contribuem para que a sua imagem não se descole mais do Terceiro Reich. É óbvio que o motivo original e maior para isso era a adoração suprema de Adolf Hitler pela música de Wagner. Mas a extrapolação disso volta e meia chega ao ponto de chamar o compositor romântico de “músico nazista”, algo completamente absurdo, já que Richard Wagner morreu antes do nascimento de Hitler e, embora tenha sim diversos escritos antissemitas, jamais defendera o extermínio de quem quer que seja.
A dificuldade se separar o homem de sua obra permanece. Que o diga o regente argentino e descendente de judeus, Daniel Baremboim, que enfureceu a plateia ao executar Wagner em Israel. Em suas palavras, se querem mesmo banir o alemão das salas de concerto naquele país, deveriam banir também os carros da Mercedes Benz – reconhecidamente os prediletos do Führer. É nesse contexto difícil e árido que escolhi uma das melhores gravações já realizadas da música de Wagner (essencialmente operística) para essa crítica. Como forma de celebrar sua música, independente de seus erros como homem e de todas as extrapolações que o conectam diretamente ao regime nazista. Refiro-me ao registro de alguns dos prelúdios e aberturas mais notáveis da obra wagneriana, feito pelo regente austríaco Karl Böhm à frente da Filarmônica de Viena e lançado pelo selo Deutsche Grammophon no ano de 1997. Antes de mais nada, um excelente disco para um primeiro contato com a música de Richard Wagner.
A gravação inicia-se com a abertura da ópera Rienzi. A interpretação de Böhn é uma das mais cheias de colorido orquestral que já ouvi. Destaca-se a doçura do canto dos violinos, anunciando o tema que a posteriori será a famosa prece do protagonista, mas principalmente a pujança dos metais. Os trompetistas e trombonistas comandados pelo lendário regente imprimem vigor único às passagens mais tempestuosas da peça, desde o segundo tema (a ser cantado depois pelo povo de Rienzi em louvor ao protagonista) até o seu final majestoso. Böhm nos permite ouvir o canto dos metais sem que nossos ouvidos percam nada do contraponto nas cordas, extremamente ágeis na execução das escalas e na reiteração dos temas. O disco segue a todo vapor com a abertura de O Navio Fantasma, em que as madeiras tomam para si o protagonismo, mas depois o dividem com os metais, que conservam a mesma força que exibiam na peça anterior. Aqui, os matizes de Böhm são essencialmente mais sombrios e algo melancólicos também. A delicadeza na exposição dos temas surpreende.
Avançando um pouco mais, encontramos a abertura de Tannhäuser – uma das mais apreciadas na história das óperas. A interpretação de Karl Böhm é definitiva. Mescla com doses perfeitas a força nos tutti orquestrais e o drama nas passagens mais líricas, com os temas sendo repetidos pelas trompas e pelos violencelos. Os pianissimos inigualáveis que os músicos alcançam na seção final, em que os metais cantam com poder total o tema principal, enquanto as cordas executam breves escalas descendentes em moto perpetuo, dão quase que a impressão de estarmos ouvindo a uma série de glissandos. A limpeza na execução dos músicos em todas as passagens e a clareza pujante de todas as vozes que se entrecruzam nessa interpretação de um dos mestres em Wagner faz dessa uma das grandes gravações de todos os tempos, sem dúvidas. O brilhante registro do regente austríaco é concluído com uma série de peças mais delicadas, à exceção do Prelúdio do Ato 3 de Lohengrin, em que se sobressai o canto heroico dos trombones. Nas outras duas – os Prelúdios do Ato 1 de Lohengrin e de Parsifal, exploram-se os timbres mais agudos da orquestra e suas texturas mais afáveis e elegantes.
É interessante inclusive notar que esse maravilhoso compilado começa com Rienzi e termina com Parsifal (a última ópera do compositor), ofertando um apanhado geral da obra wagneriana em ordem cronológica. Entristece sim pensar que muitos desses acordes e desses temas foram executados nos campos de concentração, enquanto os prisioneiros eram levados à morte da forma mais ignóbil. Mas ouvindo a gravações desse porte e de obras com tamanha beleza, podemos pensar que a mesma música, cujo sentido fora pervertido para os fins mais nefastos, pode também devolver aos homens a humanidade que perderam. A música de Wagner não pode ser circunscrita a um só tempo ou a apenas uma de suas tristes serventias. Nunca é demais lembrar: apenas o nazismo sucumbiu há 75 anos. Felizmente, Wagner não.
Wagner: Aberturas e Prelúdios
Artista: Karl Böhm e Orquestra Filarmônica de Viena
Lançamento: 1997
Selo: Deutsche Grammophon
Estilo: música erudita