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Crítica | Vozes e Vultos

por Ritter Fan
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Vozes e Vultos, mais recente trabalho da dupla de diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini, do ótimo Anti-Herói Americano, parece ser constituído de dois filmes, o primeiro um interessante suspense sobrenatural que ocupa algo como dois terços da projeção e o segundo um negócio estranho e apressado que pega tudo o que até então estava funcionando e estilhaça em mil pedaços, não deixando nada que preste. É como um filme autodestrutivo, lembrando muito aquelas mensagens da clássica franquia televisiva e cinematográfica Missão: Impossível que se apagam automaticamente das mais variadas e espetaculares maneiras.

Baseado em romance de 2016 de Elizabeth Brundage o roteiro, também escrito pelos diretores, situa o longa em 1980, começando pelo final com um homem chegando em sua garagem e percebendo sangue pingando em seu para-brisa e, ato contínuo, rebobinando a fita para meses antes, com a família Claire mudando-se para a bucólica região do Vale do Hudson porque George (James Norton) consegue uma posição de professor em uma faculdade pequena na cidadezinha de Chosen, levando sua esposa, a restauradora de arte Catherine (Amanda Seyfried) e a filhinha deles Franny (Ana Sophia Heger) a tiracolo. O interessante da história é como o sobrenatural é transformado em natural, sem que a narrativa pese com mistérios fantasmagóricos insolúveis e surpreendentes, abrindo espaço para que as lentes se virem para o relacionamento do casal que também não começa a degringolar.

Com essa escolha narrativa, os elementos inexplicáveis tornam-se pano de fundo para uma história muito mais interessante em primeiro plano, uma história que já vimos tantas vezes por aí, mas é que é sempre importante relembrar, do marido abusivo – aqui não violento, porém – e da mulher que se vê em um labirinto de onde não tem forças para sair. Há, sob diversos aspectos, um quê de O Iluminado no longa, ainda que nem de longe com a sofisticação de Stanley Kubrick, mas com suficiente eficiência, muito graças às atuações de Seyfried e de Norton, acompanhados, claro, pelas sempre marcantes presenças de F. Murray Abraham e Rhea Seehorn, para prender o espectador ao desenrolar da trama.

No entanto, quando o longa parece alcançar seu ponto climático, ele também começa a mostrar problemas em sua costura, revelando buracos e esgarçamentos que até talvez estivessem lá o tempo todo, mas que só ficam mesmo mais à mostra no terço final, quando há o encaixe de subtramas e a obra parece então caminhar para um desfecho lógico. O problema é que o desfecho lógico tem a sutileza do proverbial elefante em loja de louças, conseguindo lembrar muito Revelação, de Robert Zemeckis, mas com substancialmente menos qualidade. Todas as menções a correntes artísticas, que perpassam todo o longa, passam a ser derramadas indiscriminadamente como se um pintor decidisse, no meio de sua criação, trocar delicados pincéis por baldes de tinta sendo atirados na tela com violência. Sai toda a construção de atmosfera que o elenco e a direção de arte foram capazes de fazer e entra a bobajada padrão de um thriller sobrenatural comum que já vimos um milhão de vezes antes.

E o pior é que não precisava muito para o longa acabar bem. Estava tudo lá. Um casal interessante com problemas mundanos relacionáveis, uma narrativa sobrenatural que, apesar de não ser a coisa mais original do mundo, tinha sustentação e conversava com a narrativa no mundo real e um elenco de qualidade para manter a coesão necessária. Pelo visto, porém, Berman e Pulcini sentiram compulsão por fazer algo bombástico e, para isso, começaram a redirecionar o roteiro para um caminho diferente, quebrando as tramas estabelecidas e as histórias envolvendo a casa para aonde os Claire se mudaram, de maneira a alcançar um resultado que mais parece uma peça quadrada sendo encaixado a força em uma forma triangular em um daqueles brinquedos de maternal.

Com isso, o um terço final sobrepuja-se aos dois terços iniciais e fazem o filme todo naufragar sob o peso dos devaneios dos diretores/roteiristas que, pelo visto, desaprenderam seu ofício ao longo dos anos. Vozes e Vultos mostra grande potencial apenas para ter sua voz apagada quase que completamente, tornando-se um vulto cinematográfico que nem com muita boa vontade será lembrado depois que os créditos começarem a subir.

Vozes e Vultos (Things Heard & Seen – EUA, 29 de abril de 2021)
Direção: Shari Springer Berman, Robert Pulcini
Roteiro: Shari Springer Berman, Robert Pulcini (baseado em romance de Elizabeth Brundage)
Elenco: Amanda Seyfried, James Norton, Natalia Dyer, Alex Neustaedter, Rhea Seehorn, Michael O’Keefe, Karen Allen, Jack Gore, F. Murray Abraham, Emily Dorsch, Ana Sophia Heger
Duração: 121 min.

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