No final de 2022, as licenças da IDW Publishing para produzir e publicar quadrinhos das principais propriedades da Hasbro – Transformers e G.I. Joe – expiraram e não foram renovadas depois de 19 e 16 anos respectivamente, o que deve ter sido um baque para editora semelhante ao que a Dark Horse Comics sofreu depois que a Disney comprou a Fox e retirou Star Wars, Alien e Predador de lá. Naturalmente, licenças cobiçadas como essas não ficariam sem “dono” por muito tempo e, já no primeiro semestre de 2023, a Skybound Entertainment, a mais do que bem-sucedida empresa multiplataforma de Robert Kirkman dentro da Image Comics, responsável por The Walking Dead e Invencível, além de, mais recentemente, propriedades licenciadas como os Monstros da Universal, anunciou suas aquisições e o início do que não demorou a batizar de Universo Energon.
Sim, mais um universo compartilhado, ainda que a reunião de Transformers e G.I. Joe nos quadrinhos não seja uma grande novidade, por já ter acontecido antes na forma de crossovers. Mas, agora, o plano parece mais ambicioso, de certa maneira refletindo o que deve acontecer no audiovisual considerando a cena pós-créditos de O Despertar das Feras. O conceito do Universo Energon, porém, conta com uma criação inédita que serve de introdução a ele e, ao que tudo indica, de cola narrativa. Trata-se justamente de Void Rivals, HQ escrita pelo próprio Kirkman que apresenta novos personagens e novos conceitos e, de quebra, para surpresa de absolutamente ninguém, já na primeira edição faz com que Jetfire surja quase que completamente do nada depois de permanecer dormente por milhões de anos em um cometa. Mas a presença deste querido Autobot não é o único elemento da mitologia de Transformers que é usado ao longo das seis primeiras edições que formam o primeiro volume ou arco, ainda que o foco mesmo desse início seja nos inimigos mortais Darak, um piloto agorriano, e Solila, um piloto e guerreira zertoniana que, depois de uma batalha, acabam tendo que trabalhar juntos para sobreviver no tal cometa.
A premissa do arco inicial pode ser encarada como uma junção da pegada intimista do filme oitentista Inimigo Meu com a abordagem expansiva e criadora de universo da HQ Saga, da própria Image Comics, com os dois protagonistas tendo que deixar de lado sua inimizade ancestral originada de uma guerra entre seus povos cuja causa efetiva se perdeu e que remonta ao tempo em que seus planetas, que orbitavam uma estrela moribunda, foram desmantelados para a construção de um anel ao redor da singularidade resultante para tentarem fundir as tecnologias do que sobrou de suas naves para retornar às suas respectivas metades do chamado Anel Sagrado. Ao longo do isolamento dos dois que, infelizmente, não dura muito, aprendemos que Darak, que faz uso de uma luva cibernética altamente inteligente que até conversa com ele (batizada de Handroid, ha, ha, ha), é um dos melhores pilotos agorrianos e filho de um dos líderes de lá, enquanto que Solila se revela como bem mais que apenas um piloto, sendo efetivamente uma guerreira extremamente bem treinada que usa uma lança que funciona de maneira semelhante à flecha de Yondu, só que sem o assobio, além de fazer parte de um misterioso grupo de mulheres que não me parecem lá muito diferentes das Bene Gesserit.
Naturalmente, os dois se aproximam – ainda que não romaticamente pelo momento -, Darak inexplicável e convenientemente tem uma visão sobre a verdade sobre o Anel Sagrado que ele compartilha com Solila e eles acabam conseguindo escapar do cometa, somente para encontrar um obstáculo pelo meio do caminho que reforça ainda mais a mitologia relacionada aos Transformers (ainda que eles não façam ideia de quem são os Transformers) e, depois, finalmente chegam aos seus lares somente para se depararem com complicações muito maiores já que os regentes de cada metade do anel trabalham para manter a guerra em andamento em um daqueles clichês já cansados do gênero, mas que, dependendo de como a coisa caminhar, poderá gerar frutos interessantes.
O caráter introdutório deste primeiro volume é inevitável e completamente esperado. A mitologia do Arco Sagrado mostrada nesse início ainda é bem pobre e simplista e é uma pena que Kirkman defenestre muito rapidamente a permanência da dupla no cometa perdido, pois havia muito mais a ser explorado nessa dinâmica. A presença de Jetfire e outros personagens da franquia Transformers não é lá muito orgânica, parecendo justamente o que é: de um lado uma maneira de dar mais importância a Void Rivals como HQ introdutória para o Universo Energon e, de outro, um conceito forçado que parece ter sido a fagulha para a criação de Void Rivals e não o contrário. Em outras palavras, pelo menos neste primeiro arco, tudo relacionado a Darak e Solila parece contar uma história e tudo relacionado aos Transformers parece contar outra bem diferente, sem nenhuma convergência que não pareça “socada” ali.
A arte de Lorenzo de Felici, que repete sua parceria de Oblivion Song com Kirkman, é eficiente na forma como visualmente conta a história e como faz a progressão dos quadros. Há um quê de “traços inacabados” que torna tudo mais bonito e dinâmico e os designs dos personagens centrais, apesar de não particularmente originais ou diferentes, cumprem sua função de criar curiosidade e empatia com o leitor, mesmo quando os dois estão de capacete (pois uma lei ancestral os impede de tirar seus capacetes quando diante do inimigo – ecos de The Mandalorian alguém?). Os detalhes visuais do Arco Sagrado são mais… cansados, diria, mais do tipo padrão que vemos em tantos outros quadrinhos de ficção científica, mesmo que, claro, ainda estejamos no começo e não houve ainda espaço efetivo para maiores arroubos criativos.
Sabendo que Kirkman gosta de jogar um jogo calmamente protraído no tempo, é perfeitamente compreensível encarar esse primeiro volume de Void Rivals como apenas uma sementinha que ainda sequer germinou para além da apresentação dos robôs gigantes que se transformam em uma variedade de coisas, normalmente meios de transporte. Fica a esperança, portanto, de que as aventuras dos (não tão) rivais Darak e Solila ganharão mais complexidade e mais vida e que a mitologia relacionada a eles não só passará a ser mais interessante, como as inevitáveis conexões com a mitologia dos Transformers ganhará em organicidade e fluidez.
Obs: Para quem tiver curiosidade, no momento da presente crítica, o Universo Energon é composto das HQs mensais Void Rivals e Transformers no lado dos Transformers e das minisséries Duke e Cobra Commander, com outras duas minisséries, Scarlett e Destro, tendo sido anunciadas no lado de G.I. Joe. A HQ mensal G.I. Joe – A Real American Hero, escrita pelo lendário Larry Hama e publicada também pela Skybound/Image, não faz parte desse universo compartilhado – pelo menos não por enquanto – e, ao que tudo indica, considerando a manutenção da numeração original (o primeiro arco dessa nova fase começa no #301), continua as histórias oriundas da IDW. Pode ser um pouco confuso, mas creio que essa escolha faça parte do acordo com a Hasbro e talvez beneficie os leitores de longa data que podem não querer saber de recomeços.
Void Rivals – Vol. 1 (EUA – 2023)
Contendo: Void Rivals #1 a 6
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Lorenzo de Felici
Cores: Matheus Lopes
Letras: Rus Wooton
Editoria: Sean Mackiewicz, Jonathan Manning
Editora original: Skybound (Image Comics)
Data original de publicação: 14 de junho, 19 de julho, 16 de agosto, 27 de setembro, 25 de outubro e 22 de novembro de 2023
Páginas: 149