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Crítica | Viver a Vida (1962)

por Laisa Lima
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As impossibilidades presentes nas escolhas da vida são, definitivamente, empecilhos para a felicidade. Na prática, quem está à mercê do fluxo corrente de sua existência está sujeito a uma realidade infeliz devido a uma conformação, o que vale também para o contrário: a seleção de alguns caminhos não desejados levam, fatidicamente, até a insatisfação. Foi o que aconteceu em Para Sempre Lilya (Lukas Moodysson, 2002), no qual Lilya se viu sem saída em um beco cheio de frustrações, acabando como prostituta. E assim foi com Nana (Anna Karina) de Viver a Vida (Jean-Luc Godard, 1962); a falta de flexibilidade em seu destino a direcionou para um viver divisor de seu próprio corpo. E vida nesse rumo não se faz fácil.

Godard revela em Nana, a protagonista, feita por sua pupila Anna Karina, uma juventude perdida em seu próprio caminho. Para exemplificar isso, a personagem representa uma série de desilusões, principalmente na busca por seu sonho de ser atriz, como o rompimento do casamento, o afastamento do filho, o trabalho insuficiente para o pagamento do aluguel de seu apartamento, e o fracasso em sua respectiva carreira. Sem horizonte nenhum, a jovem cede a uma oportunidade que mais tarde pode ser vista como falha: a de se prostituir. Desde sua resposta afirmativa para a entrada em um universo por ela desconhecido e por uma sociedade inteira desvalorizado, o da prostituição, as figuras que aparecem no filme completam o estrelismo de Anna e as alternativas restritas de sua Nana, intensificando a ideia da dificuldade de se concretizar uma ambição e de acesso a jovem, exibida primeiramente de maneira parcial, nunca frontal.

A reflexão em Viver a Vida começa logo em seu início. Os diversos ângulos fechados no rosto da protagonista não deixam de ser prólogos que expõem a importância daquela mulher para o longa-metragem. E quem é ela? Diante da tela, 12 capítulos a princípio aleatórios mas cronologicamente ligados, auxiliam na descoberta da personalidade e dos princípios de Nana, que pouco se entende e se faz entender. É notória sua determinação, mas não é clara a forma com que a jovem chegará nela, transformando-a em vítima das fatalidades e, ao mesmo tempo, colhedora delas. A contemplação da condição humana, então, é o guia condutor da experiência do público, imergido em um emaranhado de episódios cada vez mais catastróficos nos quais os desejos de Nana estão e não estão em primeiro plano. O esquecimento destas vontades e o maior foco na validação do que a personagem está optando para si, acaba sendo um ponto de dúvida e avaliação, trazendo o julgamento de certo ou errado em frente as preferências que implicam no bem-estar da personagem. 

Anna Karina se distancia de Nana para dar à jovem um protagonismo sem mesclagem com o brilho da atriz, fazendo da protagonista possuidora de uma postura adotada por alguém que a melancolia sobrepõe a gana de realizar-se, indagando tudo que parece sem nexo. Até Paul (André S. Labarthe), um sopro de esperança de sua afeição por alguém e seu ex-marido, é ultrapassado por um retorno imediato financeiro visto em Raoul (Sady Rebbot), promissor nas primeiras aparições – em que se dizia relacionado a profissão de Nana – porém, mais tarde, reforçador das misérias da moça. Os envolvidos na trama, por isso, exalam uma descrença na efetiva corporização de aspirações maiores que a realidade ali manifestada, e a perseguição por uma vida mais satisfatória, de nada adianta em um meio no qual o menosprezo (direcionado com maior preconceito ao sexo feminino) dita a direção a se seguir.

Como precursor da Nouvelle Vague, Jean-Luc Godard, em seu terceiro filme, freia seus jump-cuts e aterrissa em um longa-metragem que faz pensar. Pensar não só sobre uma das temáticas mais polêmicas, a prostituição, mas igualmente sobre a dureza das rotas existentes em uma cidade urbana para os que almejam alguns sonhos, que podem ser tornar presas ao factual como o concreto é fixado no chão. O cineasta, com sua câmera que transita entre os estáticos planos fechados nos rostos dos atores e os movimentos retos em travelling que unem os cenários aos personagens, utiliza do roteiro para a confecção do descrédito. O Filósofo (Brice Parain), por exemplo, mune o filme com alguns dos diálogos mais inspirados, dissertando sobre o amor e suas consequências. Dentre outros artifícios, o estilo de Godard traz a filosofia necessária para a realista visitação do psicológico dos seres humanos. 

Embora as palavras de Nana para sua amiga Yvette (Guylaine Schlumberger) indiquem sua responsabilidade para com os acontecimentos em sua vida, certas imposições vão além da opção alheia. Como Viver a Vida quis explicar em seus 83 minutos, o verdadeiro cumprimento de suas predileções vem por intermédio da liberdade, inalcançável se não houver o desprendimento das frustrações de idealizações não cumpridas. E Godard, mediante um conciso estudo e construção de uma narrativa fácil, ágil e extremamente reflexiva, conseguiu atingir um estado pensativo do espectador ao redor de suas chances perdidas e do real significado das ações no filme. Com falas metalinguísticas inerentes a acomodação em uma existência pífia e a questionamentos filosóficos sobre isso, todos os pontos da obra se voltam para o intuito dela, significando que este foi atingido sem hesitação. Portanto, aqui Godard fez o árduo trabalho de reflexão; sobre a obra, sobre a Nouvelle Vague, mas, essencialmente, sobre ser feliz.

Viver a Vida (Vivre Sa Vie) — França, 1962
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Anna Karina, Sady Rebbot, André S. Labarthe, Guylaine Schlumberger, Gérard Hoffman, Monique Messine, Paul Pavel, Dimitri Dineff, Peter Kassovitz, Eric Schlumberger, Brice Parain, Henri Attal, Gilles Quéant, Odile Geoffroy, Marcel Charton, Jack Florency
Duração: 83 minutos

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