A nossa vida pode ser abreviada a qualquer momento. – Ana Heloysa, durante o lançamento ao vivo de VIVENTE.
Quanta vida cabe no tempo? Esta é uma pergunta que a cantora principal do álbum VIVENTE, Ana Heloysa, nos faz. Em meio às consequências da pandemia do Covid-19, quando se pensou muito sobre a morte e o encerramento abrupto da vida, o tempo da eternidade é trazido nas músicas, um legado hebraico para o reboot cristão, algo tão bem trabalhado pelo filósofo Agostinho de Hipona – que Ana Heloysa até já cantou em Canção de Agostinho no seu álbum anterior, o primeiro, Canções Peregrinas. Assim, o relógio que aborda a todos é o curso de abrangência geral desse projeto do Coletivo Candiero, ainda que tenha um recorte muito pessoal.
A temática da vida e do tempo custa uma vivência indeterminada. Essa indeterminação existe pela experiência pessoal dos artistas. Logo, é inevitável que a pessoalidade cerque cada canção de VIVENTE, mesmo que haja um ponto mais ousado de Ana Heloysa de alcançar novos ares, que não seja evangelístico – como o single O Caminho e o Guia – ou um fronte nordestino da terra memorialística – como o projeto inicial de carreira. O ar desse novo álbum é semelhante ao relógio que inicia a primeira faixa, Acordando, martelando um som atmosférico e temático. A atmosfera sublime de uma direção para alguma eternidade divina, e o tema é a própria vivência ainda à parte disso, mas na mesma direção.
Tom Estranho, a verdadeira abertura do disco, acomoda isso muito bem. Com back vocal marcante entre tempos da letra e um acompanhamento perto do pop – algo que vai se repetir no disco -, o sublime aparece entrar em justa medida com o anseio temático do eu lírico que se autodenomina dissonante. Conhecedora da Psicologia, Ana Heloysa busca trabalhar as emoções iniciais do disco com ajustes finos, como uma terapia que demanda tempo próprio. Pedido, a faixa seguinte, não poderia ser mais engajante com essa proposta da abertura. O anseio pelo eterno se torna mais vertical na letra, enquanto as dúvidas quanto a vivência com o tempo ficam mais claras: “eu não sei contar as horas e nem os dias dessa curta lida”. Desse jeito, Tom Estranho e Pedido são quase músicas gêmeas pelo objetivo musical, mesmo tendo frequências diferentes com suas demarcações melódicas de back vocal.
Feita a introdução perfeita, o martelo sonoro do relógio se finca com Dois Castelos, porque determina a certeza do eu lírico, a experiência de Ana Heloysa continuar: “eu vou seguir”. Em vez do martelo do relógio, pode-se colocar a metáfora de Lutero pregando as 95 teses na porta da igreja, em vista da referência ao hino Castelo Forte feito pelo Reformador. Independente disso, Dois Castelos sustenta e finda uma base temática e atmosférica. Num exercício simples, ouça Tom Estranho e pule para Fim. Ou depois de ouvir Dois Castelos vá até a última faixa. Sem ouvir boa parte do disco, cimenta-se bem a proposta do álbum. Feito esse exercício de passear pela lista de faixas, há uma qualidade e um defeito que pode ser revelado.
A qualidade é que a finalização do disco é assertiva nos extremos, harmonizando o tema da vivência do tempo, a eternidade e o divino, junto à atmosfera musical, com a leveza da voz de Ana Heloysa transpassando notas mais altas do pop e criando uma climatização do sublime em meio às dúvidas da vida humana. Porém, a busca da cantora por novos ares e a indeterminação da experiência vivente, o custo e o crédito para a inspiração artística, vai criando baixas no disco. Algumas faixas se tornam dispensáveis, seja por tornar a atmosfera ficar repetitiva, ou a temática dos ajustes da terapia se tornar espaçada e difusa, mesmo que simplificadamente unida. Abre o Teu Peito é a representação disso. A bossa nova/samba, cantada com Yvens Damasceno, dão uma freada no seguimento do álbum, mesmo que ainda represente bem a experiência da missionária com Deus – tematizando com o tempo eterno e a falta de pressa citada em Fim.
O mesmo acontece com Olha(Alí) e Labirinto (O da Crise de Ansiedade). Uma parte para uma vereda mais gospel doada por Marco Telles, líder do Coletivo Candiero, enquanto a outra parece prever um final do disco antecipado, deslocada entre as faixas. Ambas seguem a proposta de mais guitarra, da atmosfera que Heloysa encontra para diferenciar seu novo trabalho. Mesmo com Marco cantando, pontuando a faixa como adicional teológico para o tema de Ana, e Labirinto sendo facilmente identificável com a experiência do ouvinte com os sentimentos de ansiedade que a cantora passou como eu lírico e na vida, o que estende o disco para algo semelhante a um Deluxe, mesmo sem sê-lo.
Talvez a possibilidade da busca pela diferenciação frente aos trabalhos anteriores, ou até mesmo a inclusão mais afirmativa da participação do Candiero com esse álbum migre o autoral para um cenário que desloque as experiências específicas tão marcantes de Ana. Todavia, como explicar a excelência da regravação de Muralhas, de Stênio Marcius, mestre da música cristã brasileira? Muralhas, felizmente, é o encaixe perfeito com o tema e atmosfera de VIVENTE, além de demonstrar indubitavelmente o poder único da voz de Ana Heloysa. O produtor do disco, Daniel Alves, juntamente com Ana, simplificou a estrutura da poesia e da partitura de Stênio, sobrando o sublime e o eterno para o disco reproduzir. A letra fala da eternidade da infância à vida adulta, e ao mesmo tempo é muito íntima, apesar de ter uma melodia metrificada com um toque jazz pop – gênero que a princípio prioriza o improviso do compositor original, mas é utilizado para organizar a originalidade de Stênio, algo que é impossível de imitar. Não à toa, esta foi a faixa mais ouvida do disco no lançamento, pois é um “complexo simplificado” com louvor.
E o que falar das canções Ensimesmo e Canção de Ninar? Dentro da lógica de argumento deste texto, Ensimesmo, cantada junto com Midian Nascimento, poderia pertencer a um Deluxe – que VIVENTE mereceria, mesmo sendo bastante caro de fazer -; e Canção de Ninar, cantado com Catarina Von Bora, se assemelha muito a um epílogo de disco, após um Fim tão marcante com a frase do missionário C. T Studd: “Apenas uma vida, logo passará. Apenas o que foi feito por Cristo permanecerá”. Apesar disso, de maneira alguma o disco fica ruim, nem perto disso. O projeto de martelar a temática, “gospelizar” no processo para direcionar sobre qual eternidade se fala, e fazer um “tic tac” com a atmosfera musical, fica como a experiência humana na vida realmente é: indeterminada.
Quanto cabe de música em um disco? Talvez seja uma pergunta retórica que vai variar os sentimentos dos ouvintes. Ao mesmo tempo, é bom ver Ana Heloysa amadurecendo, produzindo um disco robusto. Talvez por isso o caso de Ensimesmo fuja da lógica Deluxe, porque afunila o tema do tempo com coisas ordinárias – como tempo no celular e a vivência com o ensimesmar – e a atmosfera se torna mais direta – com alguns toques de R&B na faixa. Já Canção de Ninar, baseada em um salmo bíblico, é o outro extremo de Ensimesmo, em tema e som. E sim, a qualidade do disco é saber conectar tão bem o seu início com o fim, as extremidades. E essas duas faixas parecem completar isso.
VIVENTE é um bom álbum, especialmente para quem sente falta de ouvir algo semelhante a Sandy, Tory Kelly, com várias outras influências do rock e da brasilidade cancioneira. Para quem começou com Canções Peregrinas, contando experiências preciosas de missões evangelísticas e com carinho pelo Nordeste, esse novo passo de Ana Heloysa, seja compartilhando sua música ainda mais com o Candiero, e propondo cada vez mais referências misturadas com suas experiências temáticas, mostra a boa qualidade e o bom alcance que músicas cristãs merecem.
Agradeço a três amigas que me ajudaram a conhecer o trabalho de Ana Heloysa: Mariana, Ester e Giselle. Grato em especial por Giselle me ajudar a apreciar a faixa Fim desse disco.
Aumenta!: Ensimesmo
Diminui!: Olha (Alí)
Minha Canção Favorita do Álbum: Muralhas
VIVENTE
Artista: Ana Heloysa
País: Brasil
Lançamento: 25 de maio de 2021
Gravadora: Coletivo Candiero
Estilo: Pop, Rock