Depois do existencialista, trágico e divertido Cassino Royale, no qual Ian Fleming apresenta James Bond como um espião falho e “humanizado”, divergindo bastante do que é visto nas adaptações do personagem, o autor continuou sua célebre série literária com Viva e Deixe Morrer, uma obra que mantém o estilo realista visto nas batalhas de baccarat do primeiro livro, mas que assume uma história mais aventureira e megalomaníaca, bem próximo do que estamos acostumados com a franquia cinematográfica do 007.
Bond é enviado aos EUA para um trabalho em conjunto com a CIA e o FBI, em relação a várias moedas de ouro que estão surgindo no mercado americano, que os serviços de espionagem acreditam datar do século 17, como parte do tesouro perdido do pirata Morgan, o Sanguinário. A inteligência do Serviço Secreto Britânico supõe que o tesouro está sendo usado para financiar o comunismo nos EUA, e que as moedas de ouro estão sendo contrabandeadas de uma ilha jamaicana para a Flórida pelo Mr. Big, um poderoso gângster do Harlem, que também é o líder de um culto voodoo e membro da SMERSH, organização espiã soviética que antagoniza Bond no primeiro livro.
A premissa é simplesmente sensacional, e Ian faz um belíssimo trabalho introdutório à missão. Primeiro que sua bagagem como espião é muito bem vista na maneira que o autor constrói o contexto político e histórico da Guerra Fria, mas, aqui, foge um pouquinho da rixa capitalismo x comunismo, e trabalha mais o relacionamento entre Estados Unidos e Reino Unido. Além de que o serviço conjunto das agências, novamente respaldado por experiências reais de Ian, oferece um interessante olhar ao leigo sobre os funcionamentos e abordagem de cada agência de segurança. Há um certo cinismo dos britânicos, um patriotismo do FBI e a moralidade dúbia da CIA, e o fato do autor trazer Felix novamente, deixa a dinâmica entre os diferentes Serviços Secretos ainda mais divertida.
Outro ponto alto do livro – o meu favorito, aliás – é o vilão Mr. Big, que diferente de um Le Chiffre, que exerce seu antagonismo de um jeito mais mental e lógico com o jogo de cartas, o gângster assume características mais comuns de um vilão de Bond, maligno, impactante e, aqui, até místico. Seus subalternos e seguidores veem Mr. Big como uma reencarnação do zumbi vodu Barão Samedi, um espírito extremamente temido na religião vodu haitiana. E essa presença do antagonista é sentida durante toda a leitura, num exercício criminal e sobrenatural de Ian na caracterização do personagem, o que realmente engrandece a atmosfera e o nível de periculosidade da missão, pois a prosa muitas vezes poética do autor cria uma macabra influência do gângster na narrativa.
O grande problema da obra reside no desenvolvimento dos ótimos elementos iniciais, pois o escritor se envereda num estranho caminho para o arco de Bond e na ambientação da aventura. Toda a construção intimista do protagonista em Cassino Royale é jogada pela janela, com o personagem assumindo por completo seu papel de super masculinidade, já somado ao seu relacionamento com a bond girl da vez, Solitaire, uma mulher descaracterizada de qualquer traço interessante visto em Vesper Lynd no primeiro livro, sendo sua típica interesse romântico meio burrinha, descartável e esquecível. E o próprio Ian tem um abordagem, mesmo pensando no contexto dos anos 50, bastante misógina e racista na descrição de mulheres e negros, que, com exceção de Mr. Big, são receptáculos de péssimos estereótipos preconceituosos que realmente provocam desconforto no leitor.
Ainda que esses diálogos sejam “passáveis” pelo contexto do período e tudo mais, e também não atrapalham a narrativa em si, é um tanto estranho a abordagem de Ian, que já no primeiro livro tinha esses problemas em menor tamanho. Além desse quesito, o autor regredi no ritmo das aventuras do 007, pois enamora-se enfadonhamente com as paisagens do Caribe em longos parágrafos sobre a cor da folha da bananeira da praia melancólica. Isso retira o leitor da atmosfera constantemente, e o fato de Mr. Big, de longe o melhor personagem da obra, ter poucos segmentos na história, tornam a experiência de Viva e Deixe Morrer um tanto quanto chata.
Felizmente, o teor mais megalomaníaco da ação consegue manter a narrativa com boa qualidade, dispondo de várias sequências divertidas de SCUBA Diving, cenas de escapismos marítimos e perseguições no Harlem que passam um belo cenário frenético à obra, relembrando as adaptações mais malucas do 007 da melhor forma possível. Além disso, a intriga da espionagem sai de cena ao longo do livro, mas Ian mantém uma boa pegada realista a partir de consequências das missões, especialmente com Felix, em um âmbito derrotista que sustenta em certa medida a atmosfera de Cassino Royale.
Ian Fleming definitivamente perde um pouco a mão na sua série literária, largando o bom arco de Bond e descrevendo cenários com uma escrita detalhista aborrecedora e de quebra de imersão. Mas existem bons elementos em Viva e Deixe Morrer que não deixam a obra cair na mediocridade, desde o ótimo vilão, a premissa instigante, a atmosfera mística macabra e o senso de limite da ação expandido em divertidos segmentos bem malucos. Ainda assim, fica aquela sensação ruim que o autor regrediu no desenvolvimento da série e de seu protagonista.
Viva e Deixe Morrer (Live and Let Die) — Reino Unido, 1954
Autor: Ian Fleming
Editora original: Jonathan Cape
Edição lida para esta crítica: Alfaguara; 1ª edição (19 julho 2013)
Tradução: Roberto Grey
232 páginas