A força da mimetização, ou da mímica, ou qualquer processo de imaginação que busque a imitação é a base que a diretora Cate Shortland usa para fazer o filme Viúva Negra. Mesmo que a história esteja muito mais preocupada em geografar temporalmente onde Viúva Negra estava para criar outra ponte conectiva para a nova fase da Marvel, sempre fazendo prelúdios eternos, a diretora foca nos espelhamentos simples, nas referências cinematográficas e no visual como maior arma de tateamento de uma história em constante justificativa para acontecer em narrativa.
Desde a primeira cena, com árvores e luminescência, que vai ditando a infância epifânica de Yelena Belova (Florence Pugh) e Natasha Romanoff (Scarlett Johansson) em Ohio, com uma câmera lenta e um filtro da fotografia que torna tudo aconchegante, o filme tem uma cara piegas, como um estilo dramático por natureza que possibilita inverossimilhanças, se comparativamente pensarmos nos filmes da Marvel. Os filmes da Marvel sempre buscam calcular dramas, piadas e cenas de ação dentro de um realismo que não estranhe o espectador. Já Viúva Negra narrativamente tem um final cíclico, em que termina com árvores e luminescência dos vaga-lumes para remeter à família, ao passado que acabou de ser contado, diferente dos filmes da Marvel que querem sempre criar a expectativa do que vai ser contado depois, seja com a cena pós-crédito ou alguma explicação. Apesar dessa maneira de contar a história, o desejo “marvélico” é o mesmo, e aí que a diretora desconversa positivamente com a proposta de Kevin Feige e sim com Scarlett Johansson, entregando visualmente uma dignidade para filmes de super-heróis de ação e espionagem.
Fora isso, há a culpabilidade autoperdoada pelo estúdio Marvel quanto ao filme estar atrasado em lançamento e história, e não se pensa como isso influencia realmente na história ou não, apenas no ato de assistir ao filme. Infelizmente, isso corrobora para tal incômodo extrafilme, quando se preocupa exacerbadamente em fazer referência justificativa à frase da morte de Viúva Negra sobre sua família em relação aos Vingadores para implementar Gavião Arqueiro e sua série no final de 2021 na cena pós-crédito, ou em posicionar o filme e a personagem temporalmente, apenas isso, onde se passa a história de Viúva Negra, nos dois extremos entre a referência antiga e a nova ao MCU. É como se a Marvel estivesse esbanjando a prioridade de organização produtiva, fazendo uma concessão de colocar o General Ross (William Hurt) no começo das cenas de vida adulta de Natasha, após Capitão América: Guerra Civil, e depois ele precisa aparecer como uma referência que o filme está acabando. Além disso, a cena pós-crédito, que não dá momento de luto, é mais uma conexão ordinária para formar uma fórmula Marvel implícita no filme em Yelena, irmã postiça de Natasha. Até porque o filme começa aí, como um invólucro da infância dramática a que se quer voltar, ou acaba-se voltando após o divórcio dos Vingadores, não porque Viúva Negra tem uma história própria.
Esse problema vem desde as HQs, em que Viúva Negra tem problemas em ter história própria sem a participação de um Vingador ou de algum personagem do seu passado, como um namorado (Soldado Invernal, Homem de Ferro e Capitão América), e a narrativa ser sobre como ela vai resolver o problema sem se desenvolver uma história de fato sobre a personagem. A escritora Marjorie Liu, em 2011, venceu a editora Marvel quando conseguiu fazer uma narração em off, no estilo noir no cinema, só que nas HQs, em uma justificativa de cultura russa, maternidade e Guerra Fria para encerrar como filosofia russa de Tolstoi. E outro trabalho que deu uma história própria para a personagem, dando uma personalidade silenciosa e dramática, foram os escritores Mark Waid e Chris Samnee que compreenderam o potencial da personagem para narrar sua história na ação, como se fosse estereotipicamente um filme cult, mais contemplativo e com planos-sequências que narram a história em si, com Natasha sendo quem dita os movimentos. Mesmo que isso pareça distante do Universo Cinematográfico da Marvel em questões adaptativas, a base mitológica da personagem usada para compor o roteiro vem do histórico da Viúva Negra nos quadrinhos, o que nos leva a pensar sobre dois pontos femininos envolvidos no filme que se relacionam com os roteiristas de HQ citados: Scarlett Johansson como produtora e Cate Shortland como diretora.
Scarlett seria como Marjorie Liu nesse filme, que embora não soe como um “vencer a produção do Kevin Feige”, foi a atriz que indicou a diretora australiana para o cargo no filme, e a relação de causa social posta nos créditos iniciais, com garotas traficadas e escravizadas no mundo contemporâneo, é uma temática que a diretora Cate Shortland trabalha em seus filmes, sobre mulheres abusadas, seja na juventude na Austrália (filme Somersault de 2004), na Alemanha pós Segunda Guerra (filme Lore em 2012), ou numa visita a Berlim contemporânea (filme A Síndrome de Berlim). Nesse último fator, a diretora é como Mark Waid e Samnee, que vêm de um cinema que usa mais o campo visual para dramatizar do que necessita de verbos para explicar algo para o público, como a Marvel faz. Juntando Scarlett, que dizia gostar dos filmes da diretora, como apoio em frente a Kevin Feige, e a diretora focada numa narrativa visual é o aporte para um diferencial nesse filme da Viúva Negra.
De fato esse diferencial existe, em que se pode citar os planos de plongée quando Natasha encontra-se com Yelena em Budapeste em um quarto, ou na cena que a espiã da Sala Vermelha está deitada na água morta, um plano fotográfico de perfil mais longe de cima, não só ilustrativo e sim dramático, entre vários pequenos fatores fotográficos que dão uma cara própria visual ao filme, indicando que a diretora comanda o trabalho do diretor de fotografia, Gabriel Beristain, que já havia trabalhado na série Agent Carter. Parece pouca coisa, mas é esse mesmo estilo de diferenciação que é a medida para as cenas de ação, e até mesmo na montagem que é muito mais relevante para se entender o filme que os diálogos cômicos dramáticos entre Alexei (David Habour) e Yelena no quarto, quando o descanso do filme é quebrado abruptamente com uma luz azul para introduzir o terceiro ato na chegada na Sala Vermelha. Esse estilo da diretora em reforçar a imagem e a decupagem (organização dos cortes da montagem que dão forma de contar a história), utilizando mais câmeras lentas, e de trabalhar com o design de luzes vermelhas, especialmente na cena final na luta contra as Viúvas Negras, dá um tom menos realista ao filme do que o de costume na Marvel. As diferenciações de filtros na fotografia, como no ato final, quando Yelena está em um ambiente mais esverdeado numa maca, ou o vermelho quando Melina (Rachel Weisz) vai hackear a Sala Vermelha, dentro do mesmo ato do filme, é um sintoma de uma diretora que entende a imagem como narrativa potente, mesmo com concretizações óbvias no uso do vermelho no filme, por exemplo.
Essa ideia pode ser vista quanto à identificação de como as cenas de ação almejam muito mais a compreensão dos movimentos do que o realismo dos atores estarem lá. A perseguição de carro não estaciona em um plano de Yelena e Natasha conversando dentro do carro, e sim mantém a fotografia fora do carro para que nunca se perca o automóvel de cena, tendo em vista que ele vai capotar dentro de uma estação de metrô para causar impacto, não tremendo a câmera para que se tente uma imersão das personagens experientes em fugir de perseguições, ou tornar um tanque destruindo carros em algo realista, e sim focar como esse tanque ocupa a tela. São essas as escolhas que empolgam o espectador sem distrações além da imagem, assim como o conceito de mimetização e imitação constatada na relação de inspiração entre Yelena e Natasha.
Essa relação nunca é completamente verbal, explícita em motivações, mas claramente, tanto nos intuitos da Marvel na cena pós-crédito para vender Yelena e no trabalho posterior com Madame Hydra e Agente Americano, como no dilema identitário e familiar que Yelena tem como desenvolvimento dramático e Natasha tem como inclusão em famílias, há um imaginário de uma jovem Viúva que quer ser a Viúva Negra já conhecida. A cena de Natasha olhando para o espelho como introdução temporal do filme, após a infância das irmãs, o encontro delas como uma luta parelha e imitação de movimentos, o fator da Yelena saber os movimentos da Vingadora Viúva Negra e tentar imitá-los, e principalmente a simetria dramática entre Natasha e a vilã Treinador, que imita movimentos e representa o passado mais violento da heroína que ela quer superar, mesmo indo de encontro a ele, tudo isso entra na unidade mímica que a diretora propõe como narrativa mais implícita que não é dita, servindo perfeitamente para as ideias da Marvel de transição de personagens. O close-up mais corporal que Cate Shortland gosta tanto é exatamente na cena em que Yelena é tocada pelas Viúvas Negras ao final do filme, dizendo muito sobre como a obra se sustenta e parasita o trabalho da australiana simultaneamente.
Essas questões visuais são como os roteiristas Waid e Samnee sobrepõem a simplicidade de uma história também sobre a Sala Vermelha e o passado da Viúva com muita ação como os links narrativos para a história progredir, independentemente se eles fossem realistas ou não, com justificativas mais ou menos dramáticas. Esse novo filme da Marvel não cria grandes preparações, não explica visualmente quando Yelena vai aparecer para salvar Natasha e jogar o antídoto para salvá-la em meio à luta contra todas as Viúvas Negras da Sala Vermelha, assim como o drama de Yelena matar o vilão Dreykov (Ray Winstone), lider da Sala Vermelha, no avião é a ponte para uma grande cena de ação repleta de CGI que depende quase que exclusivamente do balé de ação para funcionar. O filme se anima com a trilha de Lorne Balfe e a câmera lenta apenas para mostrar as irmãs correndo do fogo atrás, em constante simetria entre as personagens, num filme que parece mais livre para se montar com base na ação. Não que o filme seja ação sem roteiro, mas quando se analisa em proporções e se entende o valor visual com que a diretora tenta fagulhar o roteiro, a história contida no documento cursor no set de filmagens se fragiliza e suga a qualidade do filme junto.
Se o estilo de tateamento visual da diretora fosse a unidade plena da obra, talvez fosse um dos grandes filmes da Marvel com momentos inspirados que poucos filmes desse universo têm coragem de fazer. Mas infelizmente essa abertura estilística da diretora soa como compensação de um todo interlúdio entre filmes ou fases de um universo, como se a produção da Marvel permitisse que o longa tenha suas diferenciações em realismo para que na mimetização como conceito visual entre Yelena e Natasha, ou Natasha com o Treinador, fosse a base que a Marvel precisasse para permutar a Viúva Negra já morta. Por isso que a história acaba sendo cheia de referências da Marvel, como explicações de Budapeste e sugestões colocadas sobre a personagem entre os filmes de que ela participa, sempre empurrando o filme para o universo Marvel, enquanto Cate Shortland atua como uma Marjorie Liu tentando colocar seu estilo para tentar engrenar o filme, que vai se resumindo em momentos que se atritam para se unificar entre o artifício qualitativo e a raiz que torna a parte artística uma superfície a ser vendida sem muito pudor de se expor entre atos como um interlúdio assumido.
Como a Marvel gosta de muitas referências, realmente o filme da Viúva Negra segue a regra de uma boa mímica visual para inventar uma dinâmica à la James Bond contemporânea, de uma vilã com rosto destroçado sobre o passado da protagonista, como Skyfall, e um vilão mais idoso por trás de tudo. Além disso, cenas em Budapeste nas ruas com motos e carros são batidas de um Missão Impossível 6 junto à reviravolta de troca de máscara entre Melina e Natasha para fazer o plano de invasão na Sala Vermelha. E por último, e não menos importante, a referência a filmes de Guerra Fria ou de Segunda Guerra, como Desafio das Águias do final da década de 1960, com invasão a prisões entre montanhas de neve e uso de roupa camuflada. É um recheio de cenas de ação, no entanto é como uma narrativa que progride sem rumo, sempre precisando de uma justificativa de encontrar algum membro da família postiça da Viúva Negra, formando uma base frágil de crença no drama, ainda que ele seja convincente entre eles, com uma protagonista passiva, não ativa como as referências nos filmes.
Por isso, mesmo com o brilho da direção de Cate Shortland, não adianta. Quando há parada no meio do filme, padronizadamente escrita em roteiros clássicos, há possibilidade de o espectador desestimular-se com o drama familiar, ou melhor, “mimetizadamente” familiar e artificialmente harmônico com a falta de realismo do filme. Pende-se a cair a narrativa sustentada num ritmo visual por uma montagem objetiva na base de providências para preservar o impacto de uma história passiva. Mais uma vez citando, quando o filme busca furar a dinâmica postiça da família, por um lado Alexei é claramente o vórtice cômico e Melina, o cinismo, não formando algo dramático totalmente honesto nem mesmo com a comédia de desarranjo aliviante de Alexei para envolvimento de personagens, especialmente Yelena, pois por um lado era necessário para que o filme desse outra cartada de revelação na Sala Vermelha, com cenas explicativas em que o cinismo de Melina era um disfarce, e como Alexei era uma isca. Diante disso, o espectador fica entre a isca e o disfarce, pois a média do longa apresenta ideias progressivas para apresentar outros retrocessos na narrativa, como uma produção que quer medir o potencial do filme para encaixá-lo dentro do retrospecto Marvel.
Em síntese de exemplos, se o filme entrega a revelação que o Treinador é a filha do vilão Dreikov chamada Antonia, que Natasha pensou tê-la matado como maior arrependimento, o impacto visual existe de uma personagem transfigurada e todas as maneiras audiovisuais de tornar a experiência da cena impactante, mas na história quer se voltar para Os Vingadores (2012), pois isso seria uma explicação sobre a cena de Natasha com Loki. Da mesma forma, a brincadeira de como se fala “Budapexte” na conversa de Natasha com o ajudante Mason (O-T Fagbenle), o fato de Yelena e Natasha se encontrarem em Budapeste, tudo isso é para justificar a história do filme, e daí surge a narrativa que a diretora vai comandar para sobrepor um roteiro que em si é montado para referenciar e tornar a Viúva Negra um filme referência da Marvel, utilizando o apelo visual para atrair o público para uma wikipédia de resolução. Só não se torna mesquinho e realmente desperdício de filme porque Cate Shortland e Scarlett Johansson realmente tornam a experiência agradável, mesmo que na superfície visual de momentos e improvisos de atuação do elenco de qualidade, com Rachel Weisz, David Harbour, Florence Pugh, etc. aliviando o peso de linkar tudo da protagonista a cada filme do UCM.
Não chega a ser um Homem de Ferro 3 em que Shane Black foi vetado em seu estilo implodido no filme, não é um 8 ou 80 como Thor: Ragnarok, que reverte a fórmula Marvel para o drama, nem é um Capitã Marvel, em que a fórmula Marvel se conflita com o uso funcional do filme como ponte para Ultimato em suas referências e retcons, mas é um grande interlúdio que libera mais autorismo da diretora e suas referências porque sabe que todas essas bases são retornáveis, é um estilo de tateamento e mímica que fica bonito em um recorte formal de diferenciação. O atraso tanto reclamado de um filme solo da Viúva Negra é algo extrafilme que a Marvel faz o favor de engrenar em sua história, porque no fim não se quer contar sobre a Viúva Negra, a personagem morreu, quer se contar sobre Budapeste, Yelena, sobre o Capitão América russo e como o filme pode render e salvar meninas escravizadas e traficadas no mundo e quebrar o controle machista sobre elas de maneira prática dentro do gênero do filme, mas não sobre a protagonista em si, que se torna uma ponte a todos esses assuntos.
Ao final, se não fosse um filme da Marvel, muitas pessoas não assistiriam a mais uma obra autoral de Cate Shortland que busca usar a mise-en-scène como porta sensorial, como fez em Lore e seus outros filmes, mas seria um grande filme de ação sobre uma personagem fora do seu tempo como tantos blockbusters ainda contam, porém sem fazer ponte, e sim ser um longa-metragem como fim em si mesmo. Por fim, é mais um cinema de qualidade entranhado e faiscando dentro das produções da Marvel, como o pneu do avião que trisca no carro capotado na fuga da família postiça de Natasha dos EUA para Cuba, mas que diferente do filme que mostra o avião voando e faz a transição na montagem para um mapa, Viúva Negra só diz que há um avião em voo. Não se preocupa muito com quem pilota, afinal.
Viúva Negra (Black Widow) – EUA, 2021
Direção: Cate Shortland
Roteiro: Eric Pearson (baseado em história de Jac Schaeffer e Ned Benson)
Elenco: Scarlett Johasson, Florence Pugh, David Habour, Rachel Weisz, Ray Winstone, Ever Anderson, Violet McGraw, O-T Fagbenle, William Hurt, Olga Kurylenko, Michelle Lee, Liani Samuel, Nanna Blondell, Ray Winstone
Duração: 133 minutos