A primeira impressão nem sempre é a que fica. E isso é particularmente verdadeiro em relação a séries de TV quando analisadas tendo apenas seu episódio piloto como parâmetro e, depois, com a temporada completa já exibida. Mesmo tendo isso em mente, não pude deixar de sentir desapontamento quando os créditos do 10º e último episódio da primeira temporada de Vinyl começaram a surgir na tela.
Se por um lado é interessante que a HBO tenha renovado a série imediatamente após o fim do primeiro episódio, algo já esperado, mesmo considerando sua baixa receptividade pelo público e que mostra a confiança da produtora em sua mais recente aposta dramática, por outro o anúncio da saída do showrunner Terence Winter parece indicar novos rumos na segunda temporada. E a série precisa mesmo de mudanças se ela quiser ter alguma chance de entregar aquilo que promete de verdade: um retrato da indústria da música nos anos 70.
O grande problema da série está na forma como seu piloto de duas horas foi desenvolvido nas nove horas seguintes. Nele, a premissa da série é bem estabelecida e enraizada, com foco absoluto em Richie Finestra (Bobby Cannavale), sócio principal da gravadora American Century que abandonara seus vícios depois de ter filhos. Ele está prestes a vender sua empresa cheia de problemas para a gigante teuto-holandesa e descansar à sombra com os milhões que ganharia quando uma negociação com Buck Rogers, dono de várias rádios que passa a boicotar os álbuns de sua gravadora, dá muito errado e ele acaba “acidentalmente” assassinando-o junto com Joe Corso (Bob Dietl), uma espécie de intermediário de “promoções”, e, ato contínuo, livrando-se do corpo. Esse evento traumatizante faz com que Richie volte a mergulhar profundamente na cocaína e, em um momento de epifania durante o show do The New York Dolls no The Mercer Arts Center, que literalmente desaba sobre sua cabeça.
A promessa estabelecida pelo excelente e ambicioso piloto, dirigido por Martin Scorsese, torna-se música de uma nota só ao continuar focando quase que exclusivamente em Richie e sua entrega ao vício e à autodestruição. Voltando atrás no negócio com a Polygram, ele começa a levar sua própria gravadora para seu próprio caminho sem volta e a série passa, então, a distanciar-se de sua proposta principal ao mesmo tempo que deixa entrever o que ela poderia ter sido se o foco fosse realmente na indústria da música, tendo Richie como seu veículo. O que se vê, efetivamente, é o contrário: a música é o veículo para a vida do protagonista e isso acaba retirando o poder da temporada.
Claro, a música está presente nos interlúdios delirantes que permitem a transição entre histórias e os episódios são salpicados de figuras ilustres do cenário musical da época, como os já citados New York Dolls, além de Robert Plant, David Bowie, Alice Cooper, John Lennon e até mesmo Elvis Presley em fim de carreira, mas todos eles funcionam apenas como enfeites e homenagens, talvez até mesmo chamarizes efêmeros para enquadrar a série como ficção cercada de realidade. Mas a fórmula acaba sendo um tiro que sai pela culatra, já que, sem exceção, a presença de artistas ilustres do meio musical é inconsequente para a narrativa, já que negociações com eles são fadadas ao fracasso para que a estrutura de ficção dentro da realidade seja mantida. Não há mal em se fazer assim, mas a repetição é cansativa e os resultados sempre previsíveis, retirando qualquer traço de tensão ou engajamento por parte do espectador.
Bobby Cannavale, por seu turno, apesar de começar muito bem e segurar seu papel por boa parte da temporada, acaba inadvertidamente caindo na armadilha que a estrutura da narrativa arma para ele. Seu personagem não ganha efetivamente desenvolvimento, tornando-se, na verdade, uma espécie de caricatura do empresário arrogante, drogado e bêbado que acaba se resumindo a olhares vidrados, semblantes perdidos, linguagem corporal claudicante, algumas explosões verbais e diálogos marcados por frases de efeito de filosofia barata. Há momentos muito bons, claro, mas eles estão diluídos em um mar de mesmice que acaba diluindo o efeito inicial do trabalho de Cannavale.
Gravitando ao redor de Richie como satélites artificiais, há quatro personagens que ganham destaque maior, ainda que insuficiente da narrativa: sua esposa Devon (Olivia Wilde), seu sócio e amigo Zak Yankovich (Ray Romano), a ambiciosa secretária da American Century Jamie Vine (Juno Temple) e o ex-cantor e ex-compositor e descoberta original de Richie, Lester Grimes (Ato Essandoh). São personagens que transitam entre o clichê o realmente interessante que teriam se beneficiado de mais foco.
Wilde como Devon é a esposa-troféu de Richie, uma mulher que se sente infeliz por viver longe do mundo artístico de onde veio em um subúrbio americano cuidando de seus filhos. A atriz está bem no papel, mas, assim como Richie, sua queda faz sentido, mas não necessariamente faz a personagem evoluir. Por outro lado, em termos de personagens femininos, Jamie funciona bem, apesar de demorar muito a decolar. De secretária da gravadora e fornecedora oficial de drogas aos seus colegas, ela caminha bem na direção de tornar-se uma descobridora de talentos, algo representado pela banda Nasty Bits, liderada por Kip Stevens (James Jagger, filho de Mick) e a grande e última aposta de Richie depois de seu momento de iluminação no Mercer. Juno Temple, quando os roteiros permitem, constrói muito bem sua personagem, tornando-a relevante e crível tanto dentro da trama, como também quando sua vida pessoal é abordada em raros momentos. A série ganharia muito se ela ganhasse maior relevância na próxima temporada.
Ray Romano vive um melancólico Zak, talvez o mais trágico personagem da temporada, um homem que, apesar de contemporâneo de Richie, deixa transparecer inocência e de certa forma ignorância sobre como as coisas funcionam. Ele acredita piamente em Richie nos mais adversos momentos e ver sua queda é de cortar o coração. Romano faz seu personagem funcionar muito bem e ele merece o reconhecimento.
Outro que merece especial menção é Ato Essandoh como Lester Grimes, descoberta original de Richie no ramo musical e, também, o primeiro a ser traído por ele, com resultados desastrosos que vemos em flashbacks. A volta do personagem no presente para a vida de Richie se dá de forma triunfal e o ator empresta a necessária raiva quase incontida que sente de Richie, ao mesmo tempo que uma cada de uma incongruente felicidade tanto por estar de volta à indústria, como por ter a oportunidade de infernizar a vida de seu antigo inimigo. Mas mesmo esse interessante personagem se perde no rolo compressor da narrativa cocainômana de Terence Winter que se preocupa mais com o caso policial envolvendo Richie e com a reação dele ao seu problema do que com a indústria musical ao redor.
Não que essa indústria não seja abordada. Ela está lá não só pelas incessantes inclusões de artistas famosos que já mencionei, como também pelas poucas negociações contratuais que testemunhamos e que mostram a podridão de seu funcionamento à época (ainda que hoje não seja tão diferente assim). Além disso, Winter é cuidadoso ao tratar do nascimento do punk rock, da música disco e até do hip hop, o que abre o leque da série mesmo que esses aspectos não sejam realmente a força motriz de seu trabalho (leiam nossa crítica da trilha sonora da temporada, aqui).
O cuidado da HBO e de seu agora ex-showrunner é visível nos aspectos técnicos também, marca registrada da produtora. Os figurinos extravagantes que marcaram o cenário musical da década de 70 estão fortemente presentes e funcionam perfeitamente quando vistos em seu conjunto. Reparem, por exemplo, como os trajes das duas costas americanas são ao mesmo tempo diferentes e parecidos, respeitando a diversidade estilística existente àquela época e hoje também. O mesmo vale para a fotografia que mantém uma unicidade narrativa, usando até mesmo paletas de cores temáticas em relação a personagens-chave, como as cores mais vistosas, mas tendentes ao pastel no caso de Richie e tudo referente à American Century e as imagens mais suaves e com paleta mais fria para lidar com Devon e sua vida suburbana. O esmero visual é a prova mais clara de que a série é uma grande aposta da HBO que tenta trazer para seu canal uma série dramática de cunho histórico nos moldes de Mad Men, da AMC.
Mesmo com todas as suas qualidades, Vinyl não deixa de desapontar. Vê-se claramente um enorme potencial a ser explorado, mas que permanece intocado. A música é onipresente e ao mesmo tempo coadjuvante, ao passo que Richie tem seu papel diluído pela repetição temática de sua queda vertiginosa. O DNA do sucesso está presente no trabalho da HBO e de Winter, mas falta aquele algo a mais que deveria encantar o espectador. É torcer para que a mudança de showrunner traga esse “algo mais” e faça a série realmente deslanchar.
Vinyl (EUA, 2016)
Criadores: Mick Jagger, Martin Scorsese, Rich Cohen, Terence Winter
Showrunner: Terence Winter
Direção: Martin Scorsese, Allen Coulter, Mark Romanek, S. J. Clarkson, Peter Sollett, Nicole Kassell, Jon S. Baird, Carl Franklin
Roteiro: Terence Winter, George Mastras, Jonathan Tropper, Debora Cahn, Adam Rapp, Carl Capotorto, Erin Cressida Wilson, David Matthews, Riccardo DiLoreto, Michael Mitnick
Elenco: Bobby Cannavale, Olivia Wilde, Ray Romano, Ato Essandoh, Max Casella, P. J. Byrne, J. C. MacKenzie, Birgitte Hjort Sørensen, Juno Temple, Jack Quaid, James Jagger, Adelynn Elizabeth O’Brien, Paul Ben-Victor
Duração: 660 min. (1 episódio de 120 min. + 9 episódios de 60 min. cada aprox.)