Sidney Lumet faz parte de uma geração de cineastas que começaram suas carreiras na chamada “era de ouro da televisão”. Em uma época em que a programação era ao vivo e o nível de exigência era confuso, posto que a TV era uma novidade e ninguém sabia direito o que fazer ou o que cobrar de suas produções, os diretores em ascensão encontraram a oportunidade para amadurecer seus conhecimentos técnicos e aplicá-los com eficiência às mais diversas emergências que uma exibição televisiva ao vivo pode apresentar.
E foi com essa experiência e amplo apreço por um tratamento realista para os roteiros que recebia que Sidney Lumet chegou ao cinema em 1957, com 12 Homens e uma Sentença. Em 1958 veio Quando o Espetáculo Termina e, no ano seguinte, Mulher Daquela Espécie, até que o diretor conseguiu financiamento para levar à telonas uma peça de Tennessee Williams, dramaturgo que admirava muitíssimo e de quem já tinha adaptado peças (especialmente as de um único ato) para a TV.
Vidas em Fuga é baseado na peça Orpheus Descending, uma versão reescrita pelo próprio Tennessee Williams de sua fracassada peça Battle of Angels. Em um trabalho de 17 anos, o autor tentou mudar o tom entre um trabalho e outro, mas acabou caindo em armadilhas de sua própria obra, como a cobrança do público que para tudo o que ele escrevesse fosse algo à la Um Bonde Chamado Desejo ou o fato de que em ambas as ocasiões a peça foi rejeitada pela crítica e do público.
Sidney Lumet estava ciente dessa “maldição” que acompanhava Orpheus Descending, mas, mesmo assim, aceitou dirigir o projeto. Ele teria um grande ator no papel principal (Marlon Brando, que recebeu um milhão de dólares como pagamento, o primeiro ator da história do cinema a faturar tal cifra para fazer um filme) e três grandes atrizes em papeis notáveis, Anna Magnani, Joanne Woodward e Maureen Stapleton (talvez a menos aproveitada da tríade, mas cuja participação e encontro com Brando é de uma sutileza e conexão dramatúrgica que deixa o espectador em total atenção).
A história de Vidas em Fuga é daquelas que se enquadram no quesito de “tragédia amorosa, mitológica e social”. Brando e Magnani vivem o casal improvável e perdido que se une pela solidão em comum. Ele, um libertino que mostra sinais de amadurecimento. Ela, uma sofredora e reprimida sexualmente, presa a um casamento que a enoja e a uma sociedade machista e racista. O mito de Orfeu, a colocação dos Direitos Civis em vias de regulamentação nos Estado Unidos à época e liberdades narrativas que desafiavam o Código Hays são os ingredientes de destaque do roteiro, que é belíssimo, mesmo com furos no desenvolvimento de alguns personagens. Os diálogos de Brando e Magnani são os mais intensos e bem escritos e o mesmo vale para a primeira parte do filme, com a apresentação de Valentine ‘Snakeskin’ Xavier (Brando) no tribunal — uma cena que nos deixa vidrados no personagem e de imediato nos aliarmos a ele através do ponto de vista do juiz oculto — e a posterior sequência da chegada de Snakeskin ao condado onde conhece Vee Talbot (Stapleton), esposa igualmente reprimida do Xerife local.
O ponto fraco do texto está no claudicante trabalho de inserção de aspectos fantásticos na história. Eles acompanham de perto a luta pela igualdade étnica nos Estados Unidos, mas se deslocam completamente do todo. Para piorar, o personagem de Emory Richardson (Uncle Pleasant, um feiticeiro) aparece em pequenos cameos e é associado a Carol Cutrere, cuja principal função no filme é de complemento narrativo sobre o assunto do comportamento “selvagem” (referindo-se ao passado de Snakeskin) e de luta social. Quando ligada ao Uncle Pleasant, a personagem, em tese, estaria representando a luta pela proximidade entre brancos e negros, mas a intensidade do contato e o modo como acontece não nos fazem pensar exatamente assim. Embora Joanne Woodward esteja excelente no filme, sua personagem recebe um tratamento desencontrado no todo da obra, algo entre o mítico, o comportamental e o social que jamais se unem.
Maureen Stapleton recebe boa atenção no início da obra, mas sua cena final é enigmática para qualquer espectador que não conheça a peça. Sua cegueira e a questão das “visões” ficam soltas no filme, sem nenhum tipo de explicação. Uma sequência inteira de contexto havia sido filmada, mas Lumet julgou que ela iria distrair o espectador já nesse caminho em direção ao clímax da obra (e ele estava certo), porém, deixou a pequena cena onde Brando ajuda Stapleton levantar-se da lama, numa tarde chuvosa, e o que se diz ali fica no ar como um mistério que nenhum benefício traz ao filme.
A atualidade de Vidas em Fuga é bem maior do que possa parecer à primeira vista. O filme mostra almas inquietas em busca de amor, sociedade repressora e segregadora, incompreensão e maldade. Em maior ou menor grau, esses elementos estão presentes em qualquer sociedade civil. Com a direção realista de Lumet e a iluminação milimetricamente teatral de Boris Kaufman, o filme incorpora muito do aspecto mítico de sua fonte original, Orfeu, além de alternar lirismo e cruza realista para as contrastantes personagens principais. Trata-se de uma boa adaptação de uma peça menor de Tennessee Williams feita por um grande diretor. O resultado, mesmo que não seja perfeito, é memorável.
Vidas em Fuga (The Fugitive Kind) — EUA, 1960
Direção: Sidney Lumet
Roteiro: Tennessee Williams, Meade Roberts (baseado na peça Orpheus Descending, de Tennessee Williams).
Elenco: Marlon Brando, Anna Magnani, Joanne Woodward, Maureen Stapleton, Victor Jory, R.G. Armstrong, Emory Richardson, Madame Spivy, Sally Gracie, Lucille Benson, John Baragrey
Duração: 119 min.