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Crítica | Viagem Maldita (2006)

por Leonardo Campos
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A violência explícita representada na mídia contemporânea é tão escancarada que criticar os filmes por excesso de sangue é no mínimo irônico. Por falar na operação excesso + sangue, Viagem Maldita, refilmagem do cultuado Quadrilha de Sádicos, de 1977, que ganhou nova versão em 2006, é um ótimo material para exemplificação. Com a aprovação do produtor Wes Craven, diretor do “original”, o filme foi lançado e logo causou muita polêmica, haja vista o nivelamento da violência física e psicológica que exalava pelos poros narrativos.

Após o esgotamento das refilmagens de filmes orientais, Hollywood decidiu continuar com o processo de adaptação de clássicos do terror para as plateias mais jovens. Alguns funcionaram muito bem, outros nem tanto. A releitura dos sádicos habitantes das colinas, canibais sedentos de sangue, responsáveis por apresentar uma “América” maniqueísta, entre o sonho e o pesadelo, tornou-se um filme parricida: é um dos poucos casos em que a refilmagem está num nível superior do seu “original”. Ele desbanca o “texto pai” e se estabelece muito bem.

O filme é bastante representativo para o que conhecemos da cultura estadunidense. Ao seguir um caminho de dominação mundial, um caminho de violência física, patrimonial e simbólica se estabelece, com custos altos para a sociedade. Os monstros de Viagem Maldita são alegorias, haja vista que aparecem como seres indesejáveis, criações de um processo irreversível de biopoder com consequências no bojo da sociedade.

A narrativa é uma crônica sobre os sobreviventes de uma esboçada típica de estratégias de guerrilha. O horror se estabelece após um suposto acidente na estrada. Tendo em vista comemorar o aniversário de casamento, Bob (Ted Levine) decide levar toda a família para uma viagem através da Califórnia. No meio do caminho fazem um desvio e seguem uma trilha que possibilitará a economia de duas horas na direção.

Junto com ele está a sua esposa Ethel (Kathleen Quinhn), a sua prole Lynn (Vinessa Shaw), Bobby (Dan Byrd), Brenda (Emilie de Ravin), o seu genro Doug (Aaron Stanford), o seu neto recém-nascido e os cachorros, Bela e Fera. Ao parar o carro para os devidos ajustes são atacados por um clã sedento que ceifará sem piedade a vida de muitos envolvidos naquela viagem típica da família tradicional. Como aponta o cartaz, “quem tem sorte morre primeiro”. Com elementos de crueldade, eles causam transtornos para os viajantes, espalhando medo e terror numa das trilhas de sangue mais extensas do cinema.

No terreno da forma Viagem Maldita foi muito bem concebido. A trilha sonora do grupo Tomandandy, responsável pelos aspectos sonoros de filmes como O Suspeito da Rua Arlington, emprega um tom opressor. A maquiagem, assinada pelos sempre competentes Greg Nicotero e Howard Berger, cria monstros asquerosos e terrivelmente assustadores. A cenografia é bem eficiente, pois as filmagens em um deserto no Marrocos permitiu ampliar o perigo. Há poucos obstáculos, quase lugar nenhum para se esconder, em suma, o horror pode vir de qualquer lado e pegá-los de surpresa.

Por falar em forma, não podemos deixar de brindar a direção do francês Alexandre Aja. Na época o cineasta havia chamado às atenções da crítica e dos festivais europeus com o igualmente sangrento Alta Tensão. Não demorou muito para os executivos hollywoodianos o convidarem para assumir a direção do clássico explotation dos anos 1970. Aja também assinou o roteiro, juntamente com Gregory Levasseur, sob as sugestões do mestre Wes Craven.

A violência transborda e alcança um patamar insuportável, não apenas pelo banho de sangue, mas por causa dos efeitos catárticos do roteiro. Nos anos 1970 os aspectos visuais estavam de acordo com a linguagem underground, com muita sugestão. Produzido no esquema de mainstream da indústria, a refilmagem deixa a sugestão de lado e capricha na estética do horror, com sangue, perfurações, estupros, corpos carbonizados e muitos ferimentos e fraturas expostas. Isso não é ruim. Em um ponto da franquia Jogos Mortais esta questão foi um problema, mas o roteiro de Viagem Maldita não nos deixa se preocupar com a representação da violência, pois a necessidade dramática e a evolução dos personagens nos permite relevar os excessos.

O texto está bem polido e organiza bem a crônica sobre a família que sofre os diabos nas mãos de vingativas criaturas que também são vítimas, pois se tornaram o que são graças aos desmandos do imperialismo estadunidense e seus toques de belicismo em tudo que se envolvem no que diz respeito à outras nações.

Um dos pontos nevrálgicos está no desenvolvimento dos personagens. O patriarca da família é amante das forças armadas, prega a guerra e acredita no poder imperial do país, enquanto o seu contraponto dramático está no genro Doug, democrata pacifista que acredita na diplomacia para a resolução de conflitos. Ao passo que o roteiro avança, o ideal de família é devastado, tendo ainda críticas severas ao conservadorismo estadunidense como material gravitacional em torno dos demais conflitos que se apresentam.

Ainda sobre os personagens, cabe destacar os demais viajantes. Lynn é a filha mais velha. Por ser mãe do bebê preocupa-se o tempo inteiro com o marido e o filho. Com o primeiro por causa das implicâncias políticas do pai. No caso do bebê, ela ocupa o espaço de mãe ideal, temendo a saúde e a segurança do filho, principalmente depois do acidente. Bobby é o típico adolescente que copia os moldes do pai. Adora armas e não sai de perto dos cachorros, personagens também importantes para efeitos catárticos no decorrer da narrativa. Brenda, a adolescente típica, irritada, não gostou nada de ter deixado os seus amigos para seguir viagem com a família. Logo, precisarão deixar as diferenças de lado para tentar sobreviver.

Outro ponto interessante do filme é a sequência de créditos iniciais. Há fotos de mutações, mas não são de ordem atômica. Na verdade, são registros em imagens dos efeitos das armas químicas utilizadas no Vietnã (agente laranja). Com uma trilha indicando o oposto do que se espera, tamanha a tranquilidade, lembra a abertura do ótimo Madrugada dos Mortos.

No que diz respeito às comparações com Quadrilha de Sádicos, a versão de Alexandre Aja, como já dito, é explícita, tal como os nossos noticiários, com antagonistas que adotam uma tática descentralizada de ataque, diferente dos aspectos de guerrilha da sua versão dos anos 1970. Irônico aos extremos, ao longo dos 107 minutos, a bandeira dos Estados Unidos é usada e abusada, parodiada, encharcada de sangue, rasgada, utilizada como arma branca e apresentada como ícone para reflexão em uma numerosa sequência de cenas. Um filme sangrento, mas distante das trivialidades de algumas narrativas de horror. Aqui, o explícito sobrepõe o implícito para a elaboração de um tecido narrativo crítico escancarado, graças ao roteiro, aos personagens e as suas ações e ao trabalho de direção de fotografia de Maxime Alexandre.

Viagem Maldita (The Hills Have Eyes) – EUA-França, 2006.
Direção: Alexandre Aja
Roteiro: Alexandre Aja, Gregory Levasseur (baseado no argumento de Wes Craven)
Elenco: Aaron Stanford, Ted Levine, Kathleen Quinhn, Emilie de Ravin, Vanessa Shaw, Dan Byrd, Billy Drago, Robert Joy
Duração: 107 min.

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