Jules Verne era impressionante. Capaz de escrever sobre quase qualquer coisa com absoluto domínio de sua narrativa, seja ela passada em um submarino, em um balão, na lua ou na Sibéria, seja abordando assuntos pesados como o comércio escravagista ou até mesmo criando continuações não-oficiais de Os Robinsons Suíços, de Johann David Wyss, o autor francês está sem dúvida entre os mais criativos do Ocidente e Viagem ao Centro da Terra é, possivelmente, uma de suas mais lembradas obras não só por ter sido adaptada um sem-número de vezes, como por ter servido de inspiração para Arthur Conan Doyle e seu O Mundo Perdido, Edgar Rice Burroughs e sua série literária Pellucidar e, claro, mais recentemente, Michael Crichton e seu Jurassic Park.
Esse livro foi um daqueles que, quando pequeno, eu praticamente furei as páginas de tanto ler e reler – e ler em voz alta para meus pais que, provavelmente, queriam me esganar – e, agora, infinitamente mais velho, mas não necessariamente mais sábio, tinha certeza de que gostaria bem menos. E, de fato, a obra é menos eficiente diante de olhos adultos do que infantis (ou talvez juvenis), especialmente o lado completamente fantasioso, quando os protagonistas efetivamente encontram um mundo quase que completamente intocado abaixo da superfície da Terra. Por outro lado – e isso eu realmente não esperava -, a relação entre Axel, jovem estudante de geologia apaixonado pela bela Gräuben, e seu tio, o Professor Otto Lidenbrock, experiente geólogo de temperamento irascível, é absolutamente cativante, ocupando grande parte da narrativa, mesmo na sequências climáticas.
Axel, além de protagonista, é o narrador, com a história contada sempre em primeira pessoa estabelecendo logo de início a mítica ao redor do Professor Lindenbrock, com elogios efusivos na mesma medida em que reservas sobre sua inabilidade social e obsessão são trabalhadas. É um deleite a forma como o autor estabelece a relação de sujeição do jovem em relação ao mais velho, com uma dinâmica humorosa e muito gostosa de ler. Além disso, Jules Verne usa elementos realistas, como o manuscrito islandês Heimskringla, de Snorre Sturluson, que o professor adquire em um antiquário e, em sua excitada leitura, encontra uma mensagem cifrada (na primeira vez que o autor demonstra sua paixão por códigos e criptografia, algo que seria recorrente em sua bibliografia) do alquímico islandês fictício Arne Saknussemm que, depois de um périplo para conseguir quebrar o código, revela haver uma passagem para o “centro da Terra” pela cratera do vulcão Snæfellsjökull, na Islândia. Com isso e com todas as explicações científicas da época que Verne oferece, ele constrói uma impressão documental ao romance que, portanto, mais parece um diário verdadeiro de Axel (essa é a desculpa para a narrativa em primeira pessoa) do que ficção científica, artifício, aliás, usado também por Conan Doyle e Crichton em seus respectivos e citados livros.
Exemplar ilustre do subgênero literário batizado de “ficção subterrânea”, Viagem ao Centro da Terra não foi, como muitos acham, o primeiro a lidar com o tema que normalmente gira em torno da teoria da “Terra Oca”, hoje tão sólida quanto a da “Terra Plana“. Há diversos outros romances que giram ao redor dessa temática, com até mesmo o poema Inferno, da Divina Comédia sendo passível de ser classificado também dessa forma dado que o “Inferno de Dante” é, no frigir dos ovos, uma gigantesca caverna que atravessa o planeta. Mas a obra de Verne é, em termos de aventura, de criação de mundos fictícios e do uso das teorias e da ciência da época para erigir a infraestrutura do texto, um verdadeiro primor que se torna ainda mais fascinante quando o leitor mergulha de verdade na conexão entre Axel e seu tio, com o estoico e silencioso islandês Hans Bjelke, o guia da expedição, servindo apenas de “facilitador” para a história.
Mas o “mundo perdido” cheio de criaturas pré-históricas é, apenas, um pequeno detalhe do romance, havendo apenas uma breve sequência de tensão envolvendo os animais antediluvianos que, aliás, foi expandida na versão de 1867, publicada três anos depois da original. Percebe-se muito claramente que o que gravita ao redor de Axel, Otto e Hans são detalhes menores – ou que parecem menores – diante de toda a construção que vem antes e que ganha muito mais dedicação de Verne do que as vertiginosas revelações no “centro da Terra”. No entanto, não se enganem, é um divertimento só, daqueles que não dá para simplesmente parar de ler impunemente, como um daqueles romances repletos de barrigas narrativas que volta e meia temos que encarar. Viagem ao Centro da Terra, quando foca na ação, tem bons momentos, mas eles apenas não são comparáveis à conexão de pupilo e mestre entre Axel e Otto, com o segundo tornando-se um daqueles personagens inesquecíveis da literatura, quase que como um arquétipo do “sábio rabugento” que, novamente, Jules Verne não criou, mas certamente ajudou a fortalecer.
Viagem ao Centro da Terra é, sem dúvida, uma obra para ser lida repetidas vezes ao longo de todas as idades. Há o deslumbramento para as crianças novinhas que podem escutar seus pais lendo o livro para elas ao lado da cama na hora de dormir, há a aventura pseudo-científica que um pré-adolescente certamente apreciará, há a construção de detalhado e excitante universo que um jovem adulto conseguirá perceber e, claro, há a conexão entre mundos – o real e o “perdido”, o mais maduro e o jovem, de mestre e pupilo, de pai e filho – que alguém já mais velho captará muito claramente como o objetivo final do grande Jules Verne em uma de suas imortais e inesquecíveis criações.
Viagem ao Centro da Terra (Voyage au Centre de la Terre – França, 1864/1867)
Autor: Jules Verne
Série: Viagens Extraordinárias #3
Editora original: Pierre-Jules Hetzel
Data original de publicação: 18 de novembro de 1864; 1867 (versão expandida)
Editora no Brasil: Editora Zahar
Data de publicação no Brasil: 25 de janeiro de 2018
Páginas: 280