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Crítica | Viagem à Itália

Em jornada metafísica, Ingrid Bergman encontra o eterno na História e em si mesma.

por César Barzine
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Em 1954, Luchino Visconti lançou Sedução da Carne, obra que para uns é a manutenção de valores neorrealistas sob uma nova roupagem, já para outros é a sua máxima superação graças a uma execução completamente operística e pictórica. Viagem à Itália, do mesmo ano, carrega esta mesma ambiguidade. Todos os neorrealistas tiveram que lidar com o período de transmutação fincado na década de 50, quando as fronteiras do movimento se expandiram para novas esferas estéticas, temáticas e filosóficas. No caso de Rossellini, essa  filosofia se deslocou do material para o metafísico, tratando menos de questões sociais e ideológicas ao atingir uma dimensão psicologizante e transcendental em suas novas obras. O marco inicial dessa segunda onda foi Stromboli, filme tido como cristão e moralista (atacado por anticlericais e comunistas), no  qual, sob um olhar contemplativo, Rossellini exprime as amarguras de uma figura feminina. 

Para além da simples dualidade quanto ao neorrealismo, o contraste entre Stromboli e Viagem à Itália – ao contrário da comparação deste último com a produção de Visconti –, conecta características específicas dos filmes em si: clima, ritmo, cenários, personagens e os conceitos de roteiro e de direção. A grande diferença está na resolução de cada obra: enquanto a primeira demonstra uma situação de absurdo mediante  um evento tirânico e trágico, a segunda encontra esperança de forma amena a partir de uma redenção romântica. De certa forma, em ambos os trabalhos, existe  a redenção. A diferença é que, no primeiro caso, a protagonista começa quase problematizada e termina como uma perdida vulnerável; já no filme de 1954, a redenção é tratada de modo puramente glorioso em todos os lados, enfatizando o amor reencontrado daquele casal. Curiosamente, não deixa de ser irônico pensar que a Ingrid Bergman anti-heroína e amargurada de Stromboli estava recém-casada com Rossellini, ao passo que a mesma Bergman, desta vez romântica e amorosa, de Viagem à Itália, é a mulher com quem ele estava se separando.

O roteiro já indica de maneira simbólica em seus diálogos como se encontra o estado de coisas do casal-protagonista. O personagem de George Sanders pergunta à de Bergman onde eles estão, ela diz que não sabe. Essa simples fala sugere a situação daquele relacionamento: estão perdidos, não têm consciência daquela situação e carecem de sintonia. Sanders diz nunca ter visto “um lugar ter tanto tédio e barulho ao mesmo tempo“, assim como anda o próprio relacionamento dos dois, dominado pelas turbulências do vazio. Tudo isso se inicia na chegada do casal a Nápoles, quando Bergman finalmente percebe e alega que ela e Sanders são “estranhos” entre si, e que, em oito anos de casamento, um nada sabia sobre o outro. Em seguida, Bergman diz: “em casa tudo parecia prefeito“. E toda essa conjuntura começa em Nápoles. Essa cidade em que o casal chega e percorre todo o filme não é só o cenário passivo da obra, como também é palco e terreno de todas as reflexões e sentimentos que passam a florar neles. Existe uma relação íntima entre a cidade, a experiência de viagem dos dois e todas as questões amorosas que vivem. 

A cidade assume uma dimensão de peculiaridade, um “outro lugar” com a condição exclusiva de levar o casal às suas intrigas e à reconciliação. As cenas que exploram a ligação de Bergman com a história, a natureza e os moradores de lá atestam isso em primeiro plano; enquanto a relação de Sanders em boates e com amantes fazem o mesmo em segundo. A primeira se dá por uma conexão meramente contemplativa, pouco verbal, em que Bergman nada se comunica e nem intervém no objeto observado. São apenas coisas cujo fenômeno não depende de sua participação, são o que são e resta seu olhar diante daquilo. Já com Sanders, ele mexe em seus objetos, manipula-os e se entrega a eles. Paralelo a isso, o personagem não tem tanto a dizer. São relações superficiais para ele e para o espectador. Tudo aquilo é raso de sentimentos, não o enriquece, e soa “frio” (não em um mal sentido) para o público. Em relação a Bergman, todos esses fatores são completamente diferentes, seja para ela, seja para o público. Sentimos à flor da pele cada instante e plano de contemplação; o olhar, sem a palavra, atinge pontos máximos de êxtase – mesmo que nem sempre saibamos exatamente o que aquilo significa.  

Em Stromboli, o espaço – tanto em seu aspecto natural quanto cultural – era o grande campo de inquietações sensíveis e conceituais para a protagonista. O  mesmo habita em Viagem à Itália, porém com todo um enfoque histórico. Bergman vai até museus e escavações, e o contato dela com toda aquela história diante de seus olhos cria, além de um sentimento de apoteose, um reflexo em sua própria vida. Nos museus, impera a esperada noção de grandeza – até porque estamos perante esculturas dos maiores imperadores romanos da antiguidade. Enquadramentos gerais oscilam com os médios, a câmera se move em cada estátua, uma a uma, com a mais precisa fluidez; a luz foca nos monumentos, deixando algumas margens escuras e, assim, pincelando a beleza dos quadros.

Em sequência, há as reações de deslumbramento por parte de Bergman; sua face penetrante e olhar fixo fisgam o espectador, que adquire a mesma sensação de imersão que ela. Em conjunto a esses momentos, há uma trilha sonora fantasmagórica, sugerindo o contato com o estranho, de desbravar o desconhecido. Tudo isso, para Bergman e para nós, é absolutamente insólito e visto com certo temor. Temos a sensação de grandeza, levando a uma noção de sacralidade; de vermos no que é humano algo maior do que nós mesmos. Rossellini busca apresentar aquilo que é atemporal e irredutível, oferecendo a matéria concreta e a história presentes numa esfera externa para colhermos algo abstrato e íntimo a partir do que nos é interno. A grandeza de uma história já consolidada é a ponte para um outro tipo de grandeza em potencial.

Muito provavelmente, Antonioni foi um grande apreciador de Viagem à Itália. Eis aqui um filme de tempos mortos, de desdramatização com seu ritmo lento, de banalidades repetitivas e de ações sugestivas. Tudo isso constantemente acompanhado do tédio, da náusea existencial e de uma semelhante alienação do criador da Trilogia da Incomunicabilidade. O espectador anda lado a lado com Bergman; o que ela contempla, nós também contemplamos. Quanto ao  Sanders, nos resta sentir por ele desprezo ou frieza. Ele é a peça distorcida da relação; Bergman, por outro lado, é aquela que só necessita de estabilidade.

Percebemos isso nos planos dela no carro – um dispositivo bastante significativo aqui – em contraste com os  contraplanos da calçada, apresentando casais felizes e mães com seus bebês. Percebe-se que, por trás da ideia de divórcio e atritos com seu companheiro, existe um nítido ideal de vida que ela gostaria de ter ao seu lado. Isso é retratado perfeitamente com repetidos maneirismos: seu rosto pasmo carregado de emoção; a dinâmica do plano-contraplano que faz surtir tais reações; e a dialética entre ela e aquele meio, como uma desbravadora do espaço e de si mesma. Aqui, Nápoles pode ser entendida como presente de Deus, segundo a concepção de um Rossellini totalmente católico. E, assim como no cristianismo, intervenções divinas, antes de vingarem plenamente, são tentações para os indivíduos se fortalecerem – basicamente todo o arco do filme.

No entanto, o último contato de Bergman com a história e suas relíquias acaba sendo nada épico e pautado justamente nessa esfera individual e subjetiva. Trata-se de quando, desta vez ao lado de seu marido, ela acompanha a escavação de dois fósseis que, ao que tudo indica, são um casal. A descoberta é um sinal mais do que explícito do ideal de eternidade humana pregado por Rossellini. Eternidade que, agora, se manifesta em seu estado mais universal, que é justamente em sua natureza mais íntima, por meio  do provável eterno amor daquele casal. A experiência faz a personagem se transtornar e se comover pesadamente. Vê naquilo uma necessidade de retorno ao relacionamento cuja dissolução já estava mais do que prevista. Sanders resiste, continua querendo o divórcio e tenta colocar a cabeça de sua ainda esposa no lugar. Na última cena do filme, a protagonista tenta resistir a uma correnteza de turbulências pessoais e de pessoas na rua. Seu atual – e, agora, permanente – marido a resgata.

Eles selam a continuidade do matrimônio, o que é visto, por parte do público, como um “milagre”, não só pelo abrupto evento fortúnio, mas também pelo contexto de clamor religioso em volta – os pedestres observam um outro tipo de milagre, agora puramente religioso, mais à frente. Com o desfecho de Bergman e Sanders, presenciamos mais um caso de redenção e de moralismo cristão na filmografia de Rossellini. Já em relação ao filme como algo particular, testemunhamos mais uma cristalização do eterno naquilo que é humano.

Viaggio in Italia (Itália, França – 1954)
Direção: Roberto Rossellini
Roteiro: Vitaliano Brancati, Roberto Rossellini
Elenco: Ingrid Bergman, George Sanders, Maria Mauban, Anna Proclemer, Paul Muller, Anthony La Penna, Natalia Ray, Jackie Frost
Duração: 97 minutos.

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