O poeta Carlos Drummond de Andrade é uma figura da história da literatura brasileira que dispensa longas apresentações. Os seus versos estão dispostos em camisetas, redes sociais, mensagens de felicitações, bem como nos meios educacionais, tais como as questões de provas de vestibulares, concursos, etc. Aparentemente simplória, muitas composições do autor transpassam ao leitor/ouvinte mensagens sem lapidações parnasianas, mas que em linhas gerais, são carregadas de complexidade quando nos dispomos a ler o contexto e compreender, nas entrelinhas, as camadas de memória presentes em suas elaborações poéticas. Escrito na fase madura de sua vida, Verbo Ser, publicado na coletânea Boitempo II, de 1973, o poema levanta uma série de questionamentos sobre o que o eu-lírico pensa diante da popular e corriqueira demanda acerca do que pretende ser quando crescer.
Numa estrutura fluente, o poema permite, como qualquer obra de arte refletida por pessoas que a recepcionam das mais diversas maneiras, uma análise da carga intensa desta pergunta habitual, realizada constantemente por todos ao nosso redor, nos primeiros momentos de nossas vidas. Parte integrante de uma trilogia memorialística que referenciam temas relacionados ao período da infância rural de Carlos Drummond de Andrade, Verbo Ser levanta questões de um adulto, conectado com estas inquietações presentes em seu passado. Não só neste poema, mas nos demais do conjunto, o poeta expõe uma série de tópicos existencialistas, numa correlação do presente em conexão com o passado, nos levando também a nos questionarmos: somos, de fatos, aquilo que acreditávamos que seríamos quando tivemos que responder a indagações do tipo? Vejo esta linha de análise como uma das possibilidades de compreensão do poema.
Nas divertidas idas e vindas de suas interrogações múltiplas, o eu-lírico em Verbo Ser flerta com a irregularidade deste verbo peculiar de nossa estrutura gramatical, alterado ao passo que é conjugado: pode ser era, fui, serei, assim como nós somos, mas podemos deixar de ser em algum momento na travessia pavimentada ao longo de nossas vidas. Em seu desenvolvimento breve, mas cheio de pormenores, o poema nos faz refletir sobre as nossas atitudes, diante de escolhas que podem ser genuínas ou selecionadas por imposições de uma tessitura social repleta de padrões que não contemplam as singularidades e a autenticidade de cada ser humano. Denso diante de sua aparente singeleza, Verbo Ser flerta em poucas linhas com um conteúdo que possibilita numerosas páginas reflexivas sobre as questões apontadas em sua estrutura, sendo este um dos poemas mais belos deste poeta singular em nosso painel de agentes do discurso da literatura modernista do século XX no Brasil.
Em linhas gerais, podemos refletir também que o poema permite um diálogo com os nossos variados processos de escolhas, até mesmo quando escolher não é um verbo que se encontra disponível para ser acessado. Nesta estrutura poética de Drummond, parece que temos uma pessoa adulta num processo de reconstrução crítica de sua trajetória. É uma jornada que nos lembra que em muitas ocasiões, estamos diante da celeuma entre o prazer da liberdade de escolha em contraste com a coerção de uma sociedade que nos freia constantemente, principalmente quando falamos das crianças, indagadas numa fase onde de fato ainda não há segurança para escolhas do tipo, ainda em transformações diante da forma como estes indivíduos concebem as suas respectivas visões de mundo. Ademais, para quem conhece “Ser” e “Procura da Poesia”, as temáticas presentes em Verbo Ser soam como semelhantes, ideais para uma assertiva leitura comparada, poemas para um painel múltiplo de interpretações.
Verbo Ser (Boitempo II/Brasil, 1973)
Autor: Carlos Drummond de Andrade
Editora: Record
Páginas: 512