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Crítica | Verão (2021)

É possível um filme querer que você se disperse?

por Michel Gutwilen
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Se o leitor deste texto quiser achar que o que escrevo é apenas uma justificativa inconsciente criada pelo meu cérebro para perdoar minha dispersão e transformá-la em algo positivo, eu entendo, até porque também fiz esta autoreflexão. Contudo, após tirar um tempo para pensar, genuinamente acredito que há um grupo muito específico de filmes (ou filmografias inteiras de cineastas) que possuem uma relação com o espectador de convidá-lo para uma meditação e todas as consequências disso. Seja um Apichatpong, um Lisandro Alonso, uma Naomi Kawase ou Vadim Kostrov, realizador desta obra chamada Verão (cineasta russo de 23 anos que eu ainda não conhecia, mas surpreendentemente já fez 8 longas), qualquer um deles parece consciente de que quem está assistindo irá se dispersar em algum momento durante a projeção de suas obras. 

São filmes tão generosos e democráticos com o espectador que permitem que ele dê uma volta nos seus próprios pensamentos por cinco minutos (ainda que continue olhando pras imagens do filme, mas sem absorver nada), depois volte e pegue a conversa no meio, aí depois saia novamente e assim fique. Ora, até para quem quiser fechar o olho por cinco minutos é totalmente possível. Não importa em que momento se volte a ver, não terá se perdido nada, o filme te permite entrar de novo. Nada disso atrapalha na experiência do filme ou diminui seu entendimento, racional ou emocional, por parte do espectador, mas sim como se fosse parte do próprio gesto fílmico. Todos eles percorrem quase que a ideia de uma anti-narrativa, de observação de gestos cotidianos ou da natureza sob o silêncio, de dilatações temporais, de andanças sobre o nada, de conversas casuais sendo trocadas, da integração entre protagonista e o meio em que ele está (natureza, principalmente) — cineastas como Eric Rohmer e Hong Sang-Soo quase se encaixariam nisso, comuns em várias características, mas eu acho que seus filmes ainda são um pouco mais ligados à ideia de narratividade, de que há de fato uma “história” acontecendo em seus filmes e é preciso prestar atenção nela. 

Inclusive, como em Hong Sang-Soo, Kostrov possui uma lógica na direção que é a de criar novos planos dentro de um único só, por um estado de mutabilidade que, ao invés de usar o corte, faz do plano-sequência uma possibilidade de re-enquadrar novas imagens por movimentos como o zoom out e in, quase que seguindo uma “decupagem interna”. Por exemplo, há um momento em que um personagem está dentro de um apartamento e o fundo da janela superexposto todo branco. Quando  o que está dentro não interessa mais e o personagem se direciona para a janela, a superexposição é corrigida e vemos o que está para fora da casa, com um movimento de zoom in que enquadra um novo mundo totalmente diferente do anterior, ainda que sob plano-sequência.  

A partir disso, é como se o diretor deixasse seus atores agirem livremente para atuar dentro daquele espaço, em suas movimentações ou conversas, enquanto ele vai usando sua câmera, como um curioso, investigando diferentes pontos de interesse ao longo da duração do plano. Ou seja, é como se Kostrov fizesse o mesmo movimento de dispersão do espectador, em direção a um estado de entropia, com um olhar que provisoriamente até se deixa esquecer seus próprios personagens e se distrai com outros pequenos milagres que o plano oferece, como as faíscas de uma fogueira acesa na escuridão ou a própria expressão corporal de um personagem em suas mãos enquanto ele fala.

Apesar do filme parecer muito livre em tudo que faz, Kostrov também lida com ideias mais calculadas em sua execução, como é a contraposição entre sequências diurnas e noturnas, postas em dialética. Em um primeiro momento, acompanhamos a protagonista feminina pelo dia, fazendo uma calma trajetória silenciosa pela natureza, colhendo uma fruta e uma flor, sempre ao som natural de pássaros. O papel de Kostrov é transformar tudo em uma observação meditativa que observa com encanto aquela sinergia por um estado de fluidez. Em seguida, a garota encontra um amigo (ou interesse amoroso?) na floresta e acompanhamos os dois em uma conversa bem rohmeriana (“o que é o pôr do sol?”). O rapaz, diferente dos sorrisos soltos da moça, possui uma relação bem mais introspectiva e insegura consigo. Ao fim deste encontro, Kostrov abandona a mulher e passa a seguir aquele rapaz, por uma trajetória noturna que parece se conectar com as imagens que o diretor captura. 

O que vemos então é, ao invés de um mundo de luz, uma imensidão escura que toma conta do plano, ao ponto de praticamente não permitir com que se enxergue o personagem, virando uma sombra, a não ser pelo cigarro que fuma. Também muito diferente dos sons da natureza e do mar verde, passamos por uma espécie de fábrica metalúrgica que se mistura com uma ferrovia de trem, preenchendo o vazio negro por fumaças e também o sonoro por barulhos metálicos e brutos, que vão acompanhando aquela caminhada solitária perdida em direção à escuridão. 

Uma outra impressão gerada pela direção de Kostrov é a de que ele parece deixar seus personagens se afastarem cada vez mais do plano, quase como se deixasse que eles seguissem seu próprio caminho. Neste caso, a câmera teria apenas o papel de capturar o máximo possível, respeitando esse espaço de distanciamento, o movimento natural de entropia. Quando os jovens estão na mata andando, por exemplo, e árvores passam a tapar boa parte do campo de visão, o diretor não muda de posição para reenquadrar a cena com mais clareza. 

É claro que é possível falar de Verão por meio de várias associações metafóricas que ele possibilita, como dizer que sua própria lógica anti-narrativa mimetiza o tédio e a solidão juvenil, mas este parece ser um caminho mais óbvio a ser pensado de um filme que é muito mais complexo e livre de gramáticas pré-estabelecidas em suas experimentações. Há, por exemplo, uma conquista muito possibilitadora a partir da opção em filmar por câmeras amadoras com imagens de baixa qualidade (algo como os filmes de João Pedro Faro são no Brasil), que trazem novas texturas as imagens, transformando o cotidiano em um mundo cru de ruídos e incomunicável, o que também permite uma aproximação com uma ideia de abstração dos espaços, deslocalizando o que se vê de uma temporalidade.

Verão (Leto, 2021) — Rússia
Direção: Vadim Kostrov
Roteiro: Vadim Kostrov
Elenco: Gosha Gordienko, Vova Karetin, Mira Talanova, Nelya Vyvodnova
Duração: 109 mins

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