“Você gosta de Jean-Luc Godard? (se não, está por fora)”. Na revisão crítica que Glauber Rocha faz a respeito da História do Cinema em 1967, lemos esta reverência ao cineasta que transforma para sempre o rumo do audiovisual. Num texto que acaba desaguando em dois extensos comentários críticos sobre Godard, Glauber revê o contexto do lançamento de Vento do Leste, película que, além de contar com a participação do diretor brasileiro, é vista como a “fofoca” do ano entre críticos, cinéfilos e a classe intelectual daquele fatídico ano. Ainda antes de ser lançado, já corriam boatos de que esse não seria um filme mas um experimento, de modo que ameaças de processo rolavam soltas, afinal, a equipe fora contratada para produzir um filme de enredo, que pudesse ser comercial.
Para desespero de todos, se passam dez minutos de película e o filme ainda está no plano inicial, num longo e exaustivo plano de dez minutos que enfoca dois jovens deitados na grama enquanto a personagem de Anne Wiazemsky, em voice-over, faz um relato sobre uma greve operária. “Isso não é um filme!” – corriam reclamações durante a apresentação da obra. A produtora irá processar todos os envolvidos, uma vez que fora encomendado um western. Era clara a convicção de que isso que se via na tela, embora genial, não era uma película.
Como se respondesse de modo retórico a todo aquele burburinho que se dava, manifesta-se, então, ainda no primeiro ato, uma voice-off: “o que é um filme?”. Logo se apresentam personagens típicos de um western hollywoodiano mas numa estrutura avessa à forma tradicional. Pronto: ninguém poderia dizer que não era um filme, tampouco que isso não é um faroeste. Como circulava entre a juventude francesa, esse era um western de esquerda. Esse paradoxo só poderia ser produzido por Jean-Luc Godard, e jamais por outro.
Vento do Leste, de 1970, é uma produção do grupo Dziga Vertov (Godard-Gorin, 1969-1971), cujo conteúdo temático investiga, num tom de ensaio, os rumos do marxismo na cultura. O filme, que é produto direto dos recentes debates políticos que emergiram pós Maio de 1968, apresenta um enredo composto por inúmeros personagens emblemáticos: o indígena, o militar, a moça burguesa e seus familiares, estudantes de esquerda, operários e militantes. Entre um corte e outro, observamos a gênese do faroeste emergir na construção de enredo: estão lá todos os personagens conhecidos desse gênero hollywoodiano. Se inicia com um relato de um sequestro, faz-se a ponte para a greve operária que se dá em razão dos abusos dos patrões e logo enreda num influente ensaio sobre política e teoria do cinema. O filme mais emblemático do grupo Dziga Vertov se põe como autoridade prototípica e referência primeira para a estética de obras como Vladimir et Rosa e Tudo Vai Bem.
Se aqueles modelos da Nouvelle Vague tinham por objetivo romper com o cinema clássico, aqui, nos idos dos anos 70, o avanço da técnica é ainda mais feroz e vanguardista. Opera-se com uma polifonia narrativa produzindo, na síntese entre imagem e som, um ruído-manifesto. Observamos o desenrolar de uma das inúmeras teorias godardianas para o cinema: a superação da união entre imagem-som e a separação de ambas. Em Vento do Leste, o radicalismo da estética une-se à ideologia radical (radical no sentido marxista da palavra): o som não se conecta imediatamente à imagem, fazendo com que haja essa polifonia, isto é, uma cinematografia estranha. Essa revolução no trato estético proposto no longa-metragem é fruto da busca por um cinema que dá a ver o problema da luta de classes.
Deste modo, ao mesmo tempo em que a narração em off delineia os problemas do materialismo histórico-dialético, a forma do filme responde, à nível de estilo, a esse problema, rompendo com a forma burguesa de se fazer cinema. Comento sobre essa questão da estilística revolucionária godardiana como resposta ao cinema clássico-burguês num texto que escrevi sobre A Chinesa. Parafraseando uma sentença do próprio filme, não existe cinema que esteja acima da luta de classes; a Sétima arte está sempre dominada pela tensão dialética, de modo que a classe dominante cria imagens dominantes que reforçam a sua ideia e consequentemente a sua dominação, por isso é necessário romper, revolucionar, dissolver e refazer. Talvez esta seja a resposta mais completa e sintética a respeito da forma fílmica.
O enredo avança numa busca sobre determinar uma ação concreta e politicamente participante. A ação é portanto destruição e reconstrução. É consenso: não há revolução sem destruição. Neste contexto, assistimos à aparição de Glauber numa das cenas mais icônicas e complexas do filme – e também da filmografia do próprio Godard. O cineasta brasileiro aparece no meio de uma encruzilhada, com os braços abertos simulando estar crucificado, enquanto canta Divino Maravilhoso de Gil e Caetano. Uma personagem feminina, caminhando rumo a ele, pergunta qual é o caminho para o cinema político. Então, da encruzilhada, ele responde apontando com o braço direito para o “cinema de aventura”, e, com esquerdo, para o “cinema do terceiro mundo”, que é um cinema perigoso, “divino e maravilhoso”, e aí segue um extenso monólogo numa orgia intelectual poderosa.
A cena do Glauber é importante porque ilumina muitos pontos a respeito do enredo do filme. O brasileiro conta que num encontro em Paris com Godard, este, insatisfeito com tudo, o chama para “destruir o cinema”. Prontamente Glauber responde: “que destrua você o seu cinema imperialista, colonialista. Eu estou interessado em construir o cinema do terceiro mundo. Como vou destruir algo que não existe?”. Veja que a cena da encruzilhada expõe, por meio da alegoria, essa divergência insuperável entre primeiro e terceiro mundos, revelando, no embate, uma autocrítica que Godard faz a si mesmo. Em razão disso, a mise-en-scène sugestivamente se faz com um foco num caminho entrecruzado, na encruzilhada, porque a discussão fílmica é sobre os caminhos e descaminhos da luta revolucionária, a escolha de como agir. A saída seria, então, a descoberta do cinema do terceiro mundo e a destruição do cinema industrial e imperialista. É lá que está a verdade e não na farsa do enredo burguês que concebe o cinema clássico hollywoodiano.
Unindo política e estética como representantes de um mesmo signo, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin transformam o Vento do Leste em um dos maiores, senão o maior, filme político de todos os tempos, censurado em inúmeros países e incompreendido por um número expressivo de críticos e cinéfilos. Não é possível que se dê conta da amplitude do filme porque ele mobiliza inúmeras frentes de discussão, mas é possível apontar algumas linhas de força que vigoram no enredo de Vento do Leste, como devidamente apresentado ao longo do texto. Os anos 70 vão além da Nova Onda e se mostram autênticos na busca de uma estética transgressora e materialmente dialética. Fundamental no estabelecimento do estilo de JL Godard, Le Vent d’Est mostra-se presente na estilística godardiana mesmo após cinquenta anos de seu lançamento, aprofundando e complexificando aquilo que cunhou chamar de “cinema de autor”. Diante de tudo o que se apresenta nesta película, lida pela tradição como obra-prima do cinema político e um exemplo único do uso de técnicas modernas no cinema, nota-se que a morte de Godard é também a morte do cinema.
Vento do Leste (Le Vent d’Est, França, Itália, 1970)
Direção: Dziga Vertov (Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin)
Roteiro: Jean-Luc Godard, Daniel Cohn-Bendit, Sergio Bazzini
Elenco: Gian Maria Volonté, Anne Wiazemsky, Glauber Rocha, Allen Midgette, Christiana Tullio Altan, José Varela, Götz George
Duração: 95 min.