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Crítica | Veneno: Anjo de Bremen

"Prezada senhorita..."

por Luiz Santiago
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Em 21 de abril de 1831, Gesche Gottfried foi decapitada em praça pública, após ter passado três anos na prisão. Ela foi a última pessoa executada em público na cidade de Bremen, Alemanha, e seu caso é até hoje comentado na literatura especializada em crimes seriais. Outro meio de lembrança de sua existência é a “pedra preta com a cruz“, marcando, no chão da cidade, o local onde ela foi executada — um ponto onde até hoje é hábito de as pessoas cuspirem. Neste quadrinho intitulado Veneno: Anjo de Bremen, lançado em 2010, a dupla de artistas faz uma abordagem muito interessante do caso, não abordando a situação de maneira direta ou cronológica, mas inserindo-a na narrativa de forma sólida, com um bom número de detalhes. O recorte dramático se dá entre o dia anterior e o próprio dia da execução de Gottfried, e vemos a grande movimentação na cidade pelos olhos de uma jovem escritora inglesa, que chegara ao local para realizar, a pedido de uma famosa editora, um relato de viagem.

A arte de Barbara Yelin consegue captar perfeitamente o ambiente tenso e denso da cidade hanseática, no começo do século XIX. Utilizando lápis e borracha e partindo de uma finalização mais rústica dos desenhos, trazendo bastante desfoque, hachuras grossas, traços ingênuos (naïf) para o rosto dos personagens e concepção geral do ambiente urbano, a estética da HQ exprime com competência o medo que a escritora sentiu ao chegar em Bremen. Para isso contribuiu a rápida hostilidade que se levantou diante da personagem, fazendo-a vivenciar o machismo agressivo que a via como inimiga em potencial. Ela é repreendida por estar sozinha, por ser escritora, por ler “autores para homens“, por ser solteira e por contestar coisas ditas pelos ilustres senhores da cidade. Esse incômodo externo e interno da mulher está posto nos desenhos de forma aplaudível, realçando a aura sombria que paira sobre o evento histórico e as pessoas em Bremen.

O tratamento visual desta ficção histórica me lembrou certos cenários dos filmes de Carl Theodor Dreyer. Tematicamente, o texto de Peer Meter mescla religiosidade exagerada com culpa, corrupção, medo, opressão e ameaças constantes a tudo o que é diferente. Ainda assim, é com espanto que vemos o rastro de morte deixado por Gesche Gottfried, num contexto social quase conivente que a cercou por 14 anos. Entre 1813 e 1827, ela matou 15 pessoas e deixou outras tantas em grave situação de saúde. Entre as vítimas estavam seus dois esposos, o noivo, os filhos, os pais e o irmão. Ela adicionava à comida que oferecia às pessoas um pouco de “manteiga de camundongos” (Mäusebutter), composto que consistia em pequenos flocos de arsênico misturados em gordura animal.

Para a visitante que ouvia esses fatos pela primeira vez, algumas perguntas incômodas afloraram. Ela aponta que a sociedade local parecia ter aceitado com tranquilidade aquelas mortes, não fazendo nada para deter ou investigar a criminosa, mesmo diante das incontáveis suspeitas contra ela. Supõe-se que Gesche Gottfried sofria, dentre outros distúrbios mentais, de síndrome de Münchhausen por procuração (ou transtorno factício imposto a outro). À época, sua sanidade mental foi brevemente questionada, mas essa ideia acabou sendo rejeitada no processo, e ela foi a julgamento e acabou sendo condenada por agir “exclusivamente por pura maldade“. Levando isso em consideração, o questionamento sobre a responsabilidade coletiva é imediatamente levantado pela escritora, e sua situação na cidade fica ainda mais delicada.

Em 1972, o cineasta R. W. Fassbinder dirigiu A Liberdade de Bremer: Afinal, Uma Mulher de Negócios, adaptando livremente a vida e os atos de Gesche Gottfried. Além de ser um caso muito macabro, não deixa de chamar a atenção os relatórios errados dos médicos para todas as mortes na casa e no entorno da assassina, além de sua ação como envenenadora ter sido fofocada por anos na cidade e nem a polícia, nem a justiça, nem os civis tiveram alguma atitude para colocar a situação a limpo. É um evento histórico com ações infames e um egoísmo coletivo que só poderia terminar num “exemplo regenerador” (através da execução) que só serviu para espetáculo público e preenchimento do ego das lideranças masculinas da cidade. Na memória de uma jovem escritora, tudo isso se tornou um trauma. Já para o leitor de Veneno, o caso ganha uma sombria luz capaz de arrepiar o corpo inteiro.

Veneno: Anjo de Bremen (Gift) — Alemanha, 2010
Roteiro: Peer Meter
Arte: Barbara Yelin
Editora original: Reprodukt
No Brasil: DarkSide Books (2022)
Tradução: Rebecca Paola Gerndt
208 páginas

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