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Crítica | Veludo Azul

por Luiz Santiago
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Definido pelo diretor como “uma história de amor e mistério”, Veludo Azul (1986) é daqueles filmes que começam a polarizar opiniões já nos primeiros minutos de projeção, pois cada espectador irá receber de maneira diferente o contraponto da cidade com suas casas de cerca branca, jardins bem cuidados, carro de bombeiros desfilando pelas ruas e tradicionais valores sociais e familiares versus um mundo obscuro de marginais baratos, com manias sexuais, assassinatos e absurdos cotidianos baseados nas intricadas teias de eventos do cinema noir e de mistério — notadamente do quarteto A Sombra de uma Dúvida (1943), Um Retrato de Mulher (1944), Um Amor em Cada Vida (1945) e Janela Indiscreta (1954) — para tornar coisas aparentemente banais em pistas de uma investigação que é, em tudo, teatral.

A teatralidade em Veludo Azul é a chave mestra para que entremos em todas as portas psicológicas e simbólicas da fita ao mesmo tempo que a aceitamos como um peça nostálgica, com detalhes de O Mágico de Oz entrelaçados com sexualidade, sonho, melodrama, choque e um tipo de linguagem que nos instiga a ponto de quase romper o andamento da obra, para então entregar outra linha teatral de mistérios e estranhezas diante da qual seguimos. E tudo começa com um acaso, quando o universitário Jeffrey (Kyle MacLachlan) volta para a pacata Lumberton após seu pai, Tom (Jack Harvey), sofrer um derrame. Nesta parte, que podemos chamar de “introdução”, temos não apenas a cortina azul tremulando levemente ou a cidadezinha em todo o seu esplendor (lembrem-se, a teatralidade é vital para a construção deste filme e terá presença tanto nas atuações quanto no roteiro e no modo como o diretor faz as tomadas) mas também a rápida quebra daquilo que parece ser a normalidade. A queda das máscaras.

Após visitar o pai no hospital, Jeffrey, o inicialmente inocente jovem que verá o pior de si vir à tona ao longo do filme, encontra uma orelha humana, ficando obcecado pela investigação do que estava por trás daquilo. Ajudado por Sandy (Laura Dern), a filha do detetive responsável pelo caso, Jeffrey chega a uma das suspeitas de ter algo a ver com a orelha decepada, a cantora Dorothy Vallens (Isabella Rossellini, cujas cenas de “exposição do corpo” geraram furor e acusações a Lynch, embora a atriz jamais tenha se referido negativamente a nenhuma dessas cenas, muito pelo contrário, ela fala que depois do ataque de risos do diretor, passou a gargalhar toda vez que revia a tomada em que era “ritualisticamente estuprada” por Frank. E sim, ela estava nua por baixo do robe, naquela cena). Daí em diante, a investigação é tomada de surpresa e, assim como uma doença do corpo foi capaz de trazer Jeffrey para a cidade, será uma doença da mente e/ou do espírito que mostrará para que que a cidade guarda muitos segredos. E para a surpresa do próprio Jeffrey, ele também.

David Lynch manipula as cartas para nos introduzir a camadas de voyeurismo e colocar toda a caraterística sensorial que é a base de seu cinema. Aparentemente o odioso e magnificamente interpretado personagem de Dennis Hopper (Frank) é a base dos males na obra, mas o roteiro vai mostrando que o mal pode se apresentar em diferentes formas e que está em todos os lugares e pessoas, sendo impedido de vir à tona por fatores externos e, talvez, “espirituais”. Os pequenos núcleos no interior da obra mostrar isso, assim como a cidade, que é um palco-personagem, vista de maneira tradicional e limpa por uns e de maneira suja e assustadora por outros. O presságio que temos no começo, quando vemos os besouros se devorando na grama, vai se tornando cada vez mais real, com os “besouros humanos” procurando matar uns aos outros. O curioso é que todos esses personagens, mesmo à margem da sociedade, estão cercados por contraste de comportamento. Na fotografia e nos figurinos isso pode ser notado mais precisamente na escolha do branco e rosa (além do angelical cabelo loiro) para o Universo de Sandy e no azul, preto, roxo e vermelho que marcam o mundo dos estereótipos subvertidos de Dorothy.

Lynch, após concordar em receber um salário menor e trabalhar com baixo orçamento, recebeu total liberdade do produtor executivo Dino De Laurentiis, que era quem poderia tolher boa parte de suas polêmicas escolhas, especialmente na representação deste mundo obscuro que parece odiar figuras paternas, mas foi deixado praticamente sem supervisão durante todo o período de filmagem e pós-produção, podendo trazer livremente o seu amontoado de coisas do dia a dia refiguradas como símbolos que afetam os personagens; primeiro o azul, marcando o território dos segredos; depois a eletricidade, marcando a ocorrência dos assassinatos e, por fim, o fogo, que como sempre em seus longas, representam uma força incontrolável, normalmente servindo como marco na vida dos indivíduos.

A repetição da canção Blue Velvet, de Bobby Vinton, assim como a presença de In Dreams, de Roy Orbison e as incursões de Angelo Badalamenti, que faz uma ponta no filme como um dos pianistas do lugar onde Dorothy canta, dão a atmosfera de ameaça suave, de perigo escondido que sentimos ao longo da fita. O mistério é resolvido, o pássaro robin e sua representação de amor e luminosidade aparece ao final, mas nada disso realmente importa. O espectador não se engana mais pela aparência. O bombeiro acenando, o dálmata no carro, a cerca e os jardins estão agora “contaminados” por esta visão de que tudo é uma farsa dentro de uma farsa, encerrada como um ciclo, tanto na repetição dos takes vistos no início, quanto no retorno da cortina azul que se fecha sobre a aparente beleza, agora mergulhada em falsidade e desespero. A realidade encoberta pelo veludo azul do mundo real.

Veludo Azul (Blue Velvet) — EUA, 1986
Direção: David Lynch
Roteiro: David Lynch
Elenco: Isabella Rossellini, Kyle MacLachlan, Dennis Hopper, Laura Dern, Hope Lange, Dean Stockwell, George Dickerson, Priscilla Pointer, Frances Bay, Jack Harvey, Ken Stovitz, Brad Dourif, Jack Nance, J. Michael Hunter, Dick Green, Fred Pickler, Philip Markert, Leonard Watkins, Moses Gibson, Selden Smith, Peter Carew, Jon Jon Snipes, Angelo Badalamenti
Duração: 120 min.

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