Imagine que você é um nerd que cresceu lendo as histórias de dois artistas franceses chamados Pierre Christin e Jean-Claude Mézières em uma revista de quadrinhos franco-belga chamada Pilote. Imagine que ao crescer, você se torna um cineasta e mantém o sonho, desde o início da graduação, de adaptar para o cinema o seu quadrinho favorito de infância, Valérian e Laureline. Enquanto a tecnologia que possibilitará isso não chega, você entra em contato com Mézières e outro amigo dele, Moebius, para com base em seus Universos, fazer um filme chamado O Quinto Elemento. Vinte anos se passam. Você percebe que agora existe a tecnologia certa para levar essa ideia adiante. O filme dos seus sonhos. E então produz, escreve e dirige o projeto sem nenhuma grande interferência criativa, o que acaba sendo o seu grande problema. Você peca pelo excesso de tempo em um filme de 2h17 minutos de duração (dando para o espectador a sensação de que na verdade é de 4h34 minutos), com um roteiro cheio de pantinhos e diálogos que parecem ter saído de uma história escrita por uma criança do Ensino Fundamental. Seu filme é lindo, mas não diz nada com nada. Seu nome é Luc Besson.
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Depois de Avatar (2009), Besson disse ter certeza de que poderia realizar o filme que sempre dirigir. Enquanto esperava o momento financeiro certo e o “ano certo” para o lançamento (este “ano certo” seria quando o quadrinho completasse 50 primaveras, ou seja, 2017), o diretor começou a produção, reunindo-se com os criadores de Valérian e Laureline, adquirindo os direitos para a adaptação livre de O Embaixador das Sombras (1975) e para o uso de elementos dramáticos do álbum O Império dos Mil Planetas (1969 – 1970), do qual sairia formação da Estação Espacial Alpha, a grande reunião de nações da Terra e de nações alienígenas de toda a Galáxia, posteriormente chamada de Cidade dos Mil Planetas.
O filme abre de maneira brilhante, com a filmagem real da acoplagem, na órbita da Terra, do Módulo de Comando e Serviço Apollo (EUA) com a Soyuz 19 (URSS), no dia 17 de julho de 1975. O simbolismo desse fato histórico, que no mundo real foi mais teórico do que prático (demonstração de amizade, respeito e compartilhamento de conhecimentos científicos entre nações) foi perfeitamente aproveitado pelo diretor e roteirista para nos mostrar a origem da Cidade dos Mil Planetas. Nesta realidade, a acoplagem é o primeiro esforço de muitos que permitirão, nas décadas, séculos e milênios seguintes, que naves acoplem e fiquem juntas definitivamente, tendo assim, em uma única Estação Espacial/Satélite módulos de diferentes países e depois, de diferentes planetas, onde missões terráqueas recebem e saúdam missões alienígenas, tudo isso ao som de Space Oddity, de David Bowie. É de arrepiar de tão poderoso, esteticamente belo e muito, muito bem filmado.
Para o filme, Besson utilizou em tela pelo menos 200 espécies diferentes de aliens (embora o roteiro fale de mais de 3000 espécies convivendo em Alpha), a maioria delas vindas dos quadrinhos, mas há algumas espécies inéditas, criadas especialmente para o filme. E sim, tudo isso tem um imenso impacto visual, que beira a perfeição. Cada espécie possui vocalizações/sons particulares, cultura e maneirismos próprios. Exceto os Pearls, cuja história que seria uma ótima crítica ao colonialismo europeu na África e na Ásia, mas no filme é representado como um ordinário conflito bélico que segue para uma intriga que não é bem uma intriga, essas criaturas são colocados de maneira orgânica no filme, como parte da apresentação de um território de Alpha ou como espécie habitante, turista e ativa da Estação Espacial. Sendo o filme mais caro feito na França até hoje, superando o então recordista, Asterix nos Jogos Olímpicos (2008), que havia superado outro filme de Besson, O Quinto Elemento, A Cidade dos Mil Planetas não faz feio em sua qualidade técnica, sob nenhum aspecto.
Embora o diretor tenha escolhido não filmar em 3D porque essas câmeras seriam muito pesadas para o tipo de movimentação no eixo e deslocamento que empregaria nas cenas, acompanhando os atores correndo ou criando tomadas de ângulos quase impossíveis, a passagem do filme para esta tecnologia vale muito a pena. Como são muitos cenários visitados (terra, água, ar, naves, portais, espaço aberto) e há muitas tomadas em perspectiva, a sensação de profundidade de campo, quebra de dimensões e destaque de objetos, naves e personagens na tela são marcantes. Com os esforços da Weta Digital e ILM (Industrial Light & Magic), que juntas, já fizeram Contato (1997), Van Helsing: O Caçador de Monstros (2004), Eragon (2006) e Avatar (2009), o CGI, captura de movimentos e efeitos visuais alcançam um nível admirável na produção, carregando o longa o nas costas.
Mas então vem a história e praticamente todo esse esforço técnico é colocado por terra. O roteiro de Valerian e a Cidade dos Mil Planetas é uma verdadeira piada mal contada sobre uma base clichê de espécie e planeta destruídos pela ganância e orgulho humanos (que até poderia funcionar se o restante da obra explorasse bem o significado desse conceito), piorado por uma das piores escalações de papeis principais de todos os tempos, com Dane DeHaan vivendo o Major Valerian e Cara Delevingne, que nem atriz é, como a Sargento Laureline. Sem expressões marcantes por parte dos atores, com diálogos sofríveis e mal interpretados, demonstrações forçadas de amor que o filme faz questão de nos lembrar o tempo inteiro (dando espaço para o surgimento de um casal chato e com o qual a gente não se importa), redundância na retomada crítica da espécie Pearl e com didatismo desnecessário do meio para o final do filme, fica difícil para o espectador se divertir de verdade, para além da apreciação visual.
Para não dizer que não existe nenhum momento que se salva do enredo, há que se destacar aqui a soberba sequência do Grande Mercado, com uma perigosa missão e um informante ou “contato” em um lugar hostil, lembrando também o storyboard de uma série não criada de Valérian e Laureline, Os Asteroides de Shimballil. Todo o trajeto funciona muito bem com a brincadeira de realidade virtual, mostrando um mercado inteiro em outra dimensão, mas cujo portal de entrada fica em um planeta desértico, muito bem desenhado e cheio de interessantes armadilhas. Se descontarmos a chateante sequência de apresentação da dupla (sim, eles já começam mal) e a perseguição do monstrengo que é enviado para matar Valérian, esta parte e a intro do filme são as coisas boas do roteiro.
Do restante do elenco, vale dizer que Clive Owen está péssimo em seu papel, fazendo o vilão mais genérico, mais óbvio e mais sem graça possível, praticamente sem desenvolvimento dramático, apenas com frases de efeito racistas para chocar o público e mostrar o quão malvado ele é. Ethan Hawke faz um bom trabalho, mas não tem muito tempo para brilhar. Já os músicos Herbie Hancock (Ministro da Defesa) e Rihanna (Bubble) estão bem, dentro de suas limitações como atores (que não são), mas suas cenas poderiam facilmente ser retiradas do filme e, o que fazem, poderia chegar como mensagem aos agentes espaço-temporais de outra forma, especialmente no caso de Rihanna, que mesmo fazendo vivendo uma personagem muito bacana, acaba sendo apenas um episódio dentro do filme, sem o qual a obra seguiria tranquilamente.
Muito mais longo do que deveria, marcado por um romance insosso e martelado para o público o tempo inteiro, uma proposta boba de conflito e mal desenvolvimento de personagens, A Cidade dos Mil Planetas é aquele tipo de filme que encanta pelo olhar, pelos figurinos, pela fotografia e trilha sonora, mas enraivece por tudo o que o seu roteiro diz. A morna performance do filme nas bilheterias e a má recepção geral da crítica ameaçam a EuropaCorp, produtora de Luc Besson, e cá deixo os meus votos para que esta ameaça não se concretize. Caso tudo dê certo e uma sequência se torne realidade, Besson precisará de uma equipe e outros produtores que lhe barrem os excessos. E de um outro roteirista, alguém que realmente saiba escrever uma história de ficção científica com heróis mais jovens em um complexo e absurdamente rico Universo como este de Valérian e Laureline.
Valerian e a Cidade dos Mil Planetas (Valerian and the City of a Thousand Planets) — França, 2017
Direção: Luc Besson
Roteiro: Luc Besson (baseado nos quadrinhos de Jean-Claude Mézières, Pierre Christin)
Elenco: Dane DeHaan, Cara Delevingne, Clive Owen, Rihanna, Ethan Hawke, Herbie Hancock, Kris Wu, Sam Spruell, Alain Chabat, Rutger Hauer, Peter Hudson, Xavier Giannoli, Louis Leterrier, Eric Rochant, Benoît Jacquot, Olivier Megaton
Duração: 137 min.