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Crítica | Vale o Escrito – A História do Jogo de Bicho – 1ª Temporada

A origem da espetacularização do jogo ilegal mais famoso do Brasil.

por Arthur Barbosa
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Inaugurando os trabalhos das críticas de séries documentais aqui, no Plano Crítico, vamos analisar o documentário Vale o Escrito – A História do Jogo de Bicho, o qual expõe de forma inédita e escancarada a forma como os bicheiros usaram as Escolas de Samba do Rio de Janeiro (RJ), por exemplo, para serem aceitos pela sociedade no maior espetáculo popular a céu aberto do mundo. Narrada de uma forma um tanto novelesca, o roteiro parece ser uma tragicomédia, na qual a disputa pelo dinheiro e, principalmente, por territórios são os principais objetivos dos grandes chefes de um dos jogos mais populares e clandestinos brasileiros. Nesse sentido, tendo a característica de contar profundamente a intimidade dos familiares e o auge dessa disputa financeira, sem sombras de dúvidas, esses são os maiores méritos dessa produção original Globoplay, lançada em novembro de 2023 e exibida na TV Aberta, no segundo semestre de 2024. Em uma bela definição, peço licença para parafrasear a jornalista e a colunista Patrícia Kogut, do Jornal O Globo: “É uma novela sem heróis, só com vilões!”. Dessa forma, o buraco aqui é muito mais profundo do que a gente imagina, mostrando que a prática ilícita mencionada vai demorar muitos anos para ser destituída, inclusive pelos seus próprios membros.

Durante sete episódios eletrizantes, somos apresentados aos dramas familiares contendo grandes desdobramentos: traições, mortes, infidelidades conjugais e conflitos de poder na “Cidade Maravilhosa”. No seriado, criado por Fellipe Awi, com supervisão artística de Pedro Bial e codireção e roteiro de Ricardo Calil, os acontecimentos superam qualquer novela de sucesso da Rede Globo produzida por João Emanuel Carneiro ou por Glória Perez, ao oferecer uma camada de legitimidade ao resultado final por meio da narração emocionante de Bial. Vale a pena conferir, pois é uma tentativa – mesmo que complexa e estarrecedora – de tentar entender a história da evolução do crime nas terras cariocas desde os anos de 1970 até os dias atuais, com os jovens herdeiros do Jogo de Bicho ostentando uma vida de luxo, enquanto os anfitriões seguem sendo respeitados e amados pelo povo.

Logo nos primeiros episódios, acompanhamos as décadas em que o Jogo do Bicho era apenas uma cartelização da atividade no seu surgimento em 1892, em um zoológico. Todavia, conforme o tempo foi passando, além de ter se tornado uma empresa lucrativa, os assassinatos e os tiros à queima-roupa também fazem parte deste Vale, repleto de Escrito e de desejo de vingança e de poder. O trabalho exemplar de pesquisa – realizado por Iúri Barcelos – é profundo, assim como os depoimentos de familiares, de jornalistas, de policiais e de pessoas que conviveram com aquelas figuras um tanto perigosas e vingativas, repletas de rancor. O mais interessante são os depoimentos de indivíduos centrais, os quais se desnudam sem pudor, tampouco vergonha ou subterfúgio em suas revelações mais profundas, guardadas no coração por muitos anos. Elas não prometem nada, mas entregam tudo em suas falas, desde Sabrina Garcia, ex-mulher do conhecido bicheiro Maninho, até as filhas dele, as gêmeas e inimigas Shanna e Tamara. A lista é extensa, vejam: há relatos de Ana Paula, a viúva dele; de Bernardo Bello, ex-marido de Tamara, homem que teria roubado todos os negócios de Maninho; do Capitão Guimarães, em prisão domiciliar na cidade de Niterói (RJ); do nonagenário bicheiro Piruinha, o decano da Cúpula da Contravenção (pasmem: ele ainda encontra-se em atividade!); do Fabrício Queiroz, envolvido na “rachadinha” do atual senador Flávio Bolsonaro; e de Júlia Lotufo, viúva do ex-policial militar e matador Adriano da Nóbrega. Ufa… A lista é enorme, porém a falta de compostura e a vulgaridade de alguns depoimentos também é gigantesca e, principalmente, chocante, ou seja, de embrulhar o estômago de qualquer telespectador desavisado e despreparado para maratonar o documentário.

Os capítulos são uma verdadeira tapeçaria de narrativas em que todas as figuras se entrelaçam de uma maneira extraordinária. Podem ser amigos, parentes, colegas, namorados ou sócios: de uma maneira ou de outra, todos eles estão hiperconectados em um pacto, seja de dinheiro, seja de vingança. Ademais, a produção também ajuda a criar um panorama geral, o qual, até o presente momento, era somente sobre o jogo em si. Todavia, ele se torna ainda maior e, claro, mais impactante, se desenrolando e se ramificando para uma grande situação em que já não se trata mais de uma disputa, e sim sobre uma guerra sangrenta, extremamente perigosa. Nesse viés, vale ressaltar que o seriado documental é comparável ao conteúdo do clássico O Poderoso Chefão (1972), juntamente a sua continuação em O Poderoso Chefão – Parte II (1974), e também da série The Sopranos (1999), pois, da mesma maneira que na obra cinematográfica mencionada, “(…) os princípios e as doutrinas da máfia: o respeito, a lealdade e nunca dedurar (…)” devem ser invioláveis, porém os membros da quadrilha do jogo clandestino são apresentados com as mesmas complexidade e nuances dos personagens fictícios do filme citado e, em função disso, as regras da frase apresentada muitas das vezes são difíceis de serem seguidas de forma fiel. Miro Garcia, Capitão Guimarães, Anísio Abraão David, Castor de Andrade fazem parte de um grupo seleto, em que a confiança de uma possível trégua entre as partes é sempre violada. A partir disso, de uma forma ambiciosa, de tempos em tempos, a guerra entre as famílias os Andrade e os Garcia, por exemplo, volta a imperar entre os territórios disputados que permeiam no sangue e nas árvores genealógicas dos familiares contrabandistas.

Outro aspecto positivo foi a inclusão de cenas reais inseridas ao longo da primeira temporada, visto que o tempo inteiro elas foram úteis para ambientar de forma orgânica o telespectador nos espaços em que ele estaria se adentrando, repleto de intrigas e de segredos. Para isso, então, são usados mapas, recortes de entrevistas, imagens e vídeos de arquivos pessoais, antigos programas de televisão e, até mesmo, ilustrações que ajudam a enriquecer a trama e a dinamicidade. Contudo, no final, eu fiquei me questionando o motivo pelo qual o Jogo do Bicho é ilegal até os dias de hoje, assim como a razão pela qual o Governo Federal, em parceria com a Caixa Econômica Federal, por exemplo, ainda não regulamentaram as fezinhas – as famosas apostas – desse jogo, porque ele se mantém cada vez mais vivo e às claras para qualquer pessoa que deseja jogá-lo em Casas de Apostas ilegais, tanto da capital fluminense quanto de outras unidades federativas nacionais. Em pleno século XXI, com apostas on-line a todo vapor na internet, como o famoso “Jogo do Tigrinho”, como esse jogo ainda consegue existir e ter milhares de adeptos? Desconfio que, ao longo dos anos, desde a sua criação, não houve um diálogo amigável entre os poderosos e o Poder Público, uma vez que ninguém deseja repartir as fatias milionárias envolvendo as trocas financeiras diárias desse jogo tão popular.

Outra característica perceptível é o fato de os bandidos estarem em frente às câmeras e se acusarem mutuamente sem nenhuma cerimônia ou receio, confessando as contravenções que praticaram e, pior, muitos continuam na atividade ilegal. O produto final é a melhor telenovela da realidade que podemos ter na atualidade, em que a presença dos personagens reais é fundamental para a condução dos episódios, de modo que não há uma tendência para defender um lado, pois, nessa guerra, quem será que está realmente dizendo a verdade? Vale o Escrito – A História do Jogo do Bicho foi feita para ser interpretada, isto é, quem assiste pode tirar as próprias conclusões, sejam elas certas ou erradas: vale assistir e vale criticar. Em meio a isso, com gravíssimas revelações, é inevitável ocorrer o sentimento de aflição e de curiosidade ao acompanhar as fofocas dos bastidores do Jogo do Bicho, no desenrolar desse mirabolante quebra-cabeça, no qual a resolução dos conflitos não é por intermédio da Justiça, e sim por meio das complexas relações humanas e os desdobramentos das reviravoltas. É uma crítica contundente à sociedade que ainda permite a existência e a prosperidade desse submundo liderado por poucos, mas respeitado e amado por muitos ao seu redor, por meio da famosa Política do Pão e Circo e da Política Pai dos Pobres para a população local. Dessa maneira, ao revelar os segredos ocultos, o documentário desafia o público brasileiro a refletir sobre as raízes de uma das máfias mais complexas e duradouras do país. 

Portanto, algumas perguntas pairam na minha mente após assistir ao documentário: o que a polícia vai fazer? Qual será a ação do Ministério Público? Como será a segunda temporada e os seus desdobramentos? Afinal de contas, Vale o Escrito – A História do Jogo do Bicho é um grande feito jornalístico da história do Brasil, que, se continuar a ser desbravado, ainda vai apresentar muitos outros segredos escandalosos. Por isso, então, a segunda temporada é mais do que bem-vinda, ela é necessária para um telespectador fofoqueiro pelas desavenças familiares do Jogo do Bicho. Por isso, por valer o escrito, vale no futuro uma nova crítica dos inéditos episódios tão aguardados.

Vale o Escrito – A História do Jogo de Bicho – 1ª Temporada (Brasil, 2023)
Criação: Fellipe Awi
Direção: Ricardo Calil, Mônica Almeida, Gian Carlo Bellotti
Roteiro: Fellipe Awi, Ricardo Calil
Elenco: Sabrina Garcia, Luiz Guimarães, Maninho Garcia, Shanna Garcia, Tamara Garcia, Ana Paula Garcia, Bernardo Bello, Capitão Guimarães, Piruinha, Adriano da Nóbrega, Myro Garcia, Fabrício Queiroz, Bernardo Bello, Júlia Lotufo
Duração: 07 episódios – Cada episódio tendo 60 minutos de duração, em média.

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