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Crítica | Undone – 2ª Temporada

Uma magnífica e emocionante sessão de terapia.

por Ritter Fan
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  • spoilers. Leiam, aqui, a crítica da temporada anterior.

Não fosse um leitor me lembrar, em comentário na crítica da segunda temporada de Boneca Russa, série tematicamente semelhante, era capaz de eu só descobrir que Undone também ganhara um segundo ano em futuro incerto e não sabido dado que o Amazon Prime Video deve ter o pior sistema de sugestão de novo conteúdo de todos os serviços de streaming em oferta no mercado. E ainda bem que ele me avisou (obrigado, Victor Martins!), mandando ainda a descrição perfeita do subgênero à que a criação de Raphael Bob-Waksberg e Kate Purdy pertence: “sci-fi dramédia despirocado existencial”.

E, ainda traçando paralelo com a série de Natasha Lyonne, Amy Poehler e Leslye Headland, minha crítica da primeira temporada de Undone acabou com sentimento semelhante à de Boneca Russa, ou seja, ambas deveriam ter parado ali, sem continuações, por elas serem fundamentalmente desnecessárias. No entanto, enquanto a segunda temporada de Boneca Russa provou meu ponto, desapontando bastante, fiquei surpreso ao constatar que a de Undone me surpreendeu muito positivamente, conseguindo superar e muito sua primeira temporada e fazer aquilo que Boneca Russa tentou, mas falhou.

É claro que a segunda temporada de Undone tem a vantagem de não precisar contextualizar nada ao espectador, um problema da primeira, já embarcando direto em sua história que é, fundamentalmente, uma de investigação do funcionamento da mente humana tendo como motor um mergulho profundo no passado da família de Alma Winograd-Diaz (Rosa Salazar), mas é notável como o roteiro do primeiro episódio é capaz de resumir organicamente todo o acontecido, trazendo a mente da Alma do Universo Prime (chamemo-lo assim para facilitar) para o corpo da alma de um universo paralelo em que seu pai não passou pelo acidente automobilístico que o matou. Nessa outra linha temporal, Jacob (Bob Odenkirk) tem a idade que teria se não tivesse morrido e retém as memórias do Jacob-Prime, com o mesmo acontecendo com Alma, o que torna possível os dois conversarem sobre os eventos de ambos os universos, já que há uma “assimilação” que reúne as versões em uma só. Pode parecer complicado, mas não é, sendo que é particularmente importante lembrar que Undone não tem a menor intenção de oferecer explicações científicas para o que acontece, na mesma forma que Boneca Russa não oferece, pois tudo pode ser interpretado como um construto mental. Temos apenas que aceitar o artifício típico de obras sci-fi para, então, apreciarmos o verdadeiro coração da temporada, que é essa exploração do passado para tornar possível o tratamento de uma mente fragmentada, como uma belíssima forma alegórica de se representar tratamentos psiquiátricos.

Com a presença mais constante de Jacob, a temporada se beneficia da excelente relação dele com Alma que, em seguida, abre espaço para a conexão profunda dela com sua irmã mais velha Becca (Angelique Cabral) que, nesse novo universo, tem o poder inicialmente pouco explorado de entrar na mente das pessoas. Não só esses relacionamentos são preciosos, como os três atores estão absolutamente excelentes em seus respectivos papeis, mesmo com a camada de animação em rotoscopia (que eu particularmente desgosto, mas não tiro pontos pela escolha, pois seu uso não só é justificado, como é muito bem feito) por cima deles. Alma, mesmo tendo conseguido o que queria – ter seu pai de volta – não fica satisfeita com essa percepção de uma vida feliz e logo nota que é sua mãe, Camila Diaz (Constance Marie) que está sofrendo em razão de algum segredo que ela não cansa enquanto não desvenda.

No entanto, os roteiros da temporada não se limitam às obviedades. Sim, o segredo de Camila é quase um clichê narrativo, mas esse não é o ponto. O que realmente interessa é o que está por trás dele, a jornada de descoberta e autodescoberta que principalmente Alma, mas também Becca e Jacob, fazem ao longo dos oito breve episódios que eu simplesmente não consegui parar de ver (e olha que eu tenho ojeriza de maratonar séries!). A investigação que começa simples se torna uma literal “toca de coelho” de Alice no País das Maravilhas, que não só “pula” organicamente da família de Camila para a família de Jacob, como leva o trio para o passado distante para eles conhecerem Ruchel (Veda Cienfuegos), a versão criança de Geraldine (Holley Fain), avó paterna de Alma e Becca, com o maravilho uso de Relatividade, de M.C. Escher, para representar uma vida inteira.

Mais do que isso e mais do que a própria temporada inaugural da série, este segundo ano é uma magnífica, rara e quase lúdica maneira de se abordar doenças mentais, sempre um tema delicado, em uma obra audiovisual. O que antes era, talvez, um foco muito fechado em Alma, ganha outros e fascinantes contornos que ampliam sobremaneira o tema e, incrivelmente, explora cada um de seus aspectos a contento, seja “racionalizando” o que reputamos como visões de pessoas enfermas, seja mostrando a importância de não se esquecer membros da família em instituições de tratamento, e isso sem trabalhar outras importantíssimas questões como a intolerância dentro do próprio seio familiar, a gravidez “indesejada”, o sistema de adoção, o quanto segredos podem fragmentar uma família e também elementos subsidiários como a homossexualidade de Alejandro (Carlos Santos). Há uma harmonia narrativa muito grande na temporada, com cada roteiro fazendo o melhor uso possível do gatilho narrativo central para subdividir-se em uma variedade de assuntos que justificam o mergulho cada vez mais distante no tempo que a trinca principal faz e que, por incrível que pareça, ganham fechamentos invejáveis. E o melhor é que as lições que os personagens aprendem vale para a vida em qualquer universo, seja o Universo Prime, o Universo Paralelo Animado ou o nosso mesmo, em carne, osso, lágrimas e sorrisos.

Arriscando-me a subestimar a capacidade dos criadores da série em continuar surpreendendo, serei teimoso e encerrarei a presente crítica afirmando que talvez fosse interessante que Undone acabasse aqui. Sei que já errei uma vez dizendo isso, mas o que foi feito aqui foi pura mágica narrativa que eu acho difícil de ser igualada. A história de Alma e de sua família está completa para todos os efeitos e acrescentar mais camadas pode fazer o castelo de cartas ruir. Mas quem sou eu para duvidar de Raphael Bob-Waksberg e Kate Purdy, não é mesmo? Até porque eu sei que, se houver uma terceira temporada – e imaginando que serei avisado dela por algum leitor atento, já que não posso contar com o software do Prime Video -, não titubearei em assisti-la.

Undone – 2ª Temporada (EUA – 29 de abril de 2022)
Criação: Raphael Bob-Waksberg, Kate Purdy
Direção: Hisko Hulsing
Roteiro: Kate Purdy, Elijah Aron, Gonzalo Cordova, April Shih, Carmiel Banasky, Mehar Sethi, Patrick Metcalf
Elenco: Rosa Salazar, Bob Odenkirk, Angelique Cabral, Constance Marie, Kevin Bigley, Holley Fain, Veda Cienfuegos, Alma Martinez, Carlos Santos, Renee Victor
Duração: 193 min. (oito episódios)

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