“In this world, it’s kill or be killed.”
Algumas obras carregam uma carga tão admirável de competência que pode fazer um redator se sentir intimidado de falar sobre ela. Esse é meu caso aqui prestes a escrever sobre Undertale, o indie game lançado no fim de 2015 que foi aclamado como obra-prima pela indústria e conquistou uma absurda quantidade de fãs para um jogo independente criado por um único cara. Eu não me sinto a pessoa mais preparada para criticar Undertale, mas, afinal, quem se sentiria? O fato de me encontrar aqui, escrevendo esse texto, vem apenas da mera vontade insaciável de falar sobre o jogo.
Undertale é um RPG criado por Toby Fox, um desenvolvedor independente que fez todo o trabalho do game, até mesmo de trilha sonora. Com o slogan “O RPG que você não precisa destruir ninguém“, a proposta do game é justamente apresentar um jogo onde suas escolhas repercutem no avançar da obra, nos diálogos, consequências e fins, fazendo isso da melhor maneira que já vi nesse meio (sem a irregularidade de Heavy Rain, ou o roteiro risível e sem perspectiva de Bandersnatch). Aqui você controla uma criança que caiu em um submundo dominado por monstros – estes vivendo ali após serem derrotados em uma guerra contra humanos. Assim começa uma jornada que debate moralidade de uma forma poucas vezes vista nos videogames. Afinal, o destino de cada personagem encontrado pelo caminho está em suas mãos.
Undertale sabe subverter expectativas de forma impressionante. Mesmo sabendo todos os elogios feitos ao jogo, é impossível não estranhar o jogo ao longo de sua primeira hora. O gráfico pixelado bastante datado e tosco surge como um preconceito inevitável ao lado de uma mecânica de combate que soa estranha a primeira vista, onde você controla um coração e deve desviar dos ataques recebidos. Aos poucos o jogo conquista o jogador através de sua carta mais forte: seu brilhante roteiro, extremamente cômico e emotivo, com uma construção de personagens feita com maestria e pitadas de sátiras inteligentes ao gênero RPG.
Undertale abre inúmeras discussões filosóficas a respeito do ser humano. Os dilemas que a história enfrenta me parecem tópicos modernos de debate ético e moral. Não é a toa que o youtuber MatPat teve a oportunidade de encontrar o Papa Francisco e escolheu lhe dar de presente justamente uma cópia do jogo. A justificativa do mesmo para isso é perfeita:
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“Como gamers, sabemos quem somos, mas de vez em quando é importante que o mundo saiba que essa comunidade trata de assuntos maiores que caçadas de monstros e grinding por leveis. Undertale é uma representação muito boa de onde estamos chegando como gamers. Representa uma evolução para os jogadores, e o que eles esperam do que jogam, tornando-o o melhor representante de onde estamos como uma comunidade hoje.“
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Acima de tudo, Undertale é um jogo sobre empatia. No entanto, engana-se quem acha que Toby Fox deseja ficar oferecendo lições de moral ou cafonas mensagens de amor e paz. Essa nunca fica aparente como proposta do autor. Seu real objetivo é sugerir um ensaio filosófico, permitir uma reflexão do jogador a respeito de suas ações e dilemas, analisar quais são suas motivações e sua essência, garantindo que ele assuma responsabilidade por suas atitudes, independente de quais sejam.
Temos aqui também uma tremenda jornada aventuresca. Mesmo com uma jogabilidade bem consistente, dinâmica e divertida, o alicerce do jogo está em seu roteiro. E cada caixa de diálogo do jogo é um deleite a parte, extremamente bem escrita e bem humorada, chegando até mesmo a fazer piadas com o fato dos jogadores de RPG constantemente ignorarem as caixas de diálogos como algo entendiante. Os personagens, desde o de menor importância até o mais relevante, são muito bem estabelecidos e possuem um carisma estonteante. Isso sem contar no design dos mesmos, que é belo e de extremo charme mesmo em meio aos gráficos demasiadamente simples.
A trilha sonora do jogo é um clássico a parte. Provavelmente uma das trilhas dos últimos anos que mais facilmente conseguiu alcançar status de icônica. Afinal, toda pessoa que conhece o jogo faz questão de exaltar sua sonoridade, isso sem contar a quantidade absurda de covers e versões alternativas das canções na internet. Se trata de um chiptune sensível, inteligente e extremamente harmônico que garante uma completa sinergia com a jogabilidade. Vale ressaltar que esta acompanha em rítmo as escolhas do jogador, uma vez que o game pode seguir diversos caminhos, mas com três rotas muito bem definidas: neutra, pacífica ou genocida.
Undertale é uma obra que te desafia, não em sua dificuldade – que é deveras moderada e fácil – mas em relação a sua persistência e intelecto. O fim do jogo – pelo menos na rota neutra – é um exemplo disso, instigando a curiosidade e perseverança do jogador e insistindo que este vá até seu limite, mesmo em face do desconhecido. Se trata de um final que esboça até mesmo comentários sobre depressão e permite reflexão a respeito de até onde você consegue ir. A busca por saídas alternativas é outro ponto considerável, afinal, existe sempre uma alternativa contrária a destruição, encontrá-la dependerá apenas de você e sua paciência.
Esse colunista que aqui escreve, que zerou o jogo na rota neutra após ótimas 8 horas, com certeza não é um expert no reddit debatendo seu conhecimento sobre todas as inúmeras resoluções e fins que o jogo possui. Mas com certeza é alguém que queria compartilhar a magnífica experiência que Undertale proporcionou – essa sem dúvidas uma das maiores que já tive com games. É um dos maiores exemplos artísticos que essa mídia já ofereceu, demonstrando o potencial gigantesco que ela possui. Toby Fox colocou todo seu coração nessa obra, fazendo dela algo que quebra paradigmas ao mesmo tempo que permanece simples e delicada.
E, assim como dito a cada save point, isso nos enche de determinação.
Undertale
Desenvolvedor: Toby Fox
Lançamento: 15 de setembro de 2015
Gênero: RPG
Disponível para: PC, PS4, PS Vita, Nintendo Switch